sábado, 7 de junho de 2008

«Os Intérpretes» de Wole Soyinka

Por P. Manuel Ferreira

O nigeriano Wole Soyinka formou-se muito na Inglaterra, onde exerceu parte do seu professorado. Dedicou-se sobretudo ao teatro. A sua peça «O Leão e a Jóia» teve grande êxito, tanto na Inglaterra quanto na Nigéria. Era revolucionária, enfrentava o problema da decadência dos valores da cultura tradicional, em decorrência da invasão dos valores ocidentais. Na festa da Independência da Nigéria, representou-se a sua «Dança dos Bosques». De 67 a 69 esteve preso por acusações de carácter político. Foi actor no primeiro filme nigeriano, baseado numa peça sua. Foi galardoado como Prémio Nobel de Literatura, em 1986.

Com que chave interpretativa interpretaremos «Os Intérpretes»?

Parece-me boa esta: como vimos, Soyinka é sobretudo um dramaturgo. Com razão o consideram o melhor dramaturgo africano de língua inglesa. Este romance divide-se em duas partes: a primeira com 10 capítulos e a segunda com 8. Transpondo para linguagem dramatúrgica, diremos que se trata de uma grandiosa peça dramática, em dois actos, um com 10 cenas, outro com 8.

Quem são «Os Intérpretes»?

São um grupo de 6 jovens nigerianos, formados geralmente no estrangeiro, culturalmente suspensos e mal instalados entre a cultura tradicional africana e as estrangeiras sobrevindas.

O Sekoni, filho de muçulmano e cristã, gago, engenheiro e escultor, genial, rejeitado por não alinhar com a alta corrupção. Inventor que, em vez de ser acolhido, metia medo e era repelido. Vítima da sua competência e honestidade. Opinava que a vida é a cúpula da continuidade. A cúpula da religião é que faz de ponte entre vivos e mortos (p. 16); a vida, o amor são caminhos para a cúpula universal (p. 34); uma mulher é a cúpula do amor e a cúpula da religião (p. 35); na cúpula do cosmos, há completa unidade da Vida. Vida é como a divindade, a pluralidade das suas manifestações é apenas uma ilusão… a vida, ou a morte, ambas estão contidas na cúpula única da existência. Tinha a ideia fixa, angustiada, de ter pedaços de carvão na boca (p. 34). Morreu atropelado por um camião.

O Sagoe, jornalista formado na América, filho de um milionário. Tinha muito talento, embora o desperdiçasse na boémia.

A Dehinwa, namorada de Sagoe, é a única mulher do grupo. Formada na Inglaterra graças às economias da sua mãe, por quem tinha um grande respeito, ao ponto de seguir intransigentemente a sua tradição da rigorosa virgindade até ao matrimónio, posição que Sagoe detestava, mas respeitava.

O Egbo, salvo das águas em menino, quando o pai, um respeitável reverendo (p. 24), evangelizador ambulante, e a mãe se afogaram quando a canoa foi ao fundo. Era incessantemente atraído pelo modelo dos mortos (p. 18). Perguntava: se os mortos não são suficientemente fortes para estarem sempre presentes na nossa existência, não poderiam ficar como estão, mortos? (p. 16). Achava que os mortos têm para com os vivos o dever de serem esquecidos rapidamente, proveitosamente (p. 135). Não devemos interferir com eles, porque então eles emergem, forçando os vivos a dilemas terríveis (p. 136). De rapazinho, rezava, deitado à beira da água com uma orelha colada ao solo, junto das águas em que os pais tinham morrido. Amigo do silêncio e da profundidade das águas, resolvia tudo numa simples alternativa de afogamento. O grupo considerava-o mulherengo. Até já em miúdo, um professor dizia que ele era maníaco sexual. Enquanto tinha a amante Simi, engravidou uma universitária, o que lhe trouxe o desgosto definitivo.

O Kola, professor de arte na Universidade. Tentava compreender tudo, que tentava clarificar as peças dentro das vestes acomodatícias do tempo, sentiu, mais tarde, num momento de tranquilidade e ordem, que o que faltava naquela noite era o poder de sacudir os acontecimentos, separando-os um a um e colocando-os em etapas sucessivas do período de criação (p. 269).

O Bandele, professor economista. Era uma imagem intemporal meditando sobre seres menores (p. 269). Velho e imutável, como as mães reais do trono de Benim, velho e cruel como o ogboni em conclave pronunciando a palavra (176).

E o Lasunwon, de quem se diz menos que dos outros. Era muito realista, seco, positivo.

Quem é que «Os Intérpretes» interpretam?

A si mesmos: suas vidas, recordações, ideais, contradições, traumas. E a sociedade, do ponto de vista sócio-cultural e político: Qual é o africano moderno que não vomita política? (p. 135). Sobretudo o problema da corrupção: chefes novos-ricos incompetentes, falsos, sujos, tudo show, mas sem conteúdo moral e intelectual e cultural. Luxo requintado a combinar com miséria nojenta. Corrupção em todos os níveis e aspectos. Sagoe foi descobrindo como os velhos e chefes eram indignos de respeito. Um mundo cão, onde cada um em que se defender sozinho (p. 109).

E qual dos seis será o protagonista?

A princípio, pareceu-me Sekoni. Mas, quando estava quase a identificá-lo e defini-lo, eis que, logo ao princípio do 2º acto, ele morre-me estupidamente debaixo de um camião desenfreado.

A seguir, pareceu-me ter reunidos os dados para nomear Sagoe. Mas ele desapareceu-me da cena, quase até ao fim.

Depois, apostei em Kola. Mas também ele não era.

E, finalmente, a maneira como fecha o pano parece convencer que é o Egbo. Tudo começa por ele e tudo por ele termina. No fim, todos ficam a saber que ele é que era o pai da criança da aluna de Bandele. Escândalo geral na universidade. Os comentários de professores e outra gente mais velha: O padrão da moral baixou realmente muito… (p. 274). O país inteiro está mergulhado numa apatia moral (p. 274). A geração actual é demasiado corrupta (p. 275).

Egbo sente-se rejeitado, amaldiçoado, perdido… os olhos eram faróis num oceano de singular tristeza… uma alternativa para um homem, que se afogava… sim, pensava Egbo, é apenas a alternativa para um afogamento (p. 276). Os pais tinham morrido afogados e ele salvara-se. Mas, finalmente, não escapou de se afogar, nesta outra espécie de águas profundas e lamacentas.

Mas, no fim das contas, cada um dos seis Intérpretes escapa à nossa nomeação para protagonista. Digamos que o protagonista, afinal, não é nenhum deles, em particular, mas todos eles, como um todo.

E à volta dos seis, como uma espécie de satélites necessários, giram outras personagens como: Simi, a misteriosa e intrigante amante de Egbo; Lázaro, o albino, que afirmava ter morrido e ressuscitado e fundou uma igreja rara e reunia à sua volta uns apóstolos, vindos da criminalidade; Noé, o pilha-galinhas a quem Lázaro pretendeu transformar num santo apóstolo e que morreu atirado na varanda do Joe Golder, vítima deste americano maricas; o professor Ayu, médico, complexado; e a sua esposa Mónica, uma branca desinibida.

«Os Intérpretes» lê-se com crescente interesse e entusiasmo. É como se estivéssemos a assistir a uma grande peça teatral de grande intensidade humana. Algumas cenas parecem passar-se aqui ao nosso lado. Na 8ª cena do 1º acto, uma multidão anónima furibunda corre atrás de um pilha-galinhas, com a clara intenção de o linchar. Na 2ª cena do 2º acto, assiste-se a um culto religioso todo charlatanice, ignorância e uma descarada demagogia. É perante esse espectáculo caricato que Bandele observa:
- Sagoe já tem o seu artigo. Kola encheu mais um espaço vazio na sua tela. E tu, Egbo, que vais tu extrair de tudo isto?
- O conhecimento da nova geração de intérpretes…

Um comentário:

  1. Olá!

    Gostei muito do texto...estou pesquisando sobre a Vida e a Obra de Soyinka.. se puder enviar algo, estarei bem grata.

    adilmachado@yahoo.com.br

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