quarta-feira, 7 de novembro de 2007

O curandeiro branco - José Cardoso

Este é o conto que dá nome ao primeiro livro de José Cardoso, antigo morador da Beira e grande cineasta. Interessantíssima história, porque narra um fato que ainda hoje em dia seria inusitado: a existência de um curandeiro branco.
Os curandeiros são tipicamente moçambicanos, existem aos milhares, alguns mais famosos fazem publicidade de seus poderes curativos em jornais e outros mais modestos aguardam em suas casas a chegada dos pacientes. Os nativos têm mais confiança nos curandeiros do que nos médicos, tanto que aqueles são também chamados de médicos tradicionais. Mas são todos de origem africana.



O curandeiro branco


A cidade da Beira tem uma característica peculiar: assente num chão de dunas de areia e matope que fica abaixo do nível do mar nas marés vivas, tem a elevação de terreno mais significativa para os lados da Manga, bairro que regista uma cota de cerca de seis metros de altitude e que se afasta do centro da cidade pelo mesmo número traduzido em quilómetros.

Na época não muito distante, em que Moçambique era considerada uma província ultramarina da metrópole colonial, dizia-se, gracejando com a fantasia globalizante dos governantes do Império e com a sua divisão regional, que Portugal, entre as províncias que o compunham, tinha quatro Beiras: a Alta, a Baixa, a Litoral e a Chata, esta em referência à cidade da Beira.
A particularidade da cidade assentar numa superfície rasa, ou chata, permite-lhe, possivelmente, concentrar e expandir as vibrações magnéticas dos sons característicos de uma cidade portuária, onde navios e locomotivas participam dos gritos e da azáfama de capatazes e estivadores.

No silêncio consentido das madrugadas cacimbeiras, as vibrações sonoras que, áspera e prematuramente, nos despertam para um quotidiano ainda distante eram mais agressivas e incómodas, e, quando isso acontecia, modorrava eu sobre o leito morno, memorizando os contornos da vida de todos os dias.
E foi numa dessas manhãs que o estridular do silvo de uma locomotiva me despertou para a possibilidade de o seu timoneiro ser o António Santos, maquinista dos Caminhos de Ferro, e de estar ele, portanto, rumando para Machipanda no transporte de gentes e mercadorias para as diversas estações e apeadeiros do trajecto e para a vizinha Rodésia.
Conhecera-o através de um camarada e amigo comum, o João Correia, e embora nos relacionássemos muito pouco, devido quer à distancia que separava os nossos bairros (o dele era a Manga e o meu Matacuane), quer às características da sua profissão, sempre pautámos a nossa relação por um mútuo respeito e uma franca amizade.
Nunca lhe perguntei, porque isso não seria correcto nem recomendável entre camaradas, se nas suas frequentes viagens entre a Beira e Machipanda, além dos passageiros e das mercadorias, não distribuía também o «Avante» ou outros materiais de âmbito ideológico, que ao tempo circulavam por canais seguros e ocultos às insinuantes e perigosas infiltrações das «bufarias» regionais.
Era por todos assumido como receita salutar, que quanto menos soubéssemos menos tínhamos para contar se um dia, perante um qualquer torniquete medieval, ou uma contemporânea injecção do «soro da verdade», fôssemos forçados a fazê-lo.

Mas uma coisa eu sabia quanto às suas actividades extraprofissionais: aproveitando as suas viagens, contactava regularmente com um velho nativo para os lados de Machipanda ou Macequece, de quem se tornou amigo e do qual bebia a sabedoria dos anos na prática da cura dos males do corpo e da alma. Sempre insatisfeito e naturalmente curioso, abria-se para o conhecimento e procurava do velho as propriedades curativas de cada planta, as suas origens e formas de identificação, familiarizando-se com um mundo vegetal que o apaixonava e seduzia.
No agnosticismo da sua forma de encarar a vida, acreditava mais nas propriedades curativas das plantas para os males do corpo e menos nos seus místicos poderes para atenuar as perturbações da alma. Fosse como fosse, o certo é que, entregue à filantropia das suas abnegadas acções, iniciou um percurso de sucessos e de angústias oferecendo remédios a quem sofria e esperança a quem, desiludido, se entregava a pensamentos fatalistas.
Passaram-se alguns anos até que, numa visita que fiz ao António Santos, tive conhecimento da morte do velho de Macequece e do legado de conhecimentos e de práticas que aquele lhe tinha deixado, coo testemunho de uma amizade, muito rara na época, entre um preto e um branco, entre o colonizado e o colono.
E surpreendeu-me, na altura, o invulgar número de pessoas espalhadas pela sala e pela varanda da sua residência. Tinha vindo certamente numa altura imprópria, imiscuindo-me numa qualquer festa para a qual não tinha sido convidado, mas a curiosidade levou-me até à dona da casa e, através dela, vim a saber das razões de tão grande movimento.
- São clientes do António; pessoas desiludidas com a ciência dos médicos e os remédios das farmácias, porque nem uns nem outros lhes proporcionam cura e alívio para os males de que padecem.

Trabalhava eu então como técnico na Farmácia Graça, bem no centro da cidade, e já aí me haviam chegado aos ouvidos tanto os rumores sobre as actividades medicinais do António coo uma certa apreensão e relutância da classe médica em aceitar como verdadeiras as curas e os sucessos cochichados nos bastidores das salas de espera dos respectivos consultórios; mas estava longe de supor que a sua fama tivesse atingido tamanha dimensão, ao ponto de vir encontrar em sua casa um número de doentes superior ao de qualquer consultório médico da praça.
O mais surpreendente para mim, porém, foi quando mais tarde vim a saber, pela leitura de cartas de reconhecimento de doentes que o António tratara e que se consideravam curdos, que até já vinham da Europa e das Américas ao seu «consultório», depois de desiludidos com a medicina encartada nos seus países.
O António não cobrava um tostão a quem quer que fosse, e abespinhava-se quando alguém pretendia ser mais teimoso do que ele e lhe exibia – apenas para pagamento de despesas, como se esforçavam por convencê-lo – algumas notas de moeda forte, como o dólar estadunidense e a libra inglesa.
Em suma, o António Santos era um homem generoso e sensível; sofria com o sofrimento dos seus pacientes e com eles festejava os sucessos anunciados, inquietando-se perante situações mais renitentes, tanto mais que grande parte dos que o procuravam padecia dos males que a ciência médica considerava incuráveis, como o câncer. O sucesso de uma cura era a moeda que achava justa para pagamento do seu trabalho e da sua dedicação.
Recordo-me de uma carta remetida por uma paciente americana, creio que residente numa qualquer cidade da Califórnia, na qual, a pedido do seu médico, que a considerava espantosamente curada, solicitava ao António informações sobre o tratamento administrado e sobre as características das plantas e raízes medicinais por ele utilizadas.

Não sei se o meu amigo teria ou não curado alguém, porque isto de tratamentos e curas é coisa complexa (basta que se saiba o muito que isso tem a ver com a psique de cada um) e, consequentemente, matéria para muitos tratados, mas repudio a ideia de que ele fosse um charlatão, coisa de que muitos tentaram rotulá-lo, porque sei que ele acreditava profundamente no que fazia, e fazia-o convicto de que contribuía para que o seu semelhante não perdesse a esperança de uma cura possível, ajudando-o a ultrapassar os momentos mais difíceis da sua vida. E isso constituía uma boa fatia da sua própria felicidade.

Em 1976 a minha paixão pela imagem levou-me a abraçar outra profissão, ingressando nos quadros técnicos do Instituto Nacional de Cinema. Rumei a Maputo, deixando de ter contactos com a Beira e com os poucos amigos que, por não terem alinhado no êxodo dos «retornados» do pós-independência, ali restaram.
E foi já em Maputo que, alguns anos mais tarde, tive conhecimento da morte do António Santos.
Ele tratou e curou presumivelmente tanta gente sofrendo de câncer que não lhe sobrou tempo nem ciência, para se curar a si próprio do mesmo mal, pois, segundo me disseram, foi que o matou!...

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