quinta-feira, 17 de maio de 2007

Império, Mito e Miopia - Capítulo IÍ

II
Literatura e representação:
Fundamentos e aporias


Um factor constitutivo e definidor da literatura de ficção é que ela participa da composição de mundos possíveis e convoca, para cada um destes mundos, uma ideia de realidade que acaba por se articular, por semelhança ou por contiguidade, com o mundo empírico no qual nos movemos. Segundo Lubomir Dolezel (1988: 83), a acessibilidade ao mundo ficcional efectiva-se a partir do mundo real que concorre, de forma marcada, para a formação do mundo da ficção. Aquele proporciona os modelos da estrutura deste, ancorando, muitas vezes, o relato ficcional num acontecimento histórico e transmitindo factos em bruto ou realemas culturais.

Esta é uma ideia que vai de encontro àquela que é avançada por Marie-Laure Ryan (1997: 181), que preconiza igualmente que um mundo torna-se possível desde que concebido em função do mundo que ocupa o centro do sistema: o real. Apesar de Ryan considerar, por seu lado, que a relação entre o mundo possível da ficção e o mundo empírico é baseado na identidade das propriedades dos objectos comuns dos dois mundos, na uniformidade e na compatibilidade lógica, analítica ou linguística, a questão não nos parece ser tão líquida assim.


Na verdade, acreditamos que a relação entre aquilo que ela designa de «mundo real» (MR) e «mundo real textual» (MRT) não é, por exemplo, sempre e necessariamente lógica. Casos há em que a relação é estruturalmente ilógica, como a ficção científica e as narrativas fantásticas onde o princípio da não-contradição, por exemplo, é transgredido.

Por outro lado, tanto a uniformidade como a identidade entre esses dois mundos acaba por ser posta em causa pelo simples facto de que enquanto um, o mundo da ficção, é um mundo de referências, da linguagem, portanto, o mundo real é, por sua vez, o mundo dos fenómenos. Daí que estejamos perante mundos estrutural e semioticamente distintos.

Reflectindo também sobre a interacção entre estes dois mundos, Jonathan Culler (1997: 29) entende, por seu lado, que one reason why readers attend to literature differently is that its utterances have a special relation to the world – a relation we call «fictional». Exactamente porque, através do exercício interpretativo, se desenvolve um processo de reconhecimento, de identificação e de complementaridade entre as referências dos textos e os referentes do nosso universo.

Apesar de o teórico russo, V. Chklovski (1917: 83), defender que le but de l’art, c’est de donner une sensation de l’objet comme vision et non pas comme reconnaissance e, por conseguinte, salvaguardar a autonomia da obra literária – posição que não podemos deixar de compartilhar –, parece-nos, no entanto, sustentável, sem cair numa contradição irredutível, que essa mesma autonomia não fica em causa por fazermos interagir dois discursos: o do mundo criado e o do mundo do qual participamos enquanto sujeitos empíricos. Entra aí em jogo a relação dialógica tão cara a Bakhtine e que atenua a solidão estrutural e semiótica da obra literária.

Poesia – leia-se literatura, apesar de este ser um vocábulo tardio – é imitação. Com esta asserção, Aristóteles abriu uma das reflexões pioneiras e, também, não menos duradouras sobre as relações entre o mundo que a literatura cria e o mundo que nos situa historicamente. Por outro lado, inaugura com essa afirmação uma determinada forma de fazer e pensar a literatura como representação e que vale pelo mimetismo em relação a uma qualidade preexistente.

Assente na ideia de imitação, o conceito de representação assume, em Aristóteles, uma dimensão que vai muito além do plano a que muitas vezes tem sido reduzido. O classicismo e o neoclassicismo europeus serão os grandes culpados desse reducionismo devido à aplicação dogmática dos princípios aristotélicos da criação literária. Aliás, o filósofo grego evidenciou um rasgo inexcedível ao afirmar que a poesia (literatura) era mais filosófica que a história, precisamente por ver nela potencialidades representativas ilimitadas.

Reflectir, hoje, sobre a literatura como representação pressupõe a priori um exercício tautológico, redundante e, de certo modo, pouco produtivo. Mais a mais, se se considerar que esta é uma reflexão que acompanha o percurso da arte, em geral, e da literatura, em particular, provavelmente desde as suas origens, como o demonstra a milenar tradição da teorização literária de inspiração platónica e aristotélica.

Se é verdade que a revolução romântica, já nos finais do século XVIII, recolocou a questão da representação noutros patamares, de tal modo a ideia da representação como imitação foi substituída pela noção essencial da representação como criação, e se é verdade, também, que outras perspectivas epistemológicas (filosóficas, antropológicas, sociológicas, semiológicas, psicológicas, linguísticas, translinguísticas, políticas, etc.) – entre outros, pensamos nos contributos de Kant, Marx, Freud, Nietzsche, Saussure e Bakhtine – trouxeram novos e diversificados contributos teóricos, a questão em si não deixa aparentemente de manifestar sinais iniludíveis de consumição.

Porém, o facto de estarmos a lidar com a escrita romanesca, por um lado, e que – talvez por isso mesmo – interage decisivamente com o contexto epocal e geográfico em que ela surge, por outro, tornando-se essa mesma interacção um aspecto determinante da sua própria condição, leva-nos a retomar a questão da representação literária, não como um fim em si, mas como um dos eixos de reflexão potencialmente mais harmonizantes com a especificidade da literatura colonial.

No capítulo anterior, apresentámos as razões que fundamentaram a nossa opção pelo romance e que demonstram em que medida esta é uma arena privilegiada dos protocolos representativos não só no concernente à literatura colonial, mas também à literatura em geral. Devido à reconhecida plasticidade do romance, Emile Cioran (1956: 112) será, por isso, cáustico ao considerá-lo «a prostituta da literatura». Isto porque, no seu entender, sendo o romance um usurpador por excelência não hesitou em apoderar-se de meios próprios dos movimentos essencialmente proféticos. Além do mais, é, ainda segundo este filósofo romeno, «impuro» devido à sua própria «desenvoltura», vivendo da fraude e da pilhagem e tendo-se vendido a todas as causas.

Falar, portanto, da representação é reequacionar os diferentes conceitos que lhe são inerentes, ou seja, imitação, conhecimento, criação do mundo, imaginação, mediação, ou, mesmo, predição e que determinam a idiossincrasia do fenómeno artístico. Atento à incontornabilidade desta problemática, Jean Bessière (1995: 382) defende que, apesar de ser uma questão dos realismos e dos naturalismos literários constituídos a partir do século XVIII, a representação constitui, no entanto, um problema para a teoria literária contemporânea. Esgrimindo não só com o conceito de representação, mas também com o conceito de anti ou auto-representação, Bessière adianta que «está em causa aqui o estatuto e o poder do literário» (p. 394). Isto é,

estes termos permanecem presentemente inapagáveis e exactamente recíprocos, porque um deles – a anti ou auto-representação – sugere que o artificialismo do discurso recolhe o próprio infinito do sentido do dizível, e outro – a representação – retém um imperialismo do realismo – a palavra certa e o seu dizer sem resíduo.

Portanto, se a ideia de representação remete para um determinado mundo de coisas, a anti ou auto-representação inscreve-se na circularidade imagética da própria linguagem. Porém, a representação nunca é completa, apenas provisória, uma vez que nunca é mais do que alguma coisa que procede pontualmente segundo a autoridade da linguagem e a autoridade das coisas, e é, ao mesmo tempo, repetição e diferença. Subsiste, pois, uma situação de aparente insolubilidade da linguagem e das coisas.

Porém, definir a representação como criação, criação de mundos possíveis ou alternativos, tal como defendem, entre outros, autores como Lubomir Dolezel, Martínez Bonati, Thomas Pavel, Umberto Eco, M. L. Ryan, ou, simplesmente, como modo de fazer mundos (Goodman), é, tanto em termos teóricos como pragmáticos, a forma com que na contemporaneidade se superam as aporias que o conceito tradicional de representação suscita.

Orientando-nos concretamente pela literatura colonial, verificamos que esta potencia e explora, de maneira intensa, uma rede inextricável de identidades e alteridades (físicas, culturais, éticas e filosóficas) tornando-se, por conseguinte, inevitável tematizar e reflectir sobre a questão da representação que, per si, se impõe como determinação estrutural e semiótica dessa mesma literatura. Tanto enquanto figuração das coisas como da própria linguagem.

A literatura colonial, enquanto modo particular de gerar (e gerir) mundos, acaba por consagrar esteticamente a expressão O mundo que o português criou, uma das mais emblemáticas expressões de Gilberto Freyre e título de uma das suas obras mais representativas. Trata-se, aliás, de uma das crenças que mais alimentam e povoam, mesmo que de forma subterrânea, o imaginário dos portugueses. E a literatura colonial não só se limita a criar mundos, mundos possíveis ou alternativos, como torna seriamente indissolúvel a compatibilidade entre esses mundos e o mundo real, isto é, o seu devir. Daí a sua importância e actualidade.



1. Da irrepresentabilidade ou a resistência à representação

Uma das motivações maiores (e porque não mérito, mesmo tendo em conta o cabedal de distorções e preconceitos?) subjacentes à literatura colonial é o de ela assumir-se, implícita ou explicitamente, como uma forma mais ou menos elaborada de revelação de uma realidade mal conhecida ou simplesmente ignorada.

Até que ponto a representação literária cumpre, pois, este desígnio se nos ativermos, por exemplo, às constatações cépticas de Philippe Hamon (1973: 134) que questiona: como «é possível reproduzir, através de uma mediação semiológica (com signos) uma imediatidade não semiológica?». Ou de Roland Barthes (1978: 22) para quem o real não é representável, daí que a literatura traduz uma «impossibilité topologique» por não poder fazer coincidir uma ordem pluridimensional (o real) com uma ordem unidimensional (a linguagem)?

Em contrapartida, para Roman Ingarden (1965: 301), com o processo de representação, trata-se apenas de reter aspectos de uma realidade em permanente devir ou, numa perspectiva de raiz freudiana e actualizada pelo mesmo Barthes (1973: 121), a representação seria uma figuração embaraçada, estorvada por outros sentidos que não o do desejo: um espaço de álibis (realidade, moral, verosimilhança, legibilidade, verdade, etc.).

Ultrapassada a ideia de assumir a representação como imitação, ideia tributária das reflexões platónico-aristotélicas e que se firmaria como norma[1] até princípios do século XVIII, apesar de amiúde objecto de contestação e de transgressão, colamo-nos agora a um sentido muito mais elástico, muito mais realista, mas nem por isso menos problemático, da representação que, de forma concisa, é definida por aquilo que ela não deve ser, como explica Helena C. Buescu (1990: 266):

Ora, a partir do momento em que se concebe a linguagem como convenção e consenso, a noção de imitação tem de ser liminarmente eliminada, e a representação justamente entendida como a impossibilidade de imitar. Representar não é apenas «não imitar»; é sobretudo o indício de uma actividade apenas possível a partir do momento em que se reconhece que o homem representa justamente na medida em que não pode copiar. Representar não só não é imitar, como sobretudo é não imitar.

Portanto, esta formulação traduz o cruzamento dos subsídios trazidos quer por uma triunfante prática literária inaugurada pelo romantismo, quer por um exercício teórico que se verifica tanto dentro desse mesmo movimento – estamos a pensar, por exemplo, nos irmãos Schlegel –, como também por todo um percurso filosófico e científico que, de forma aguda, e durante o século XIX, deixou a nu a precariedade da própria realidade enquanto valor objectivo, estável e uno.

Para isso, contribuíram quer as transformações teóricas (a dialéctica hegeliana; Marx, com o primado da matéria e da necessidade económica sobre a consciência; Nietzsche, com a apologia do instinto e com a sua negatividade radical em relação ao cristianismo, à filosofia socrático-platónica e à ciência; Freud, com as suas teorias sobre o inconsciente), quer as transformações políticas (a Revolução Francesa, a emancipação política dos povos ditos «primitivos»), quer, ainda, as transformações sociais e tecnológicas, que irão, por sua vez, desencadear a multiplicação de visões do mundo: étnicas, religiosas, culturais, socioeconómicas, estéticas e sexuais.

Segundo o filósofo italiano Gianni Vattimo (1989: 15), dá-se, com todas estas transformações, a erosão do próprio «princípio da realidade». Isto é, o mundo torna-se fábula, interpretação. Esta é, aliás, uma ideia com incontornável sabor nietzschiano, em que os factos, a realidade, o mundo existem apenas como interpretação, isto é, como um texto misterioso em devir e em processo de decifração sempre inconcluso.

Além do mais, disto tudo resultou, entre outras coisas, a exposição da fragilidade da condição humana, que se apresenta de forma fragmentária, solitária, contraditória e dificilmente fixável. De maneira categórica, ficou também patenteada, através da linguística e da semiótica, a importância e a complexidade da linguagem enquanto elemento municiador de sentidos, múltiplos e voláteis, na relação entre o homem e a realidade que o envolve.

Por outro lado, o movimento simbolista redimensionou o conceito de representação, com sentido crítico, ao assentar a sua produção literária fundamentalmente no auto-investimento da linguagem. De acordo com Foucault (1966: 313), a linguagem torna-se um processo alargado de auto-representação de tal modo que, a partir de Mallarmé, la littérature se distingue de plus en plus de discours d’idées, et s’enferme dans une intransivité radicale.

Podemos, pois, concluir que, por um lado, a representação se institui como uma busca incessante, uma impossibilidade, enfim, se tivermos como horizonte a conformação (mimetismo) com uma realidade estável, global e preexistente, a qual ela procura adequar-se. Por outro lado, a representação pode ser um fim em si, cumprindo-se, sobretudo enquanto criação, adquirindo daí uma grandeza imanente, própria. E o que faz com que a representação se torne acessível, compatível, inteligível, verosímil, é que ela se institui, como antes fizemos referência, em função dos códigos (linguísticos, culturais, filosóficos, éticos, estéticos, etc.) do mundo real, isto é, do nosso mundo.



2. O efeito do verosímil

Le concept de vraisemblable n’est plus à la mode (Todorov 1971: 93). Com esta afirmação, concludente e plena de convicção, Todorov retira-nos, à partida, qualquer veleidade de avançarmos numa reflexão em que o conceito de verosimilhança seja equacionado. Na verdade, é muito pouco estimulante sustentar um discurso dito, de modo tão peremptório como démodé há mais de trinta anos.

Em todo o caso, por imperativos de ordem metodológica e teorética e pela necessidade intorneável que temos em manter o nosso estudo perseguindo um determinado alinhamento, decidimo-nos por correr o risco e revisitarmos um dos mais vetustos conceitos dos estudos literários mas, mesmo assim, dotado de particular vitalidade.

Aliás, é o próprio Todorov quem nos abalança nesta direcção quando, a dado passo, concede que existem vários sentidos para o termo: primeiro, quando acções e atitudes conforme a realidade; segundo, enquanto relação com o que a maioria das pessoas julga ser o real; terceiro, enquanto adequação do texto às regras particulares do género que adopta; e, finalmente, já numa acepção mais precisa, enquanto máscara com que se dissimulam as leis do texto, e que nos daria a impressão de uma relação (referencial) com a realidade. Isto é, o texto faz-nos acreditar que se submete ao real e não às suas próprias leis.

Por conseguinte, e de acordo com esta reflexão, falar em verosimilhança implica necessariamente ter em conta a aceitabilidade do mundo representado e a conformidade entre esse mundo e o universo expectacional do leitor. Afinal, e como concede Antonio Risco (1982: 10),

sólo es posible distinguir el fenómeno literario al nivel de la situación comunicativa, situación que establece un pacto particular, una complicidad – específica, sí, en teste caso – entre el autor y el lector.

Segundo este teórico espanhol, este «pacto particular» que se estabelece entre autor e leitor, consiste

en la simulación, en ele ejercicio del como si – la mimesis aristotélica, pero que ha de extenderse a muy diferentes niveles del texto literario – por medio de un conjunto de técnicas y recursos figurativos que tienden a elaborar una suerte de experiencias imaginarias, o sea de vida paralela.

Daí que a literatura seja, antes de tudo, «figuración» e que passa pela simulação de um facto vital. Apesar de discordarmos da ideia de que a figuração literária tende para o concreto, para o acumular de referencias de orden sensorial, há um dado conceptual importante que ele avança e que se refere a um campo imaginativo comum, património de uma unidade cultural num determinado momento no qual cada indivíduo possui a sua parcela: o «hipercódigo».

Trata-se de um campo imaginativo que se actualiza na obra e reúne os universos do leitor e do autor e é uma espécie de «virtual código cultural». Será, pois, o hipercódigo que irá determinar, em grande medida, o grau de verosimilhança da obra literária. Naturalmente que este hipercódigo será tão funcional quanto mais devedor for de uma cultura literária que se instituirá como plataforma identitária entre o universo do autor e do leitor e que acaba por ter uma dimensão histórica.

A este propósito, a já citada M.-L. Ryan reforça o facto de a ficcionalidade, que se ancora na ideia de verosimilhança com a qual muitas vezes se confunde, não se decidir nem pelas propriedades semânticas do universo textual, nem pelas propriedades estilísticas do texto, estabelecendo-se apenas e a priori como parte das nossas expectativas gerais (Ryan 1997: 205). Para esta autora, é, por conseguinte, ao leitor que cabe a função de determinar a ficcionalidade: Consideramos un texto como ficción cuando conocemos su género, y sabemos que el género está governado por las reglas del juego ficcional.

Entretanto, não deixamos ainda de ter em conta outras reservas colocadas em relação a esta arcaica questão da verosimilhança. É o caso de Julia Kristeva, que em Le Texte du Roman. Approche sémiologique d’une structure discoursive transformationnele (1970), defende que a verosimilhança adequa-se mais a sistemas monomorfos como a filosofia ou o discurso científico, onde a preocupação de provar e de verificar é acutilante. Por conseguinte, por a questão da prova e da verificabilidade não se impor em matéria literária, la productivité textuelle releve d’un domaine autre que le vraisemblable(1970: 76). No entender, ainda, desta autora,

La «vérité», ou la pertinence, de la pratique scripturale est d’un autre ordre; elle est indécidable (improuvable, invérifiable) et consiste dans l’accomplissement du geste productif, c’est-à-dire du trajet scriptural se faisant et se détruisant lui-même dans le processus d’une mise en RAPPORT de termes opposés ou contradictoires.

No essencial, Kristeva põe em causa o conceito de verosimilhança, a partir do momento em que lê implicar uma necessidade de provar ou de verificar a realidade textual em confronto com a realidade empírica, extraliterária.

Sem deixarmos de estar de acordo com esta posição por recusar a necessidade de prova e de verificação enquanto caução de verdade, o que é legítimo em termos literários, não anulamos, no entanto, a ideia que avançamos antes em relação ao conceito de representação. Isto é, que a verosimilhança se concretiza quer no horizonte expectacional do leitor, quer em conformidade com as regras impostas pelo próprio género, mesmo quando o texto se institui como factor de transgressão, ou quando se impõe a tal máscara que dissimula as leis da escrita levando-nos a assumir o texto como submisso às regras e contingências da realidade.

Além do mais, não conseguimos colocar a verosimilhança no plano em que Kristeva a coloca (de verificabilidade e de prova), mas simplesmente no da possibilidade. Portanto, o texto mantém-se, no fundo, como o principal municiador dessa mesma verosimilhança, mas sempre enquadrado num movimento interactivo e incessante com o leitor. Isto significa que, e no âmbito do acordo tácito que aí se estabelece, enquanto que a obra finge que o mundo que cria é verdadeiro, o leitor, por seu lado, finge completamente que assume como verdadeiro o mundo que a obra lhe proporciona.

Em convergência com a nossa posição e com a defendida, de certa forma por Todorov, Antonio Risco e Ryan, Gérard Genette (1969: 76) explica que a verosimilhança, que pode variar em parte ou no seu todo, se institui com base em relações de implicação entre, por exemplo, a conduta das personagens e máximas gerais, normativas, implícitas e cristalizadas cultural, moral e socialmente. Isto é:

Le récit vraisemblable est donc un récit dont les actions répondent, comme autant d’applications ou de cas particuliers, à un corps de maximes reçues comme vraies par le public auquel il s’adresse : mais ces maximes, du fait même qu’elles sont admises, restent le plus souvent implicites.

Temos, uma vez mais, a ideia de um «contrato tácito entre a obra e o seu público», de tal modo que uma conduta torna-se incompreensível ou extravagante, inaceitável, portanto, quando não vai de encontro ao horizonte expectacional dos leitores apoiados num determinado conjunto de normas e de princípios. Incluem-se, obviamente, as próprias convenções do género que funcionam como um sistema de forças e de resistências naturais às quais a narrativa obedece sem sempre dar a entender que as percebe e sem as ter que nomear.

Obviamente que nem todas as obras literárias se mantêm reféns da opinião plebiscitária dos leitores. E aqui, o que temos é uma escrita comprometida com uma ordem particular ou uma imaginação ilimitada. Desta feita, L’originalité radicale, l’indépendance d’un tel parti le situe bien, idéologiquement, aux antipodes de la servilité du vraisemblable (Genette, 1969 : 77).

Porém, como a verosimilhança implica a legibilidade da obra, sempre que o autor se apercebe que introduz elementos novos e que escapam ao domínio dos seus destinatários, ou que transgridem o quadro normativo em que se integram, adopta uma atitude pedagogia, didáctica, produzindo, a partir daí, um «verosímil artificial».

E, é, pois, uma espécie de «demónio explicativo», segundo Genette, que vai caracterizar muitos dos segmentos discursivos do romance colonial onde as explanações do narrador, jogando quer com motivações extraliterárias, quer com as leis da própria narrativa, ne sont pás là pour le seul plaisir de théoriser, elles sont d’abord au service du récit: elles lui servent à chaque instant de caution, de justification, de captatio benevolentiae, elles bouchent toutes fissures, elles balisent tous ses carrefours (p. 81).

Em relação, portanto, à literatura colonial, podemos identificar, a partir dos próprios textos, a prevalência de determinadas normas ou princípios de ordem estética, moral, cultural, civilizacional que regem as mundividências e condutas particulares das personagens (e do próprio narrador). Todos esses aspectos traduzem-se, por exemplo, em ideias que têm a ver com a acção civilizadora do homem branco, a inferioridade do negro, a hegemonia da cultura ocidental, etc., e que acabam por constituir pontos de referência em termos de aceitação do que essa literatura veicula, isto é, em termos de verosimilhança. Verosímil que, na vertente mais marcadamente ideológica da literatura colonial, traduz um pretenso ecumenismo que se liga, para todos os efeitos, às expectativas do leitor pretendido.

Há, pois, uma espécie de convencionalidade que determina que um texto seja lido não só como literário, mas também como verosímil. Trata-se de um hyper-protected cooperative principle (Culler 1997: 24), que assegura a comunicação literária. Segundo a esclarecedora perspectiva de Jonathan Culler, o leitor corresponde aos dispositivos do texto, lendo-o e construindo o(s) sentido(s) em função do que lhe é proposto, resultando a eficácia da comunicação da cooperação que se estabelece entre a entidade autoral e o leitor através do próprio texto. Fazendo a interpretação um elemento determinante, tal como Wolfgang Iser, Culler (p. 29) considera que

the literary work is a linguistic event which projects a fictional world that includes speaker, actors, events, and an implied audience (an audience that takes shape through the work’s decisions about what must be explained and what the audience is presumed to know).

Da mesma forma, o «princípio cooperativo hiperprotegido», afinal na mesma linha do «hipercódigo» referido por Antonio Risco, e tendo em conta que estamos perante entidades históricas (autor-obra-leitor), concede, também, ao verosímil uma dimensão histórica. Isto é, aquilo que é verosímil numa determinada época, num determinado contexto, pode deixar de sê-lo, noutros.

Quer dizer, da mesma forma que o realismo de Flaubert, Balzac, Stendhal, Dostoiewski ou Dickens vai, de certa forma, alterar ou alargar o conceito de verosímil – dominado, tradicionalmente, pela representação dos comportamentos exemplares das personagens ligadas às classes hegemónicas –, através da transferência do protagonismo para personagens vulgares como camponeses, criados, comerciantes, operários, o realismo colonial, por seu lado, vai também alargar esse mesmo conceito de verosímil. Isto é, ao permitir que personagens de indivíduos não brancos, mesmo que condicionadas no seu comportamento e na sua atitude mental pela perspectiva manipuladora e etnocêntrica do narrador, mesmo que em confronto com a personagem do colono, joguem papéis determinantes na história narrada como são os casos dos romances Omar Ali, A Neta de Jazira, Fogo III, Raízes do Ódio ou Ku Femba.

Atendendo a que a literatura colonial é direccionada para um público determinado, para um destinatário específico, localizado espacial e temporalmente, interpretar essa mesma literatura torna-se, hoje, um exercício hermenêutico desafiador que requer reenquadramentos históricos e culturais. Isso, tratando-se de um leitor deslocado, ou desconhecedor, em absoluto, do contexto espácio-temporal em que essas obras foram produzidas e profusamente lidas. Trata-se, portanto, de um distanciamento que, apesar da carga informacional reunida nos textos, pode condicionar a recepção das obras.

Isto é, se é verdade que o autor, no extremo do processo comunicacional que desencadeia, é condicionado pelos códigos histórico-culturais que lhe são coevos, o leitor de hoje irá, como é óbvio, na interpretação do texto, aplicar os códigos que fazem parte do seu universo cultural. Apesar da inevitável reconstituição a que será com certeza submetida e partindo do pressuposto que ela assegura a plena legibilidade dos textos, a ideia de verosimilhança irá apresentar contornos mais complexos e fugidios, mas sempre como caução da própria ideia de representação.



3. O múltiplo e o diverso

Excerto 1

Gritam, galos do mato, empoleirados nos braços musculosos dos imbondeiros. Afloramentos de granito, como répteis gigantescos, aquecem o dorso negro ao flamejar do soalheiro. Assustadas, refugiam-se codornizes, em voo estrepitoso, no mais denso das moitas de espinheiras. Esbracejam, em atitudes desengonçadas de esqueleto, os galhos rugosos de mitiáti, pobremente enfolhados.

!Paisagem monótona, despida de pompas, assoalhada mas triste, a perder-se por léguas!

Luta renhida pela existência! O folhedo a pedir angustiado à calidez do céu uma gota benéfica de orvalho; raízes contorcidas, espalmadas rés-vés com o solo, serpeando ou enroscando-se como jibóias; garrunchos grosseiros e disformes, gretados e negros; troncos encarquilhados como velhos mendigos, curvados em gibosas nodosidades; raízes aéreas, grossas como cordas, em fartas madeixas pendentes dos braços gretados das escassas frondes, outros tantos dedos inertes, caídos em atitude de desalento, a pedir inutilmente ao espaço a esmola que a terra implacável lhes não quer dar.

E sempre assim, léguas e léguas andadas pelo mesmo brejo agreste, calcorreando por entre herbagens como fios de arame, duras e praganosas, furtando o corpo às garras dilacerantes de espinheiras arbustivas, revoltadas contra a sua morte malfazeja.
(In Eduardo Correia de Matos, Sinfonia Bárbara, pp. 87-88)


Excerto 2

Passou Dezembro, ardente, dos dias longos. Janeiro correu célere. Fevereiro apareceu mais quente. O chão do Muende era enorme ventre inchado, onde germinavam as sementes, que o branco da cantina oferecera aos negros. Viam-se-lhe as protuberâncias, quando a semente, feita planta, empurrara a terra, para vir espreitar o Sol – e crescer, cheia de mornidões revigorantes, criadoras de seivas fortes. E as hastes delicadas das plantas se tornaram vergônteas rijas, gingando ao sabor da brisa. Às noites, receberiam a frescura dos cacimbos, que as tomavam de cima a baixo.

Os milharais tinham as espigas maduras. No topo das hastes fortes, as barbas do milho tinham mudado de cor: haviam passado do loiro dourado ao castanho escuro.
(In Rodrigues Júnior, Muende, p. 175)


Excerto 3

A indumentária de Catuane, essa é que era realmente assombrosa. Fazia a inveja e a cobiça de quantos a admiravam. Botas de cano largo, até meio da perna, de solas ferradas; calções à Chantily, às riscas azuis e brancas, chapeadas de cabedal em figuras geométricas; espessas meias vermelhas de lã que chegavam aos joelhos, saindo dos canos das botas; uma blusa feita de retraços de pergamóide de diversas cores, unindo ao meio por um fecho éclair; além dum casacão enorme, tão felpudo que era inteiramente aceitável ter pertencido ao espólio de algum alpinista. Na cabeça, um grande chapéu à cow-boy, de alta copa e de aba larga revirada, com duas penas de galo espetadas no alto. Óculos preto e uma sombrinha de senhora completavam a carnavalesca indumentária. A atravessar o lóbulo de uma das orelhas uma caneta de tinta permanente.
(In Eduardo Correia de Matos, Terra Conquistada, pp. 176,177)


Excerto 4

Cafere e as irmãs trouxeram, para a esteira, a panela de farinha, a carne de cabrito – e o tacho de ferro, com o molho de amendoim. O dono da casa iniciou o banquete, enfiando na panela maior a mão vazia, para a tirar cheia de farinha de milho cozida. Meteu, depois, no molho de amendoim, a bola que fizera dela – e foi comendo, devagar, enquanto a outra mão segurava um pedaço de carne assada, que ofereceu a Pedro da Maia. Pedro da Maia imitou Bambo, fazendo com a mão nua, uma bola de farinha cozida, que mergulhou no molho gorduroso […]

Quando nada ficou nas panelas, encostou à parede as costas largas, estendeu mais as pernas – e arrotou. Pedro da Maia fez um esforço – e arrotou, também, num acto de delicada cortesia, que Bambo agradeceu com um sorriso tão largo, que lhe deixou os dentes à mostra.
(In Rodrigues Júnior, Muende, pp. 73, 74)


Excerto 5

- … Não trazemos bandeirinhas como quando somos empurrados até Porto Amélia, e que uma vez levámos a Nampula para ver pessoa grande de Lisboa. Alguns gostaram ir. Era passeio de graça mesmo, com outra alimentação. Negro com cabeça maior nunca pode gostar destes passeios porque dinheiro gasto em bandeirinhas morreu assim mesmo, quando podia empatar-se para termos água perto das palhotas…
[…]
- Só falar não é nada, senhor governador. Fartos aguentar má vida! Vê esta gente ainda molhada? Choveu toda a manhã. Aguentamos porque desejamos ficar sem brancos nos macondes. [Itálicos nossos]
(In Agostinho Caramelo, Fogo III, pp. 225, 226)


Excerto 6

Fomos sempre mais um povo de aventureiros, nada ambiciosos, com pouco nos contentamos. Ligados, direi antes, amarrados a um atavismo das épocas recuadas em que as caravelas despejavam no reino carregamentos de especiarias vindas da costa do Malabar, continuamos até à presente época com o mesmo sistema, olhos fechados à realidade ultramarina. […] Tivemos sempre nos povos que civilizámos amigos fiéis que nada nos pediram, que defenderam as nossas fronteiras, que trabalharam resignadamente sem um queixume, sem um reparo. Somos um povo multirracial, vivemos sempre em paz e concórdia, tivemos essa felicidade, não a deixemos hoje fugir com posições de intransigência, de incompreensão.
(In Eduardo Paixão, Cacimbo, p. 249)


Atentando nestes seis excertos, consideramos que são vários os elementos que garantem a sua aceitabilidade e que, portanto, os tornam verosímeis aos olhos de múltiplos e diferentes leitores. Isto sem descurar o desfasamento referencial entre a realidade representada, o contexto onde se inserem muitos desses leitores e o seu horizonte de expectativas.

Vamos, pois, sem deixar de equacionar como se processa essa representação – que oscila entre a narração, o diálogo e a descrição – identificar o que é aí representado. Com esta identificação, procuramos por um lado, interligar o conceito de verosimilhança, enquanto dimensão representacional fundamental, com uma produção literária determinada e, por outro, deixar em aberto a abordagem das categorias, dos elementos e das modelizações que participam dessa mundividência específica.

Assim, no primeiro excerto, construção com fortes marcas impressionistas, deparamo-nos com uma representação dominada pelo espaço. Espaço que, apesar de humanizado pelo olhar da entidade que o recria, é essencialmente de desolação e de solidão.

Veremos, adiante, como o espaço é uma categoria determinante não só dos movimentos narrativos particulares, mas também da representação da colonialidade literária[2], em geral, subordinada a percepções e vivências em que os lugares, sejam eles privados ou colectivos, sejam eles reais ou imaginários, interiores ou exteriores, surgindo como referências dolorosas e insuportáveis, por um lado, ou com uma dimensão sortílega e compensatória, por outro, acabam por se instituir, todos eles, como verdadeiramente estruturantes.

No segundo excerto, temos o tempo como um dos centros do processo representativo. E o tempo, melhor, a sua fluência aparece-nos aqui tanto no seu movimento objectivo, homogéneo e cronológico (Dezembro, Janeiro, Fevereiro), como nos surge fundamentalmente enquanto efeito estético, de tal modo que é através dos motivos e dos elementos da natureza que nos damos conta do tempo que efectivamente evolui: «viam-se-lhe as protuberâncias, quando a semente, feita planta, empurrara a terra, para vir espreitar o Sol – e crescer…».

E é muito na relação com o espaço e os seres que é marcada a representação do tempo no romance colonial (daí a ideia bakhtiniana de o romance ser, no essencial, um cronótopo[3]) em que a tangibilidade realista é dominante. Casos há, como iremos verificar, em que o tempo mais do que uma dimensão categorial da narrativa apresenta-se como o grande protagonista. Seja o tempo como «mobilidade imóvel», segundo Bergson – quase sempre tempo de inacção e de despojamento –, seja o tempo no seu movimento incessante: vertiginoso ou lento, edificante ou desestruturante.

Reflectindo uma tensão metonímica, a descrição da indumentária da personagem conduz-nos, no terceiro excerto, à representação do ser na sua condição física e psicológica. Nesta representação, com inequívocos contornos caricaturais, interagem duas visões do mundo; por um lado, a do narrador (de quem vê) que polvilha a sua descrição com doses calculadas de juízos de valor (realmente assombrosa, inteiramente aceitável ter pertencido ao espólio de algum alpinista, à cow-boy, carnavalesca indumentária).

Por outro lado, temos a visão do mundo de Catuane, aquele que é visto, e que não sentindo o ridículo experienciado pelo narrador vive, no seu próprio envaidecimento, a importância e a sobrevalorização da sua pessoa, pois: «Fazia a inveja e a cobiça de quantos o admiravam».

A partir desta dicotomia entre o olhar do narrador e o ser objectalizado, o Outro, neste caso, institui-se numa rede interpretativa, uma espécie de «intriga ética», ou «uma não-relação», segundo Lévinas, e que representa uma das imagens de marca de toda a literatura colonial. Tal é a carga preconceituosa que domina toda essa interpretação – vista nos dois sentidos, isto é, do observador para o observado e vice-versa – que nos parece incontornável a ideia de que na interpretação do Outro, a subjectividade do observador sobrepõe-se de modo irredutível.

No quarto excerto, confrontamo-nos com a dimensão cinética da narrativa e que nos é veiculada através da representação do conjunto de acções das personagens. Todo esse movimento apresenta-se dominantemente com virtualidades diacrónicas. Trata-se de uma ordem não só cronológica, mas essencialmente lógica. Desde o momento que precede o repasto, em que Cafere e as irmãs trazem a panela de farinha, a carne de cabrito e o molho de amendoim, até o momento em que os comensais arrotam, temos uma representação sugestiva em termos de cadencia cinematográfica, em que os detalhes mostrados acabam por adquirir valor próprio. E esta é uma das características maiores da narrativa colonial que, no desvelamento de uma realidade alienígena, explora no pormenor o fardo antropológico e histórico de uma civilização. Mesmo com as distorções e as leituras enviesadas que se reconhecem.

Com a figuração da linguagem, que encontramos no quinto excerto, vem à superfície o conceito de auto-representação. Isto é, à linguagem que fala a linguagem. Gesto que é aqui desenvolvido através de uma tipicidade discursiva que, neste caso, é uma desfiguração sintáctica do português-padrão: alguns gostaram ir. Desfiguração que pode também ser a nível semântico: Negro com cabeça maior, isto é, negro inteligente.

Esta transfiguração linguística insere-se no contexto mais vasto do afã realista da literatura colonial que procura representar todo um universo em que a exploração da diferença se institui como um fenómeno verdadeiramente marcante em termos de anulação do Outro. A diferença que é referida no nosso estudo tem a ver não só com o Outro, que é encontrado num espaço outro, mas também com aquele que o encontra, com as construções que aos dois se referem e, finalmente, com quem evidencia essa mesma diferença. Os que vêm de fora (os europeus) assumem-se, assim, como diferentes em relação ao espaço de chegada do mesmo modo que se irão tornar gradualmente diferentes (embora não essencialmente outros) em relação ao lugar de origem (Europa).

Voluntária ou não, a vertente auto-representativa da linguagem acaba por ser uma credencial, mesmo que obedecendo a desígnios extraliterários no sentido da depreciação e da inferiorização cultural, que permite reconhecer alguma modernidade nesta literatura. E a modernidade institui-se, de modo particular, quando a linguagem se coloca no centro da criação literária, espaço de produção estética.

E o romance de Agostinho Caramelo, todo ele em ritmo dialogado, intercruzando falas distintas, com níveis de língua também distintos, é um exemplo destacado dessa vertente emancipatória do romance.

Como o último excerto, extraído de Cacimbo de Eduardo Paixão, confrontamo-nos com um dos aspectos mais carregados de intencionalidade da literatura colonial e esteticamente mais problemáticos: a representação ideológica.

Segundo Mukarowski (1975: 303-304), a «concepção do mundo pode significar quer a atitude que o homem de uma época qualquer adopta em relação à realidade, ou então, designa um determinado conteúdo ideológico». Se há uma Weltanschauung presente, explícita ou implicitamente, numa produção artística, essa parece ser, a todos os títulos, uma evidência no romance colonial, em geral, e neste texto, em particular.

E tratando-se, neste caso, de um manifesto exercício autognóstico – o de um povo que se repensa através da consciência de uma personagem – reconhece-se aí uma das imagens de marca de qualquer ideologia: a de ela impor-se como um sistema de ideias dominante. Por conseguinte, apesar da projecção de um aspecto negativo, ao deixar a descoberta uma verdadeira «ferida narcísica», como diria Freud, com a afirmação de que «fomos sempre mais um povo de aventureiros, nada ambiciosos, com pouco nos contentamos», há, logo de seguida, na fala da mesma personagem, uma genuína vangloriação, uma hipervalorização cauterizante e sublimatória de todos as imperfeições: «Somos um povo multirracial, vivemos sempre em paz e concórdia, tivemos essa felicidade, não a deixemos hoje fugir com posições de intransigência, de incompreensão.».

A representação do ideológico que é recorrente na literatura colonial – e que muitas vezes se fica pelas entrelinhas – acaba por ser decisiva na concepção do mundo que aí prevalece. A ideologia constitui, afinal, e ainda segundo Mukarowski (1975: 311), «um dos elementos da obra de arte, mas um elemento que funciona como laço eficaz entre a arte e toda a ampla esfera da cultura humana e as suas diversas componentes como a ciência, a política, etc.».

Posição que, num outro contexto, é partilhada por Althusser (Jameson, 1981: 30) para quem a ideologia é uma estrutura representacional que permite ao sujeito imaginar a sua efectiva ligação com a estrutura social ou lógica da História.

Portanto, analisar a função ideológica inscrita no romance colonial pode ser determinante para entender as diferentes interacções estabelecidas pelo próprio texto. Facto de que nos dá conta Jenny Sharpe (1993: 8-9) quando afirma: I also [como Foucault] consider a theory of ideology to be crucial for addressing cultural constructions of race, class, and gender.

Considerando, na esteira de Althusser, a ideologia como uma «second-degree relation», a mesma estudiosa adianta que ideology is not «the imaginary» but the articulation of na ideal (Womanhood, Nation, Democracy) with the relations that make that ideal active (gender and sexuality, race and ethnicity, class and status).

Se eh verdade que a literatura, do ponto de vista estético, fica caucionada sempre que a motivação ideológica é evidente, por outro lado, não deixa de ser interessante perceber o texto literário coo um espaço dialógico, ou melhor, antagonistique dialogue of class voices em que acaba por se sobrepor a voice of a hegemonic class (Jameson, 1981: 79). Neste caso, a voz que determina que a literatura colonial seja exactamente o que ela é: colonial.

[1] A nota curiosa do preceito mimético na literatura ocidental é que já não se trata de imitar a realidade, mas os modelos que asseguram a aceitabilidade dessa imitação. Esta é uma ideia que atravessa diagonalmente as reflexões de Erich Auerbach (1946) e Michel Foucault (1966).
[2] Como antes já foi sistematizado, entendemos por colonialidade literária o conjunto de marcas específicas que no texto traduzem a hegemonização cultural e civilizacional do universo das personagens identificadas com o colono, através de formas discursivas, comportamentais ou psicológicas.
[3] Na definição avançada por esse teórico russo, chronotope, ce qui se traduit, littéralement, par «temp-espace»: la corrélation essentielle des rapports spatio-temporels, telle qu’elle a été assimilée par la littérature (Bakhtine, 1975 : 237). Sobre a origem do termo, esclarece-nos o autor que : Ce terme est propre aux mathématiques; il a été introduit et adapté sur la base de la théorie de la relativité d’Einstein.

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