quinta-feira, 25 de março de 2010

Sobre as guerras (ditas) religiosas

Está publicado no Diário de Moçambique de hoje este belo texto sobre este assunto tão pavoroso.

Faço questão de dividir com todos. Apesar do assunto ser pavoroso, tem sempre de ser lembrado para que estas atrocidades deixem de acontecer.

Aqui, no Devezenquandário, há um outro texto, meu, sobre este mesmo assunto: Guerras Religiosas, Guerras Mentirosas, se quiserem acessar.


(Imagem do documentário "The Other Side of the Country", de Catherine Hébert)


Guerra, paz e religião

Por P. Manuel Ferreira

Os romanos definiam a paz como tranquilitas ordinis, tranquilidade da ordem ou na ordem. Onde não há paz, há uma forma de guerra. E, a partir daquela definição, podem ser três essas formas: a tranquilidade na desordem, a intranquilidade na ordem, e a intranquilidade na desordem. A guerra é sempre uma desarmonia dolorosa e sangrenta, nas relações humanas: entre indivíduos, entre famílias, entre tribos, entre nações, entre blocos, entre inteiros continentes.

Toda a pessoa tem, lá bem dentro, uma aspiração fundamental de tranquilidade e de ordem. Ninguém gosta da desordem ou da intranquilidade. Quando gostar, é porque as vê e define como o contrário delas. Ninguém vê na guerra um bem. Poderá ver um mal menor e necessário. Só se recorre à guerra, quando se esgotam todos os outros meios de chegar à ordem da justiça e da dignidade humana.

A guerra sempre teve uma causa, com a pretensão de a justificar. Quem a provoca e promove usa-a como meio de defender determinados valores considerados intocáveis, ou de conseguir determinados interesses: econômicos, políticos, sociais.

Ao falarmos de guerra religiosa, seria mais exacto falar de uma guerra entre pessoas que seguem uma religião, e que a usam como pretexto, como bandeira, e até como máscara. Muitas vezes, o motivo decisivo e principal delas não é o religioso. É antes o interesse social, económico ou outro. A guerra sangrenta na Nigéria é religiosa, por ser entre cristãos e muçulmanos. Mas a motivação principal não é a religião. Será talvez a questão tribal, a questão económica, a questão territorial. Na guerra cruel no Uganda, o Exército do Senhor comete, todos os dias, as maiores atrocidades contra inocentes. Exército do Senhor significa mesmo exército de Deus. Esta guerra só é religiosa porque se instrumentaliza a religião, para justificar as maiores desumanidades. São pessoas religiosas a matar-se, não por causa da religião, mas apesar da religião.

Na Idade Média, ficaram tristemente famosas as cruzadas, as guerras entre cristãos e muçulmanos. Os cristãos pensavam prestar culto a Deus, matando os muçulmanos. E nos muçulmanos pensavam prestar culto a Allá, matando esses infiéis, que eram os cristãos. Tanto uns como outros combatiam até à morte, e pensavam cumprir um dever religioso. Quando agora analisamos estas guerras "santas", espanta-nos como é que uns e outros não viram a corrupção da religião que elas significavam. São bem conhecidas as causas sociais, políticas e económicas, além do obscurantismo e do esquecimento dos valores essenciais, que todas as religiões ensinam.

A guerra é tanto mais cruel, quanto mais indiscutíveis se consideram os valores pelos quais os homens se batem. A religião, a política, o amor, o futebol, são desses valores, que mais profundamente apaixonam o coração humano. E quanto o coração se apaixona e descontrola, acaba por trocar os nomes às realidaes, e de pesar e medir tudo com pesos e medidas alterados.

Atente-se na área semântica da guerra: batalha, combate, luta, pugna, agonia. Luta pela vida... a vida é uma luta... Luta armada... quem perde uma batalha ainda não perdeu a guerra.

Finalmente, um texto sugestivo, de São Tiago: "De onde vêm as guerras? De onde vêm as lutas entre vós? Não vêm dos prazeres, que guerreiam nos vossos membros? Cobiçais, mas não tendes. Matais e buscais, com avidez, mas nada conseguis obter. Entregai-vos à luta e à guerra. E com tudo isto, nada possuís."

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