sábado, 14 de novembro de 2009

Jaimito




Olá, sou o Jaimito. Com certeza tu já me conheces mas, infelizmente, não te lembras de mim porque, apesar de ter falado comigo muitas vezes, nunca prestaste atenção em mim.

Muitas vezes ajudei-te com as compras e outras muitas nem isto deixaste-me fazer, pois meu aspecto dava-te asco ou, pior, tinhas medo de que eu te roubasse.

E talvez até tivesses razão no teu medo. Sim, talvez eu te roubasse mesmo.

Aprendi, quando passei a maior parte dos meus 11 anos nas ruas da Beira, que roubar e mentir são garantias de sobrevivência. E sim, muitas vezes inventei sofrimentos falsos para apelar à tua consciência e ao teu bolso. O que não sabes é que talvez não suportes saber dos meus verdadeiros sofrimentos, que nem eu mesmo quero lembrar.

Prefiro afogá-los em ilusões transportadas pelo álcool que consigo comprar quando tu alivias tua consciência com alguns trocados.

Sei que não queres saber da minha história, mas hoje vais ter de ouvi-la. Pelo menos o que consigo contar...

Decerto fui amado por alguém, pois tenho nome. Ninguém dá nome a outra pessoa sem amá-lo. E este meu nome, no diminutivo, faz-me lembrar algum carinho. Se bem que também não sei direito o que é esse tal de carinho. É uma palavra bonita, que sempre vem junto com outras palavras como “abraço”, “afago”, “preocupação”, “beijo”. Isso, que me lembre, nunca tive. Quem sabe aquela pessoa que me deu o nome quisesse me ensinar o que é tudo isto, mas desconfio que seja a minha mãe e ela já não está mais por aqui.

Não tenho pai ou mãe. Vivi com um tio que dizia que meus pais haviam morrido. Este tio também morreu.

Desde então, apesar de ter algum lugar para ficar, na casa de alguma tia, preferi viver nas ruas. Durmo por aí e sempre consigo algum trocado para abrandar a fome.
A vida nas ruas não é muito fácil. Certa vez, numa brincadeira com meus amigos, fui queimado. Tenho cicatrizes horríveis nos pés, com a pele toda repuxada. Também tenho cicatrizes de cortes no rosto, resultado das agressões que sofri e das que tentei infligir.

Mas as piores cicatrizes estão na minha alma. No hospital, onde já sou velho conhecido, dizem que não tenho jeito. Sou um menino mal, violento, dado a acessos de raiva. Sempre que passo por lá amarram-me na cama e dão-me tranquilizantes. Por um lado é bom, tenho cama e comida por alguns dias, mas como tenho muito medo de tudo, sempre dou um jeito de fugir.

Já estive em um orfanato. Rendeu-me uma das cicatrizes no rosto, uma das grandes, acima do olho. Não conto como foi, só que foi.

Não, não tenham pena de mim! Não é por isso que conto esta história. Agora, neste preciso momento, não preciso de pena.

Estou internado na psiquiatria do Hospital Central, com cuidados. Precisarei da pena de vocês quando voltar às ruas. Precisarei que sintam pena de mim para darem-me os trocados de sempre.

Como vim parar ao hospital novamente? Conto já...

Consegui um dinheirinho, mas não conto como. Decida-se pela resposta mais lógica... alguém com a consciência muito pesada mesmo deu-me quinhentos meticais ou, talvez, eu tenha roubado de alguém sem consciência.

Outros que também andam pela rua souberam disso e tentaram tirar-me o dinheiro. Espancaram-me. Eu, como estava bêbado, não consegui reagir muito bem e desmaiei. Fiquei sem o dinheiro e todo machucado. Alguém que passava trouxe-me ao hospital e aqui estou.

Como sou homem, forte, não tive grandes lesões. Como dizia antes, as maiores cicatrizes estão na minha alma.

Uma senhora que eu costumo ajudar com as compras, tendo a consciência pesada, veio ajudar-me. Ficou comigo durante algum tempo e eu, penso que pela primeira vez em muito tempo, senti-me protegido. Segurou a minha mão enquanto eu tirava raio-x. E eu deixei-me chorar. Aquela sensação de proteção foi tão estranha que não sabia se gostava ou não. Mas chorei, apesar de saber que gente como eu não tem o direito de chorar.

Acho que estava assustado. Com o raio-x e com a proteção. Ela disse que iria ajudar-me. Saiu e voltou com um sumo, mas a enfermeira-chefe, já minha amiga e uma das minhas mães, uma alma iluminada, deu-me coisa melhor... Deu-me o seu almoço! Arroz de tomate e galinha. Sim, aqui no hospital há gente muito boa mesmo! Aproveitei para ser criança um pouquinho – lembram-se? Tenho onze anos! – e pedi àquela senhora da consciência pesada uma bicicleta.

Na verdade, queria ser como as outras crianças que vejo por aí. Ir à escola, brincar com os amigos, andar de bicicleta. Mas não tenho casa onde guardar a bicicleta, não tenho pais que me protejam quando eu estiver a andar de bicicleta e alguém quiser roubá-la. Acho que não posso mesmo ter uma bicicleta.

Do que eu preciso, tu deves estar te perguntando...

Eu acho que só preciso que continues com a tua consciência pesada e me dês os trocados de sempre.

Mas Deus sabe que eu preciso de amor, carinho e tratamentos. Tenho problemas psicológicos, sim. Às vezes sou agressivo, tenho acessos de raiva. Mas são as cicatrizes da minha alma que ardem e preciso fazer com que a dor desapareça.

Deus sabe que eu só preciso ser criança, com todos os direitos que cada criança tem.

Ah! Só para lembrar!!! Como eu, existem milhares por aí. Mas isso tu já sabes e te apavoras e dizes “Meu Deus!” cada vez que sabes de alguma barbaridade que aconteceu conosco. Abres a carteira, alivias tua consciência e segues em frente.

Nós, os Jaimitos da rua, continuamos aqui. Talvez seja uma maneira de Deus lembrar-te que a vida não é tão simples quanto pensas.

Agora despeço-me. Sem beijos nem abraços, porque, tenho certeza, não gostarias de me abraçar ou beijar.

Adeus, logo nos veremos, assim que eu sair do hospital e voltar para as ruas.

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Obs.: Esta foto não é do Jaimito, encontrei no Google, mas nem precisava... para conhecer o Jaimito, é só olhar para qualquer criança de rua que encontrares...

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