sábado, 17 de maio de 2014

O Lado Oculto, de Lídia Mussá - Os maridos espirituais em Moçambique

A jornalista moçambicana Lídia Mussá publicou uma série de depoimentos de mulheres que sofrem ou sofreram a sina do "marido espiritual" em Moçambique.

Para os "de fora", isso pode parecer história da carochinha ou alguma espécie de histeria coletiva. Mas, de fato, isso acontece aqui pelas costas do Índico. Seja por sugestão psicológica ou realmente por problemas espirituais, a verdade é que estas mulheres tiveram suas vidas destruídas por esta sina.

Partilho com vocês um dos depoimentos. O português carece um pouco de correção, mas fiz questão de me manter fiel ao estilo da escritora. Se alguém tiver alguma dúvida quanto ao conteúdo do texto, mande um comentário. Tudo aqui em Moçambique é muito diferente... podem acreditar!!!

Afinal, este assunto é um pouco "tabu" em Moçambique, é difícil encontrar alguém que fale disso. E a Lídia Mussá foi corajosa e persistente, conseguiu confissões que só se fazem a uma grande amiga ou aos nossos pensamentos.

Aguardo comentários!!!


Depoimento de Isabel Matsinhe, 52 anos
Bairro do Zimpeto, Cidade de Maputo
Este depoimento foi possível graças ao Sr. Ernesto Macave, que vivia este drama em sua família. De maneira a ajudar e contribuir facilitou-me o contacto com uma pessoa próxima, mas esta também pediu para não ser identificada.


Fui casada duas vezes. Meu primeiro marido faleceu em Cabo Delgado e a família levou tudo o que tínhamos, os cabritos, a casa, e depois disso voltei a Maxixe, onde conheci o meu segundo marido.

Passeia  minha infância, num ambiente onde a rotina normal era igual a de todos jovens. Todas as manhãs, ao acordar, varria o quintal e limpava a casa. No quintal onde cresci haviam 6 palhotas, dos meus pais, irmãos, tios, primos, mas eu, diferente dos meus irmãos, tinha uma palhota específica, que devia limpá-la todos os dias e, bastasse o sol se pôr, eu tinha que acender lume, dentro de uma panelinha de barro e deixá-lo acessoà na palhota. Como nos tempos os nossos pais não explicavam nada, fui crescendo assim, quando o meu primeiro marido fez lobolo[1], um dia antes da cerimónia, os meus pais, o tio mais velho da família, o curandeiro da nossa família e eu entramos na palho ta com uma garrafa de aguardente. Acendi o carvão como de costume, eles ajoelharam e começaram a entornar a bebida no chão, eu escutando o que eles diziam: a nwana wa hina a ta famba a passeara, mas a ta vuhia sicu ni sicu a buia a thlanga na wena, unga kwati[2]. Levantámo-nos e saímos, perguntei a minha mãe que ritual era aquele, ela respondeu:

- U djaku ti peta na hine[3], quando fui viver com o meu marido, estava tudo bem e como vivia um pouco distante dos meus pais, fiquei um tempinho sem lá ir, até que comecei a ter sonhos estranhos, com um homem a tirar toda a minha roupa e dormia comigo e dava-me muito prazer. Como eu não podia reclamar nada, todas as noites ficava ansiosa para ir dormir, para ele aparecer nos meus sonmhos e dar-me o prazer que o meu marido não me dava.

Passados dois meses, esse mesmo homem em sonhos disse-me que eu tenho que voltar para casa, que ele precisa de mim lá, fui à casa da minha mãe e quando cheguei ela pôs-se logo a ralhar comigo, empurrou-me de imediato para a palhota, acendi o fogo e adormeci. Nesse dia não sonhei com ele a fazer sexo comigo, apenas batia-me, maltratava-me, acordei aos gritos, saí da palhota a correr para pedir socorro a minha mãe. Ela limitou-se em dizer vai para a tua casa, quando o teu pai chegar vamos resolver. A partir desse dia, os meus sonhos eram só tortura, perguntava a minha mãe o que se estava a passar, pois não aguentava mais as torturas, mas simplesmente não respondia. Depois, fui viver em Maputo e daí o meu marido começou a passar mal. Vivi nesse sofrimento dez anos, concebi três vezes, mas tive abortos espontâneos terríveis. O meu marido saiu de Maputo para Cabo Delgado, à procura de medicamento tradicional, para um inchaço que apareceu nos seus testículos, depois de um sonho que ele teve, mas infelizmente, perdeu a vida. Voltei a Maxixe, a minha mãe já falecida e, pessoalmente, procurei um médico tradicional. Queria entender o porquê de tanto sofrimento no meu lar e de tantos sonhos. Ele respondeu que o sangue da minha mãe já havia pago pro tudo e que eu deveria levar um boi para poder lavar e que coisas iriam ficar bem. Devia pegar numa tigela de sangue, jorrado da cabeça do boi, despejar no chão da palhota. Cumpri com tudo e, realmente, parei de sonhar. Voltei a Maputo para trabalhar nos Correios, como auxiliar de limpeza. Conheci aí um homem, a quem juntei-me e, apesar de ele valorizar-me muito como mulher e ajudar-me em tudo, até a escola, havia muita briga em casa.

Quando tive a primeira filha, adoeci muito, andei em todos os hospitais e nada. Passei 4 anos com febres constantes e vómitos. Mesmo doente, voltei a conceber e tive um rapaz. O meu filho, ao nascer, tinha uma marca atrás da orelha, como se fosse o número 6 e sem o dedo polegar do braço esquerdo. Quando o meu marido viu isso, ele e a família reclamavam sempre até que ele me abandonou. Na altura, a minha filha tinha 5 anos e o meu filho 4 meses. Tentei levar a vida e cuidar dos meus filhos. Anos depois, recebi a notícia da morte do meu pai, fui a Maxixe com os meus filhos. Tudo o que aconteceu lá foi muito estranho. A minha filha mais velha sempre foi muito vaidosa, mas eu expliquei a ela, que lá na terra da avó tinha sempre que amarrar capulana. Depois das cerimónias do meu pai, apareceram os homens da timbila[4] e começaram a tocar, estranhamente a minha filha começou a dançar como se estivesse embriagada. O que mais espantou-me, a miúda dançava com a expressão do corpo muito explícito, mas sempre em direção à minha antiga palhota, tentava impedi-la e nada. De volta a Maputo, o meu pesadelo começou. A minha filha já não queria saber de escola, o meu filho já não andava com meninas, apenas rapazes. Três anos depois descobri que a minha filha tinha 4 namorados e o meu filho era homossexual, andei em vários curandeiros, consegui fazer os meus filhos voltarem a estudar. Com muito esforço a minha filha entrou numa Universidade privada, foi a pior vagabunda daquela unidade de ensino. Felizmente, conseguiu concluir a licenciatura. Cada vez que eu tocava na minha filha ou tentava dar-lhe qualquer medicamento tradicional, eu adoecia. Ela casou-se 3 vezes e separou-se, dizia que não era mulher de um homem só. A minha filha hoje, neste momento que estou a falar, é uma prostituta.

O meu filho foi viver na Beira com o meu irmão, estudou e começou a trabalhar, mas tinha ele vergonha e medo da sua homossexualidade. Namorou uma moça com quem teve uma filha, 3 anos depois, separaram-se porque ela veio dizer-me que já não aguentava, que o marido não fazia sexo com ela, apesar de na maioria das vezes acordar excitado. Roguei para que ela aguentasse um pouco mais, apenas que tivesse fé e aguentasse um pouco. Falando a verdade, eu nem sabia o que estava a pedir à minha nora. Um mês depois, a casa do meu filho pegou fogo, ardeu, enquanto dormiam. Perderam tudo, incluindo o dinheiro guardado.

O meu filho voltou a Maputo desgraçado, sem nada. Entrei em pânico com tudo isso e, pela primeira vez, reuni com os meus irmãos e alguns tios que ainda vivem. No meio da reunião o meu filho revelou que sonhava com um homem e que o mesmo homem fazia sexo com ele. O meu irmão e a minha tia chamaram um curandeiro, que disse que devíamos voltar a Maxixe, porque o meu filho estava a ser precisado pelo meu marido espiritual. Ele exigia que o meu filho o lobolasse, pois a ele já não interessava nenhuma mulher da minha família. Tínhamos que construir uma palhota lá e lobolar o meu filho com o meu marido espiritual, caso contrário só haveria desgraça na família. O meu filho não se conformou, esperneou, recusou e na manhã seguinte pegou estrada para voltar a Beira. Antes mesmo de ele sair de Maputo, o carro capotou, ficando hospitalizado e, enquanto isso, tentei convencê-lo para fazermos a cerimónia. Seis meses depois, viajamos todos da família e fomos construir a palhota, fizemos o ritual, regressamos a Maputo. O meu filho viveu comigo mais 3 meses, andava sempre doente, procurei outro curandeiro, que disse que o primeiro lobolo não correu bem. Tínhamos que voltar para a minha palhota e fazer de novo aquele ritual, em que o meu filho tinha que acender lume todos os dias, nesse instante fiquei desesperada e perguntei-me. Que vida é essa, que castigo é esse?

A minha filha tem hoje 34 anos, está solteira e o meu filho, esta semana, estamos a preparar o lobolo dele em Maxixe. Estou desesperada, não sei o que fazer para sair de todo este sofrimento. Estamos em Março de 2012, tenho 52 anos, nunca fui feliz no lar, como mulher e coloquei duas crianças no mundo que estão a sofrer muito, por causa de uma situação que eu não sei de onde vem. Todos estes anos só trabalhei para pagar curandeiros. Tenho uma filha licenciada prostituta, muito conhecida na praça, um filho muito respeitado na Cidade da Beira, maricas e que não pode fazer mais nada da vida, a não ser acender lume todos os dias na panelinha de barro. A sociedade vai entender isso?

Durante este período, entrei em várias igrejas e nada resolvi, não tenho vontade de lobolar o meu filho com um espírito, mas vou gritar para quem...?




à Leia-se “aceso”. Com certeza, houve aqui um erro de digitação. (Nota minha)
[1] Casamento tradicional. (N.A.)
[2] A nossa filha vai passear, mas virá todos dias brincar consigo, não fique chateado. (N.A.)
[3] Queres te meter porquê? Serás lobolada amanhã, tínhamos que pedir permissão ao teu primeiro marido que era para poderes ir ao teu lar sem problemas, mas uma vez por semana, tens de vir acendeer o carvão dentro da palhota e dormir aqui, é tradição da família.
[4] Instrumeto musical tradicional. (N.A.)
 

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