terça-feira, 22 de junho de 2010

Da série "Livros"

Moça lendo com o cão
(Charles Burton Barber)


Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso,
nem porto,
alimentam-se um instante em cada
par de mãos
e partem.
E olhas, então, estas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...

(Mário Quintana)

segunda-feira, 21 de junho de 2010

A insólita história de João Madruga - Parte II

Foi num desses sábados de festa que um conhecido deu-lhe a notícia: a oposição havia tomado de golpe o governo. Os líderes do Partido estavam todos presos ou executados a tiros de fuzil.


João Madruga não tomou a notícia em conta. Havia sempre alguma confusão na capital, mas o Partido sempre as sufocara antes que se espalhassem pelo interior. Além do mais, aquela sua vila era tão longe de tudo que, se realmente o Partido tivesse caído, o novo regime nunca se lembraria de bulir por ali.

Macumba era uma vila simpática, de ruas largas ladeadas de simpáticos sobrados, todos construídos pelo antigo regime. As árvores frutíferas cresciam ordenadamente ao longo das avenidas e, na época da floração, davam à cidade um ar bucólico que chegava a dar a impressão de pertencer a outro mundo.

A economia era praticamente auto-sustentada. Pescava-se, plantava-se e, o que não podia ser produzido ou obtido do local, era trazido por um caminhão que visitava a loja do indiano Salim de seis em seis meses. Quando a encomenda chegava, o empório de Salim ficava abarrotado de gente que disputava panelas de alumínio, bacias de plástico e tecidos. O movimento durava quase um mês, depois diminuía como o estoque da loja.

Os habitantes da vila de Macumba empenhavam-se em manter o isolamento do resto do mundo. Quando chegavam notícias de fora, eram trazidas pelos raros visitantes ou pelo motorista do carro dos correios que, mensalmente, trazia alguma pouca correspondência, geralmente oficial ou relativa aos movimentos do posto bancário da vila.

O único telefone estava na Repartição dirigida por Madruga, mas havia avariado há tanto tempo que ninguém mais lembrava-se dele. Até porque ninguém tinha necessidade de falar com o exterior. Os parentes estavam todos ali na vila, quem nascia em Macumba morria em Macumba. Enfim, a vila de Madruga era tão isolada que em muitos lugares do país ninguém sabia da sua existência.

Por isso, o administrador da Repartição não se preocupava com as recentes notícias. De certeza que havia alguma luta para os lados da capital, mas seria abafada pelo Partido muito antes de os rebeldes lembrarem-se de chegar a Macumba.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Saramago voou




Hoje está nos jornais eletrônicos e circulando em todos os e-mails a notícia que amanhã chegará aos jornais de papel...

SARAMAGO MORREU!

Quando recebi a mensagem, a primeira reação foi ficar triste. Pensei logo em fazer esta postagem e fui procurar uma foto que simbolizasse o luto para ilustrar este meu pobre comentário.

Depois desisti... luto? Por quê??? Saramago é imortal! Assim como Joyce, Shakespeare, Dante, Camões e tantos outros. Quem nos dá páginas tão irresistíveis e perturbadoras nunca morre.

Esta é a vantagem dos grandes escritores. Com a sua morte física, são mais e mais lidos. E a cada novo leitor ou re-leitor o escritor fica mais vivo, mais presente. É como se sua alma se transportasse para as páginas dos livros. E o escritor transmuta-se, desdobra-se, multiplica-se, até que já não pode mais ser ignorado mesmo por aqueles que nunca o leram ou mesmo nunca gostaram de suas obras.

Ora... quantos leram Shakespeare? Mas quantos sabem quem ele é???

Então afirmo: não há luto na morte de Saramago. Há regozijo! Regozijo pelo seu legado, pela beleza de suas páginas, que ele ofereceu tão polemicamente à toda a humanidade.

Neste momento, consigo lembrar-me de uma citação que penso ser uma das mais marcantes da obra de Saramago:

"Não me acuse o leitor de obscurantista. Tenho uma confiança danada no futuro e é para ele que as minhas mãos se estendem. Mas o passado está cheio de vozes que não se calam e ao lado de minha sombra há uma multidão infinita de quantos a justificam." (“Os Portões que dão para onde?”, in A Bagagem do Viajante, Editorial Caminho, 6.ª ed., P. 84).

Pois é... ele agarrou o futuro com as duas mãos. As vozes do passado, que levantavam-se facilmente com críticas, agora, talvez, pensem duas vezes antes de manifestarem-se.

Afinal, Saramago voou, é imortal!!!

 
P.S. Quem quiser conferir a última postagem de Saramago em seu blogue, acesse Nem leis, nem justiça , postado por ele no último dia 13 de fevereiro.