terça-feira, 10 de junho de 2008

Valores e atitudes fundamentais da geração do «Orpheu»

Capa do 1º número da revista Orpheu,
autoria de José Pacheco

Para os modernistas portugueses, «[...] ter um pouco de Europa na alma», - frase de Fernando Pessoa que Sá-Carneiro destaca entusiasticamente na sua correspondência -, funcionava praticamente como uma divisa orientadora de todos os actos estéticos. Este querer-ser europeu era também sinônimo de uma dupla meta, fundamental para a compreensão do Modernismo e do seu caráter vanguardista. Tratava-se do desejo de universalidade que impunha a superação das limitadas fronteiras portuguesas e, simultaneamente, de uma vontade de ruptura com a literatura do passado que sugeria uma viragem rumo ao futuro e despertava o fascínio por tudo quanto fosse inteiramente novo. Assim Pessoa, mantendo certa euforia profética e nacionalista que já lhe era patente nos tempos da colaboração na revista A Águia, afirmará da geração de Orpheu:

«Não somos portugueses que escrevem para portugueses; [...] somos portugueses que escrevem para a Europa, para toda a civilização; nada somos por enquanto, mas aquilo que agora fazemos será um dia universalmente conhecido e reconhecido. [...] Não pode ser de outra maneira, realizamos condições sociológicas cujo resultado é inevitavelmente esse. Afastamo-nos de Camões, de todos os absurdos enfadonhos da tradição portuguesa e avançamos para o futuro.»(1)

Para além da exigência de absoluta originalidade e de pleno cosmopolitismo, misturados com um patriotismo muito especial, o Modernismo representava ainda, como se vê, uma importante afirmação transnacionalista e continha uma nítida dimensão «futurante», renovadora e agressiva. Através delas separava-se completamente do passado, orientando-se projetivamente para a descoberta de novas expressões da sensibilidade estética. Por outro lado, distinguia-se em absoluto do nacionalismo saudosista seu contemporâneo, romanticamente «fixado» num passado mítico de cuja recuperação fazia depender a salvação pátria.

Assim, a imperiosa reivindicação de novidade e modernidade transmitida por «Orpheu» passava obrigatoriamente por uma perspectivação européia do «modo de ser literário» português. Tratava-se de efetuar uma profunda e radical revisão de toda a literatura nacional através de um novo espírito, liberto dos «fantasmas» do servilismo e de qualquer sentimento de inferioridade face ao estrangeiro. Esta nova «consciência da Atualidade» surgiria então, pelo contrário, plenamente afirmativa e orgulhosa de si e da cultura que representava.

Em suma, para abolir o tradicionalismo e atenuar o provincianismo caracteristicamente portugueses, os novos poetas pretendiam instaurar uma nova «visão do mundo» capaz de revolucionar e reformar totalmente a mentalidade cultural nacional. Só uma estratégia de abertura e, simultaneamente, apropriação criativa dos valores europeus, viabilizaria o surgimento de uma sensibilidade estética diferente. Por sua vez, esta seria a única forma de realizar um reencontro decisivo da genuína «alma literária nacional» consigo mesma.

O Modernismo português incluía em si o projeto de uma estética aberta, essencialmente expansiva, eclética e disponível a tudo quanto se mostrava diferente, estranho, exótico. Dela faziam parte uma extrema plasticidade e versatilidade, características positivas da alma portuguesa que apareceram assim renovadas e multiplicadas pelos poetas órficos, através de uma tendência, que podemos considerar genérica, para a diversificação estética expressa, designadamente, pelo delírio sensacionista do «ser tudo de todas as maneiras». Ou, utilizando a agressividade tipicamente futurista, em forma de «Ultimatum»:

«Só tem o direito ou o dever de exprimir o que sente, em arte, o indivíduo que sente por vários. [...] O que é preciso é o artista que sinta por um certo número de Outros, todos diferentes uns dos outros, uns do passado, outros do presente, outros do futuro. [...] Nenhum artista deverá ter só uma personalidade.» (2)

Implicando uma dispersão e um desdobramento sistemático em todas as práticas culturais e potencialidades civilizacionais possíveis, esta experiência de pluralidade era a única regra - embora paradoxalmente anárquica - compatível com esse «maravilhoso movimento sintético» que foi «Orpheu».

É importante salientar ainda, o mais amplo alcance desta missão indisciplinadora de «Orpheu», que consistia na tarefa de «ampliação» do «psiquismo nacional». Tratava-se de criar civilização fazendo arte e fazê-la sobretudo em função de uma irrequieta busca de libertação dela mesma e do ser-artista. Tal revelava a consciência, natural para o artista moderno e presente nos nossos novos poetas, da implicação essencial existente entre a arte e a vida. Para além disto, também a radicalidade da sua opção pela arte, essa «aceitação sem limites da seriedade da poesia» fez, como nota Eduardo Lourenço, «a importância única da geração de Orpheu»(3).

Em suma, os órficos consubstanciaram valores e atitudes fundamentais da modernidade, tendo sido entre os portugueses os únicos testemunhos vivos da crise geral e consequente procura de novos padrões de toda a civilização ocidental então em curso. O seu «sê plural como o universo» reflete a fragilidade e o nihilismo de toda a consciência moderna, verdadeiramente uma «consciência infeliz» ao descobrir a absoluta imprevisibilidade essencial de tudo, e também, o sentimento de incerteza infinita que a possibilidade - cada vez mais precária - de pensar a divindade ou qualquer unidade não pode deixar de lhe provocar.

Do ponto de vista estético-literário, o período que se situa entre 1912 e 1917 é fértil em «ismos». Não é fácil estabelecer entre eles uma sucessão linear ou uma hierarquização clara. Tanto nos textos de Pessoa, o poeta mais ativo quanto à criação dos diferentes movimentos, como em Sá-Carneiro, «seu confrade em paulismo e lugar-tenente interseccionista»(4), frequentemente aparecem as mesmas designações usadas em acepções diferentes ou trocadas relativamente à eventual data do seu aparecimento. O autor de «Mensagem» ressente-se de toda esta agitação dispersiva, caracterizando-a como «excesso de forças vivas em acção, conflito e evolução interconexa e divergente»(5).

Esta espécie de «estado anárquico» é explicável pela própria natureza da aventura modernista. Por um lado, os «ismos» surgem, na sua forma vertiginosa e efêmera, como experimentações desordenadas, tentativas indisciplinadas de substituição dos critérios estéticos existentes e de produção de outras expressões literárias mais adequadas à nova noção do mundo, da arte e até da vida. Por outro lado, o espírito mistificador, excêntrico, paradoxal e contraditório dos novos poetas, contribuindo propositadamente para o caráter fragmentário e hermético que a cada passo os textos apresentam e responsável pela consagração do «reinado da incoerência» na sua prática literária.

Certo tom «apalhaçado» que em parte permaneceu como emblema distintivo desta geração, pode ser interpretado como uma defesa contra a hostilidade e tacanhez com que o meio literário português recebia as manifestações da nova estética, funcionando, ao mesmo tempo, como uma espécie de aval protetor dessa ousadia de querer pensar e praticar a inovação sem limites. Por outras palavras, se o desejo de mistificação é um mal necessário em termos de vanguarda, é porque ele é «o preço que deve ser pago e sempre será pago por uma atitude que não tem por definição nenhuma garantia no passado»(6).

Na verdade, existe um modo de ser específico desta geração indissociável das suas opções estéticas. Como defini-lo? Trata-se de sensibilidades superiormente requintadas e fortemente individualistas, determinadamente anti-sociais e anti-sociáveis, que cultivam acima de tudo a diferença e a exceção e professam um arrogante e assumido aristocracismo de tonalidade vincadamente decadente e elitista. Aliás, a revista Orpheu fora apresentada ao público por Luiz de Montalvôr, exatamente como sendo um «exílio de temperamentos de arte que a querem como a um segredo ou tormento», correspondendo a um «ideal esotérico» e tendo o «princípio aristocrático» como único critério estético explícito. (7)

Valorizando exclusivamente o raro e o insólito, os órficos gostavam de definir a sua estética de forma tão extravagante quanto enigmática, usando e abusando de toda a espécie de blagues: «ter o aplauso de lepidópteros e democráticos [...] é o pior que nos pode suceder», sublinha Sá-Carneiro numa carta a Fernando Pessoa, acrescentando mordazmente:

«Veja o que sucedeu às bicicletas: artigo de luxo que, começando a ser empregado pelos democráticos, desapareceu da via pública como sport elegante. A pior recomendação dum produto de luxo é o seu consumo popular.» (8)

Almada Negreiros, por seu turno, «explica-nos» em estilo hermético tipicamente vanguardista, o significado que tinha para o grupo esta quase-senha:

«[...] A mais profunda das [...] criações de vocábulos pejorativos em dias do Orpheu. Lepidóptero simula com o próprio vocábulo palavra erudita com todo o fingimento de individuar categoria de exceção.» (9)

Outro termo que fazia parte deste glossário restrito e provocatório dos novos poetas, era «botas delástico», o qual, como explicava o pintor, «significa... Só botas delástico ignoram a sua significação» (10)

Percorrendo os textos de Pessoa, Mestre também em sutis «fingimentos» e geniais boutades, o que se torna difícil é escolher, entre tantos exemplos, até porque o poeta faz «todos os esforços para não ser a mesma coisa durante três minutos a fio por ser má higiene estética». Tal atitude é perfeitamente natural uma vez que «graças a Deus, não há nenhum instinto do sensato em moderna literatura». Tal circunstância, aliás, não deixava de reflectir inteiramente a própria origem de «Orpheu» pois, enquanto a tendência para o «bom gosto» era em geral proeminente, em contrapartida, não havia em nenhum dos elementos do grupo quaisquer vestígios de «bom senso».

Os principais «ismos» do movimento modernista - além do paúlismo, o sensacionismo, o interseccionismo e também, apesar de ligeiramente secundarizado por Pessoa, o futurismo, têm em comum um espírito decadente que os aproxima e até certo ponto igualiza. Dado que este representa um substrato ativo da estética moderna, vale a pena referir brevemente a definição que Fernando Pessoa sugere.

Assim, o decadentismo português, além de «proveniente da falência de todos os ideais passados e mesmo recentes»(11), é misto, caracterizando-se como uma composição de «tipos» diferentes de decadentismo de raízes diversas e européias. Em primeiro lugar ele é «uma continuação [...] daquela parte do decadentismo que representa uma revolta contra as regras, uma introspecção excessiva»(12). Em segundo lugar, ele é o que reivindica «absoluta indiferença para com a humanidade, a religião e a pátria»(13). Daqui resulta finalmente um «terceiro tipo de decadentismo» que surge precisamente «na corrente portuguesa que veio [?] [sic] a manifestar-se em Orpheu, e constitui uma exacerbação dos dois reunidos»(14).

Por outro lado, pode dizer-se que os vários «ismos» acabam por se integrar no sensacionismo afirmando-se mais enquanto modos dessa «corrente estranha - como diz Pessoa - a que pertencem a maioria das composições de Orpheu, os livros de Sá-Carneiro, exceto Princípio e outras composições análogas»(15), do que como tendências literárias independentes.

Concentremo-nos por último um pouco nessa espécie de consequência literária do cubismo que é o interseccionismo. Este «ismo» salienta-se neste contexto, não só pela sua importância na avaliação do caráter inovador da estética modernista, mas pela relação estreita que detém com o fenômeno da heteronímia e a questão da sua gênese. Como aparece então projetada na poesia a característica essencial da pintura cubista?

Na verdade, a «decomposição do modelo» que os cubistas realizam é intelectualizada pelos órficos, ou seja, ao ser transferida da pintura para a literatura, é recriada em termos do que julgam ser «a esfera própria dessa decomposição - não as coisas, mas as nossas sensações das coisas», desembocando, precisamente, na «atitude central» dos poetas sensacionistas, para quem «a única realidade da vida é a sensação [e] a única realidade em arte é a consciência da sensação»(16).

Por seu turno, o interseccionismo, definindo-se como consciencialização dessa «deformação» de planos operada pelo cubismo, a partir da qual cada sensação passa a ser «na realidade constituída por diversas sensações mescladas», revela-se como processo privilegiado de execução do mesmo sensacionismo, o qual, justamente, «pretende realizar na arte a decomposição da realidade nos seus elementos geométricos psíquicos»(17).

Observemos, para terminar, dois sugestivos exemplos encontrados, respectivamente, na obra Céu em Fogo de Mário de Sá-Carneiro e no poema «Chuva Oblíqua» de Fernando Pessoa:

«O omnibus que o conduzia resvalava agora barulhento de erragens pela Avenida monumental, e esse ruído acre, unindo-se às luzes imensas que o fustigavam zebrando-se através das vidraças tilintantes, dava bem a expressão rítmica da sua alma actual. A sua alma de hoje era toda vidros partidos e sucata leprosa.

[...]

Disperso, o artista olhou em redor de si. Atentou no panorama que o envolvia e pôs-se a delirá-lo, seguindo-o na sua multiplicidade. Pois o cenário interior do auto-omnibus era inconstante: variava momento a momento em função da paisagem exterior. Ao dobras as esquinas, os grandes prédios e as árvores atravessavam-no resvalando em semi-círculo, e os candelabros ziguezagueantes vergavam-se enclavinhadamente, penetrando em rodopio pelas janelas.»(18)

Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito

E a cor das flores é transparente de as velas

de grandes navios

Que largam do cais arrastando nas águas por sombra

Os vultos ao sol daquelas árvores antigas ...

O porto que sonho é sombrio e pálido

E esta paisagem é cheia de sol deste lado ...

Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio

E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol ...

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo ...

O vulto do cais é a estrada nítida e calma

Que se levanta e se ergue como um muro,

E os navios passam por dentro dos troncos das árvores

Com uma horizontalidade vertical,

E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro ...(19)


(1) Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Ática, s/d, pp. 121-122.
(2) Portugal Futurista, (3ª edição facsimilada), Lisboa, Contexto, pp. 33-34.
(3) Eduardo Lourenço, Tempo e Poesia, Porto, Inova, 1974, pp. 57-58.
(4) Mário de Sá-Carneiro, Cartas a Fernando Pessoa, vol. I, Lisboa, Ática, 1978, p. 158.
(5) Fernando Pessoa, Cartas a Armando Cortes-Rodrigues, Lisboa, Horizonte, 1985, p. 34.
(6) Eduardo Lourenço, «Sentido e não sentido do moderno», in Pentacórnio e último, Lisboa, (sem nome).
(7) Orpheu, vol. I, Lisboa, Ática, s/d, p. 11.
(8) Mário de Sà-Carneiro, Cartas a Fernando Pessoa, vol. II, Lisboa, Ática, 1979, pp. 83-84.
(9) Almada Negreiros, Orpheu - 1915/1965, Lisboa, Ática, s/d, pp. 27-29.
(10) Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Ática, s/d, p. 167.
(11) Idem, Ibidem, p. 176.
(12) Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Ática, s/d, p. 204.
(13) Idem, Ibidem, p. 176.
(14) Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Ática, s/d, p. 163.
(15) Idem, Ibidem, p. 137.
(16) Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Ática, s/d, pp. 187-188.
(17) Mário de Sá-Carneiro, Céu em Fogo, Lisboa, Ática, 1990, p. 127.
(18) Fernando Pessoa, Obra Poética, Rio de Janeiro, Aguilar, p. 113.
in REIS, Carlos (coord.), Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea, Lisboa, Universidade Aberta, s/d, pp. 170-175.

Nenhum comentário:

Postar um comentário