sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Eu Sou A Estrela Polar





O poeta Fernando Couto - para quem não sabe, lá no Brasil e adjacências, o pai do Mia Couto - garimpou uma série de poesias de amor de autoria de mulheres (este é o subtítulo do livro). Até aqui, nada de mais, pois não???

O extraordinário é que a garimpagem é de poemas antigos, alguns escritos antes da nossa era cristã. Alguns mostram a expectativa da noiva à espera do seu amado, outros choram um coração despedaçado.

Porque muita coisa mudou nos últimos milênios (que tal esta???), mas, pelo jeito, o amor continua o mesmo, as mulheres continuam amando da mesma maneira. O amor, afinal, é perene e imortal!

Como sei que o livro teve edição muito limitada (somente 1000 exemplares, publicados pela editora Ndjira, em Maputo, em 2011), vou partilhar com vocês todo o conteúdo do livro, pouco a pouco, para que se deliciem com as peripécias românticas de sumérias, egípcias, chinesas, japonesas, espanholas, portuguesas e até odaliscas dos haréns.

Vou começar com a "Apresentação", pelo próprio Fernando Couto e depois pelo Prefácio, do orgulhoso filho Mia Couto.

Mantive a grafia original, no português de Portugal.



Apresentação

Esta antologia pretende cobrir uma coordenada temporal com início cerca de 4000 anos antes de Cristo e findando no século XVII. A coordenada espacial, preferenciando poetas praticamente desconhecidos entre nós, inclui alguns das literaturas egípcia, grega, e chinesa e inclui ainda uma pequena vertente dos folclores português e espanhol e originais de outras fontes.
Como se indica no subtítulo da colectânea, foram as temáticas do amor carnal e da beleza física feminina que determinaram a inclusão na antologia. Isso, porém, não exclui que, aqui e além, não aflorem a mágoa, a angústia e o desespero e especialmente a fidelidade.

Resultou a colectânea de um critério restritivo - reconhece-se, mas que não induzirá o leitor em erro de pista, a presumir pelo título, embora não se incluísse aqui poemas de nítido carácter libertino.

Tanto quanto foi possível, deu-se voz às variedades de origens e tempos:

- assim, a antologia inclui poetisas identificadas e anónimas.

Adoptou-se traduções literais, tão fiéis quanto possível ao conteúdo e forma, recorrendo em grande parte a traduções de traduções.

Deve esclarecer que na grafia dos nomes chineses se adoptou a de sinólogas espanhola e francesa anteriores à alteração da década de 80. Para os japoneses adoptou-se as traduções inglesas.

Sem recurso à escrita, sufocada pelo extremismo machista, a Mulher foi exercendo poesia cantando e dançando nas romarias e também na execução de trabalhos em conjunto e assim contribuiu para a construção dos cancioneiros que ainda continuam a seduzir-nos pelas admiráveis eloquências, rigores métricos, capacidade de comunicação, o português e o espanhol, um e outro com uma variedade surpreendente e com um poder de atracção notável os que ficaram ao nosso alcance.

O título escolhido - reprodução de um poema de uma dama chinesa do século IV - resulta da diferença entre o machismo e o feminismo.

As variadas faces do amor aqui vão sendo expressas e até as encontramos vividas por freiras em conventos, por jovens que não terão sido resultados de vocações religiosas a determinar os seus internamentos.

F.C.

******

Prefácio

Uma Estrela à procura do Céu

Na escola, muitos dos meus colegas de escola não haviam nunca tido contacto com a poesia. Para eles, o poeta era uma criatura estranha, um ser desencontrado do mundo e incapaz de viver. O texto poético era assunto para outros, do mesmo modo que o amor era um território distante e, sobretudo, ridículo. Num dado momento, porém, quase todos esses jovens tropeçavam nos versos de Camões em que se cantava um «fogo que arde sem se ver». De súbito, algo estremecia naqueles adolescentes. Eis que alguém falava de um sentimento que não se podia dizer senão em poesia. Surgia, então, claro que a todos nos faltava um idioma que nos concedesse maior intimidade com a Vida. poesia e amor chegavam-nos de braço dado, num mesmo assalto perturbador, revelando a nossa profunda carência, enquanto seres apartados da paixão e da palavra.
Lendo os poemas que foram seleccionados para este livro recordo o despertar mágico causado pelos versos de Camões. E confirmo: ninguém escreve «sobre» o amor. A paixão do enamorado não é convertível em tema, não pode ser tratado em texto. Para quem se propõe, como eu, escrever um prefácio para um livro de poemas românticos a questão é ainda mais complicada: como falar da poesia que fala do amor?

Perpasa em todos estes versos um mesmo pulsar: a poesia autorizando a Vida a tomar posse das nossas vidas. Como se uma operação inversa convertesse a criação no criador: é a própria poesia que cria o apaixonado. É a sua lírica que inaugura o amor. A escrita da paixão só pode nascer da paixão pela escrita.

Desfilam neste livro autoras de culturas e tempos diversos: da China ao Magreb, do Níger a Espanha, da Coreia à Suméria, da França ao Antigo Egipto. No entanto, em todos estes versos se inscreve o mesmo espanto e a mesma revelação perante a paixão. O sentimento do amor e a vertigem do enamoramento atravessam de igual modo povos tão distantes na sua condição geográfica e temporal.

Na aparência estamos perante um único fenómeno lírico: o laço de paixão que une dois amantes. Ao longo do livro, porém, damos conta que esse amor que as poetas elegeram é mais doq ue uma relação a dois. Trata-se, sobretudo, de uma relação fascinada com o mundo e com os outros. Noutros termos: estes versos falam de um estado sublime em que nos sentimos únicos e encantados. Falam dessa luz total que nos cega, esse fogo que Camões nos fazia contemplar em estado de poesia.

Ver-se-á nestes versos, tão unos e tão variados, que a mágoa é o motivo maior daquele que fala o amor. Como se provasse que para haver história fosse preciso o sofrimento. Por algum motivo já não há mais narrativa depois do infalível remate: ... casaram, tiveram filhos e viveram muito felizes. Essa felicidade sem sobressalto fecha a história. Esse sossego é o fim do livro. A poesia começa na perda do amado e na carência irresolúvel de quem ama. A palavra é quem traz o amante da outra margem do mundo. Porque os enamorados se encontram exactamente onde o mundo e o tempo desvanecem, nesse lugar de ausências onde apenas a palavra os pode salvar.

Existe a estrela polar, como diz a poeta. A estrela que arde enquanto se ama. Essa estrela incandesce, em ardência de si mesma, porque está a procura de um céu que a torne eterna. Esse inventado céu chama-se poesia.

Mia Couto

Nenhum comentário:

Postar um comentário