terça-feira, 22 de julho de 2008

Mais Eduardo White

Um texto fantástico, esclarecedor e que, apesar de falar de Moçambique, poderia muito bem estar falando do Brasil... É a globalização da vergonheira!!!
Um P.S.: coloquei umas notas de rodapé para esclarecer alguns termos tipicamente moçambicanos.

O silêncio tem dentro muito barulho, mas o País continua a falar mais ao telefone. Com quem fala, então, o País? Não é progresso isso? Quem duvida que na era da casca de árvore e da pedra ainda, em quase todo o significativo território nacional, em vez do poço de água que faz falta abrir seja levantada uma antena que faz o País dar um salto mortal continuado na lista dos mais pobres do mundo e ficar último na outra lista à frente?

Se falta o medicamento para a malária nos hospitais e não há crédito nos bancos de sangue não é bonito sermos em África o país com mais internautas? Não é desenvolvimento isso? Os bólides nas ruas não mostram a prosperidade da Nação ou é apenas um mero indicativo para o investidor ver as potencialidades?

E quem são esses que gritam que as estradas das nossas capitais andam cheias de buracos? Arre!! Estão contra quem afinal? Que interesses servem eles? Então esses mentecaptos da oposição mais esburacados que as próprias estradas não vêem que só as esburacadas vias justificam os luxuosos foure bai foures[1] das capitais?

Estavam então a pensar que os dirigentes, que os Latifes, que os Costas e os Cossas haveriam de passear no domingo de motorizada[2]? Isto não é Maringué não senhor, calma lá. Aqui não se perdem óculos em debandada na motorizada, aqui, nesta zona agora deslibertada da humanidade, motorizada e bicicleta é só para se ver por uns binóculos.

Passam a vida a dizer que o Povo vê o dirigente a engordar. Quem disse a esses trogloditas da oposição que dirigente engorda? Dirigente não engorda, não senhor, enche só. E sabem eles das dificuldades disso, ou são inveja essas infundamentadas visões? Não sabem esses da maioria que o Povo não precisa nem de motorizada nem de bicicleta? Que a enxada é que o Povo está mesmo a precisar?

Povo existe para trabalhar ou para passear? Digam lá então? Povo existe para trabalhar, e se a riqueza nacional não é mais é porque o Povo é preguiçoso. É ou não é verdade?

Esta coisa da população fugir do campo para a cidade é o quê? Não é isso mesmo? Se o Povo visse o exemplo do dirigente não voltava para o campo? Pensem lá vocês com o dentro das vossas cabeças. Dirigente não dá exemplo bom? Mas esses estupores da oposição vão vir dizer que o dirigente vai para o campo porque tem projectos, tem financiamento bancário, tem parceria e junta sinergias. O Povo se não tem isso tudo é porque não pensa. Mas Povo não existe para ter projecto como o dirigente, povo existe para ser projecto do dirigente. E o Povo mesmo sabe disso.

Anda por aí o boato de que a população não foi votar nas autárquicas porque o governo deu tolerância de ponto. Mas têm o quê contra a população essa gente?

Povo quando tem tolerância de ponto vai cumprir os seus deveres cívicos?
Não!

Povo quando tem tolerância de ponto faz o quê afinal?
Vai beber nos bares, faz festa de família com verduras e galinha a ouvir na rádio qual é o resultado desse jogo chamado eleições. Mas eu pergunto a esses agitadores, como é que o povo vai votar num dirigente que está sempre a rir enquanto ele está a chorar? Como? Digam lá então?

Mas eu disse que o silêncio tem dentro muito barulho. E não vale a pena dizerem que eu sou um xiconhoca porque o povo agora está cansado e quando não vota não é porque está a beber. Não, não é. Esses tais de candidatos são candidatos a quê? A iguais ou a parecidos? A dirigentes ou a dirigidos? Eles também não sabem.

(…)

Os originários não têm direito a apanhar os papéis principais. Ahhh, camarada poder, isto é abuso, palavra de honra. Nós perguntamos em meio a tanta corrupção: esses bais, esses mulungos[3] todos arranjam dinheiro aonde para tantas quintas, para tantas fábricas, tantas sociedades anónimas de responsabilidade ilimitada, tantas participações financeiras em projectos sustentáveis? Sozinho ou com conivência de alguém?

Não são os moçambicanos 100% que vão fumar charuto de Cuba no Sheik, ter Mercedes de último modelo com nome de amante na matrícula e quintas[4] com muros a esconder os telhados das casas? Quando? Quando vão ter corrente de ouro grossa na garganta?

Assim não vale, camarada poder, assim não vale. Porque ficam só os moçambicanos estafetas desse novo-riquismo desnacional? Um País assim pode desenvolver? Com tantos meios descendentes a roubar nas repartições públicas, nos projectos beneméritos e outros afins? Pode?

Mas nossos mais renomados analistas cêeniacos vieram dizer-nos que o Povo não foi votar por ver tudo isso. O Povo não foi votar porque o Ministério do Trabalho deu tolerância de ponto para ele bichar[5]. Quer dizer, o Povo desconsciente, ao invés de ir escolher seu candidato, foi candidatar a sua escolha nas urnas médias da 2M e da Laurentina[6]. Isso não é sabotagem para uns e fraude para os outros. Povo não tem consciência para ser objector de consciência. Povo não tem cabeça para pensar nessas coisas de política. A cabeça do Povo é só para votar no desejo de voto dos políticos.

O País está muito bom, não é o que toda a gente vê? Não é o que toda a gente sente? O País tem mais stands de carros, tem mais imobiliárias a vender moradias, o país tem muitas empresas de consultoria, não está bom o país assim? Isto não é sinónimo de desenvolvimento? Não há mais clínicas particulares? Não há mais lodjes para o turismo da banana? Não há mais pedidos de visto nos consulados para se passarem os fins-de-semana no exterior? E então as escolas públicas não estão a crescer? Não há mais população estudantil nos bancos das escolas?

E os professores e os enfermeiros não ganham muito melhor? Os doentes não são consolados com simpatia e carinho nos postos de socorro dos nossos hospitais? E não há mais carros de bombeiros e ambulâncias e autocarros[7] públicos? Nossos agentes de autoridade não são exemplo de entrega e abnegação à ordem pública?

Não há mais prostitutas nas ruas? Não aumentaram as conferências e os seminários para se discutir o indiscutível e o que já se sabe? Não tem mais estudantes a casar e habitar suas flats tipo 1[8]? Não é progresso isso? Os camaradas da oposição não vão mais felizes fazer discurso na assembleia com gordura na boca? Não usam balalaica agora? Não se mata mais agora nas nossas ruas e não tem mais bandidos a falar nos celulares? A cocaína e o haxixe não são agora mais extensivos aos consumidores? Não são impunes as suas pedradas? Dizer o contrário estamos a mentir?

O País está muito bom, tem a consciência desprendida, tem a irreverência desarrumada. As sirenes estão a tocar mais agora, há mais Kalachnikoves nas janelas dos automóveis e os tiros que não se falham descascam amendoim de manhã nos componentes do Estrela Vermelha[9]. Tem muito chingondo sem emprego a vender lenços de assoar, mas chingondo não sabe, coitadinho, chingondo não sabe que o país, ao contrário dele, deixou de chorar há maningue[10] tempo.

[1] 4 x 4 – carros «todo terreno». Calculo que 80% dos carros em Moçambique sejam deste tipo.
[2] motocicleta
[3] Mulungo: branco, senhor
[4] Quintas: sítios, chácaras.
[5] Bichar: fazer fila (de «bicha» = fila).
[6] 2M e Laurentina: cervejas fabricadas em Moçambique.
[7] Ônibus.
[8] Tipo 1: com 1 quarto (como tipo 2: com 2 quartos…)
[9] Time de futebol de Maputo.
[10] Maningue: muito.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Noémia de Sousa

Mulher negra reclinada - Abraham Baylinson

Negra


Gentes estranhas com seus olhos cheios doutros mundos
quiseram cantar teus encantos
para elas só de mistérios profundos,
de delírios e feitiçarias...
Teus encantos profundos de Africa.


Mas não puderam.
Em seus formais e rendilhados cantos,
ausentes de emoção e sinceridade,
quedas-te longínqua, inatingível,
virgem de contactos mais fundos.
E te mascararam de esfinge de ébano, amante sensual,
jarra etrusca, exotismo tropical,
demência, atracção, crueldade,
animalidade, magia...
e não sabemos quantas outras palavras vistosas e vazias.


Em seus formais cantos rendilhados
foste tudo, negra...
menos tu.


E ainda bem.
Ainda bem que nos deixaram a nós,
do mesmo sangue, mesmos nervos, carne, alma,
sofrimento,
a glória única e sentida de te cantar
com emoção verdadeira e radical,
a glória comovida de te cantar, toda amassada,
moldada, vazada nesta sílaba imensa e luminosa: MÃE

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Fernão Capelo Gaivota - continuação IV


Segunda Parte

"Então o paraíso é isto",


pensou, e teve de sorrir de si próprio. Não era muito respeitoso analisar o paraíso precisamente quando se estava voando para entrar nele.

Enquanto se afastava da terra e ultrapassava as nuvens, em formação com as duas gaivotas brilhantes, notou que o seu próprio corpo se tornava tão brilhante como os dela. Em realidade, era o mesmo Fernão Capelo Gaivota que sempre vivera por detrás dos olhos dourados. Só a forma exterior se modificara.

Era como o corpo de uma gaivota, mas voava muito melhor do que o antigo jamais voara. "É maravilhoso", pensava ele. "Com metade do esforço consigo o dobro da velocidade, o dobro da eficiência dos meus melhores dias na terra!"

As penas luziam agora num branco radiante e as asas eram lisas e perfeitas como folhas de prata polida. Deliciado, começou a aprender a conhecê-las, a incutir potência a essas novas asas.

A trezentos e setenta quilômetros por hora, sentiu que se aproximava da velocidade máxima que atingira antes em vôo planado. A quatrocentos e nove quilômetros pensou que voava tão depressa quanto podia voar e, apesar disso, sentiu-se ligeiramente desapontado. Havia um limite para tudo o que o novo corpo podia fazer, e, embora fosse muito mais rápido do que o seu antigo recorde em vôo planado, era ainda um limite. Para o vencer, iria ser necessário um grande esforço. "No paraíso", pensou, "não devia haver limites."As nuvens romperam-se, a escolta gritou-lhe "Feliz aterragem, Fernão", e evaporou-se no ar fino.

Voava sobre um mar em direção a uma linha áspera da costa. Muito poucas gaivotas treinavam os "updrafts" nos penhascos. Bastante desviado para o norte, na linha do horizonte, voava outro pequeno grupo. Novas paragens, novos pensamentos, novas perguntas. "Por que tão poucas gaivotas? O paraíso devia estar repleto de gaivotas! E por que é que, de repente, fiquei tão cansado? As gaivotas no paraíso nunca devem cansar-se, nem dormir."

Onde é que ouvira isso? A lembrança da sua vida na terra sumia-se. A terra fora um lugar onde aprendera muito, é certo, mas os pormenores estavam esmaecidos — qualquer coisa como lutar por comida e ser banido.

A dúzia de gaivotas que treinava junto à costa veio ao seu encontro, sem pronunciar uma palavra. Sentiu apenas que era bem-vindo e que esta era a sua casa. Tinha sido um grande dia para ele, um dia cuja aurora já não recordava.

Dispôs-se a aterrar na praia batendo as asas de modo a ficar suspenso a dois centímetros do chão e deixando-se cair levemente na areia. As outras gaivotas também aterraram, mas nenhuma delas moveu uma única pena. Esvoaçaram no vento com as asas brilhantes bem abertas e, modificando depois a curva das penas, pararam exatamente na mesma altura em que os pés tocaram no chão. Era um controle magnífico, mas, nesse momento, Fernão estava demasiado cansado para experimentar. Adormeceu ali mesmo na praia, sem que se tivesse pronunciado uma palavra.

Nos dias que se seguiram, Fernão verificou que neste lugar havia tanto para aprender acerca do vôo como houvera na vida que deixara para trás. Mas com uma diferença. Aqui havia gaivotas que pensavam como ele. Para cada uma delas o mais importante na vida era olhar em frente e alcançar a perfeição naquilo que mais gostavam de fazer: voar. Todas elas eram aves magníficas e passavam hora após hora praticando vôo, fazendo experimentos de aeronáutica avançada.

Durante muito tempo Fernão esqueceu-se do mundo de onde viera, daquele lugar onde o bando vivia com os olhos completamente cerrados à felicidade de voar, usando as asas apenas como um meio de encontrar alimento e lutar por ele. Mas, uma vez ou outra, só por um momento, lembrava-se.

Lembrou-se uma manhã, quando estava a sós com o instrutor, enquanto descansavam na praia depois de uma sessão de "snap rolls" de asa dobrada.

— Onde estão os outros, Henrique? — perguntou em silêncio, já familiarizado com a telepatia fácil, que estas gaivotas usavam em vez dos gritos e guinchos. — Por que somos tão poucos aqui? No lugar de onde eu vim havia...

— ... milhares e milhares de gaivotas. Eu sei. — Henrique abanou a cabeça. — A única resposta que encontro, Fernão, é que você é um daqueles pássaros que se encontram num milhão. Quase todos nós percorremos um longo caminho. Fomos de um mundo para outro, que era praticamente igual ao primeiro, esquecendo logo de onde viéramos, não nos preocupando para onde íamos, vivendo o momento presente. Tem alguma idéia de por quantas vidas tivemos de passar até chegarmos a ter a primeira intuição de que há na vida algo mais do que comer, ou lutar, ou ter uma posição importante dentro do bando? Mil vidas, Fernão, dez mil! E depois mais cem vidas até começarmos a aprender que há uma coisa chamada perfeição, e ainda outras cem para nos convencermos de que o nosso objetivo na vida é encontrar essa perfeição e levá-la ao extremo. A mesma regra mantém-se para os que aqui estão agora, é claro: escolheremos o nosso próximo mundo através daquilo que aprendermos neste. Não aprender nada significa que o próximo mundo será igual a este, com as mesmas limitações e pesos de chumbo a vencer.

Abriu as asas e, voltando-se de frente para o vento, continuou:

— Mas você, Fernão, aprendeu tanto de uma só vez que não teve de passar por mil vidas para chegar a esta.

Um instante depois estavam de novo no ar, treinando. A formação "point roll" era difícil, pois na posição invertida Fernão tinha de pensar de cabeça para baixo, virando a curva da asa ao contrário, mas virando-a em perfeita harmonia com a do seu instrutor.

— Vamos tentar outra vez — repetia Henrique, incansável. — Vamos tentar outra vez. — E, finalmente: — Está bom.

E começaram a praticar "loops" exteriores.

Uma noite, as gaivotas que não praticavam o vôo noturno juntaram-se na praia, para pensar. Fernão reuniu toda a sua coragem e dirigiu-se à gaivota mais velha, que, segundo diziam, devia passar em breve para outro mundo.

— Chiang... — começou ele, um pouco nervoso.

A velha gaivota olhou-o com bondade.

— Diga, meu filho.

Em vez de enfraquecer, a idade dera força ao Mais Velho. Em vôo batia qualquer gaivota do bando, e aprendera perícias de que os outros só muito lenta e gradualmente começavam agora a aperceber-se.

— Chiang, este mundo não é o paraíso, é?

O Mais Velho sorriu ao luar:

— Você está aprendendo outra vez, Fernão Gaivota.

— Bem, e o que é que acontece depois disso? Para onde vamos? Não há um lugar chamado paraíso?

— Não, Fernão, não há tal lugar. O paraíso não é um lugar nem um tempo. O paraíso é ser perfeito. — Ficou em silêncio durante um momento. — Você voa com muita velocidade, não voa?

— Eu... Eu gosto da velocidade — respondeu Fernão, surpreendido mas orgulhoso de que o Mais Velho o tivesse notado.

— Você começará a se aproximar do paraíso no momento em que alcançar a velocidade perfeita. E isso não é voar a mil e quinhentos quilômetros por hora, nem a um milhão e quinhentos mil, nem voar à velocidade da luz. Porque nenhum número é um limite, e a perfeição não tem limites. A velocidade perfeita, meu filho, é estar ali.

Sem avisar, Chiang evaporou-se e apareceu à borda da água, à distância de quinze metros, numa centelha de instante. Depois evaporou-se outra vez e surgiu ao lado de Fernão, no mesmo milésimo de segundo.

— É divertido — comentou.

Fernão ficou atordoado. Esqueceu-se de fazer perguntas acerca do paraíso.

— Como é que se faz isso? O que é que se sente? A que distância se pode ir?

— Desde que você o deseje, pode ir a qualquer lugar e a qualquer momento — disse-lhe o Mais Velho. — Que me lembre, já fui a todos os lugares e a todos os momentos. — Olhou o mar, pensativo. — É estranho... As gaivotas que desprezam a perfeição por amor ao movimento não chegam a parte alguma, devagar. As que ignoram o movimento por amor à perfeição chegam a toda parte, instantaneamente. Lembre-se, Fernão, o paraíso não é um lugar nem um tempo, porque lugar e tempo não significam nada. O paraíso é...

— Pode ensinar-me a voar assim?

Fernão Gaivota tremia de ansiedade por conquistar outro desconhecido.

— Claro, se você deseja aprender.

— Desejo, sim! Quando podemos começar?

— Se quiser, podemos começar já.

— Eu quero aprender a voar assim — disse Fernão, um brilho estranho a iluminar-lhe os olhos. — Diga-me o que devo fazer.

Chiang falou devagar, observando cuidadosamente a gaivota mais nova.

— Para voar à velocidade do pensamento, para onde quer que seja, você deve começar por saber que já chegou...

Segundo Chiang, o truque estava em Fernão deixar de se ver aprisionado dentro de um corpo limitado cujas asas abertas abrangiam a distância de um metro e cuja eficiência podia ser traçada num mapa.

O truque estava em saber que a sua verdadeira natureza vivia tão perfeita como um número não escrito, em toda parte e ao mesmo tempo, através do espaço e do tempo.

Fernão, empenhou-se em conseguir isso, dia após dia, desde antes da aurora até depois da meia-noite. Mas, por mais que se esforçasse, não conseguia afastar-se um milímetro do seu lugar.

— Esqueça a fé — dizia-lhe Chiang repetidamente. — Você não precisa de fé para voar; precisou, sim, compreender o que era voar. Isto é a mesma coisa. Tente outra vez...

Mas um dia em que Fernão estava na praia, de olhos fechados, concentrando-se, compreendeu num relâmpago o que Chiang tentava dizer-lhe.

— Mas é verdade! Eu SOU uma gaivota perfeita, ilimitada!

Sentiu um grande choque de alegria.

— Bom! — exclamou Chiang, com a voz vibrando de triunfo.

Fernão abriu os olhos. Estava sozinho com o Mais Velho numa praia completamente diferente — havia árvores até a beira da água, e dois sóis amarelos, girando sobre as cabeças de ambos.

— Por fim você conseguiu perceber a idéia — disse Chiang. — Mas ainda precisa trabalhar o seu controle...

Fernão estava atordoado.

— Onde estamos?

Obviamente não impressionado pelo estranho ambiente, o Mais Velho desprezou a pergunta.

— Estamos num planeta qualquer, evidentemente, com um céu verde e uma estrela dupla por sol.

Fernão soltou um grito de alegria, o primeiro som que emitia desde que deixara a terra.

— DEU CERTO!

— Mas claro que deu certo, Fernão — disse Chiang. — Dá certo sempre, quando se sabe o que se está fazendo. Agora, acerca do seu controle...

Eduardo White


Um homem é velho e está sentado sobre o seu analfabetismo. No entanto, escreve sobre um jardim. Palavras que, desconhecendo, o tornam belo pela pequena tesoura minuciosa com que apara as flores que as compõem. Um homem velho, suado na velha camiseta, vai, assim, perfumando a escrita. Pergunto-lhe: Que escreve? Flores, é como me responde curvado até aos enrugados dedos acariciando as palavras que vão crescendo. Fico ali, parado, olhando-o do analfabeto que agora sou.

Um homem escreve flores e cores e perfumes, sentado e descalço e dentro da pobreza que veste. Fantástico, penso, este velho que alguma magia certamente o tem cantado por dentro. E as flores riem, pequenas e verdes e brancas e por um vermelho que lhes foge pelo bordo das folhas. Eu adapto-as, diz-me ele. Não percebo, respondo-lhe. Eu adapto estas flores a estas letras porque não são próprias para as palavras. São tenras e, sendo assim, os insectos comem a minha escrita.

Sou o profundo espanto. Um homem escrevendo com flores e insectos comendo o que fica tão ternamente escrito nelas. Ele percebe este susto que revela, admirado, o meu rosto. Escrevo com flores faz muitos anos, mas nunca soube ler. Diz-me. Só mesmo as flores é que eu consigo entender. E um riso desce, então, pela boca do velho dobrado pela hérnia discal que agora noto e vem cumprimentar-me a mão com que eu redijo no computador. Não flores como eu gostaria que fosse, mas a ignorância total e a absoluta certeza de que jamais o saberei fazer.

Ao nosso lado, uma criança abre a janela de sua casa e grita: Bom dia galinhas, enquanto um galo canta arrebatador agradecendo o cumprimento. Que lugar será este donde vejo tudo isto?


In Até Amanhã Coração, 2007.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

O nascimento da imprensa na África portuguesa

A tipografia foi introduzida nas colónias nas seguintes datas: Cabo Verde (1842); Angola (1845); Moçambique (1854); São Tomé e Príncipe (1857) e Guiné-Bissau (1879).

Os primeiros órgãos de comunicação social foram o Boletim Oficial de cada colónia, que dava abrigo à legislação, noticiário oficial e religioso, mas que também incluía textos literários (sobretudo poemas, mas eventualmente crónicas ou contos).

Em geral, no século passado, com excepção de Angola, a imprensa foi menos importante do que seria de supor devido também à repressão. O semanário O Progresso (1868) de Moçambique, religioso, instrutivo, comercial e agrícola, teve apenas um número, porque, dois dias depois, era obrigado a ir à censura prévia, que o proibiu. Um militante republicano, Carvalho e Silva, no início deste século, fundou quatro jornais, todos encerrados, o último dos quais assaltado, a tipografia destruída e o director agredido, de que resultou a sua morte. De facto, a história da imprensa não oficial de Moçambique foi geralmente de oposição aos governos, da colónia e de Lisboa.

Com a República, ate ao advento da lei de João Belo (1926) contra a liberdade de imprensa, floresceu uma imprensa operária. Mas os mais célebres, e justamente celebrados, pelo seu papel na consciencialização da moçambicanidade, foram os jornais fundados pelos irmãos José e João Albasini: O Africano (1909-1918), O Brado Africano (1918) e O Itinerário (1919), no penúltimo sobrevivendo durante décadas e o último reaparecendo, mais tarde, noutros moldes (1941-55).

Na Guiné, o primeiro jornal, Ecos da Guiné, apareceu somente em 1920.

Em Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, a imprensa contribuiu decisivamente para o incentivo à criação literária, no quadro de limitação insular. A fundação do Liceu-Seminário de São Nicolau (Cabo Verde), nos anos 60 do século XIX, ajuda a explicar o nível de escolarização cabo-verdiana (a primeira escola primária surgiu em 1817). Curiosamente, cabo-verdianos e são-tomenses, vivendo em Portugal, na primeira metade do século XX, estiveram sempre muito activos na busca de uma identidade cultural e da consciencialização (proto-nacional ou simplesmente na produção intelectual desligada de intenções insulares). Basta recordar intelectuais como Viana de Almeida, Mário Domingues, Marcelo da Veiga ou Salustino da Graça espírito Santo (de São Tomé e Príncipe) e Pedro Cardoso (de Cabo Verde).

No século XIX, foi intensa e brilhante a actividade jornalística em Angola. Depois da criação do Boletim Oficial (1845), surge A Aurora (1855), jornal recreativo e literário. Mais tarde, aparece um jornal pugnando pela efectiva abolição da escravatura, para além da letra da lei, A Civilização da África Portuguesa (1866), dirigido por Urbano de Castro e Alfredo Mântua, europeus identificados com Angola.

De 1860 a 1900, surge cerca de meia centena de títulos de jornais, artesanais e episódicos, mas de grande importância para o fomento da actividade intelectual e literária. Desde o Jornal de Luanda (1878), do escritor e advogado Alfredo Troni (ver capítulo 4), que marca a transição do jornalismo de cariz mais colonial para o proto-nacionalista, até O Futuro de Angola ou O Pharol do Povo, muitos contribuíram para a informação, elevação cultural e promoção das línguas e culturas locais.

O primeiro jornal de africanos chamava-se Echo de Angola (1881), inaugurando duas décadas de frenética actividade jornalística (que se prolongaria, depois, até aos anos 20) e que ficaria conhecida por período da imprensa livre africana, terminando exactamente com a fundação de A Província de Angola (1923), primeiro jornal de tipo moderno, industrial, que passou a quotidiano em 1926, perdurando ainda hoje as instalações ao serviço do Jornal de Angola. A censura, que já funcionava, aprimorou-se e acabou com as últimas veleidades de uma imprensa realmente democrática e livre. Na época florescente da imprensa livre, apareceram jornais escritos simultaneamente em português e quimbundo, como o Muen’exi (=o senhor da terra) e o Mukuarimi (= o «linguarudo»), dirigidos por Alfredo Troni. Nos últimos vinte anos de Oitocentos, pugnaram por uma Angola autónoma, mais livre e desenvolvida, jornalistas-intelectuais como Arantes Braga, José Fontes Pereira de Melo, Pedro Félix Machado ou Cordeiro da Matta.

No dealbar do novo século, algumas publicações literárias marcaram o desejo de emancipação dos «filhos do país», de que cumpre destacar as duas seguintes:

Voz d’Angola – clamando no deserto (1901), colectânea de artigos não assinados contra um artigo colonialista;

revista Luz e Crença (1902), cujo segundo número saiu um ano depois.

Esta última era promovida pela Associação Literária Angolense, cuja sigla «Liberdade, fraternidade, igualdade» alerta para os ideais republicanos. Pugnava-se por um espírito de instrução, autonomia política e crítica social e institucional.

Foram líderes e nomes cimeiros desta geração, entre outros, Francisco Castelbranco, Silvério Ferreira, Paixão Franco, Lourenço do Carmo Ferreira e Domingos Van Dúnem (não confundir com o homónimo, nascido em 1925 e hoje embaixador do seu país na UNESCO).

É, pois, através dos jornais que os letrados fazem a aprendizagem da escrita, vendo os seus escritos em letra de forma, assim modelando a própria concepção de intervenção literária, que ficaria marcada por essa prática intrínseca de concretude e explicitude, a não ser quando toda a sorte de preciosismos (saídos do ultra-romantismo, parnasianismo e decadentismo) tomava conta da efusividade lírica. Esse desígnio jornalístico – ou melhor, de comunicação social, à letra – marcaria decisivamente os escritores de África, que quase sempre assistiam à divulgação dos seus textos através de compilações e antologias, antes de os poderem ver estampados em livro, um objecto a que poucas vezes tinham acesso, por dificuldades de vária ordem (censura, perseguição, pobreza, desleixo, dispersão, etc., que foram aumentando em crescendo ate à independência).
Pires Laranjeira, 1995

quarta-feira, 9 de julho de 2008

O coração da humanidade


O coração da humanidade
É uma estrela de luz violeta
Que agora imaginamos
Pulsando a expandir
Uma vibrante claridade purificadora
Que viaja pela Terra
A doar as forças da liberdade
Desfazendo as teias da ilusão

O coração da verdade em todos
A emanar sua ligação com a origem da vida
O comovente foco de todo amor
Que continua criando e sustentando
A existência de todos os povos

Sentimos e mergulhamos
No mar de luz violeta
Gerado na mente divina
E nos aconchegamos
A esta reconfortante dádiva
Manancial inesgotável
Que nos acresce
Com os elementos constitutivos
De uma crescente espiritualidade

Por este poder manifesto
Podemos sentir a expansão do ser
Abrindo-se para o futuro
De peito aberto
Em perfeita confiança

Podemos perceber
O quanto somos parte
Da intensa atividade vital
Que está se exercendo a todo momento
Na direção do melhor impossível
Pois quando somos tocados
Pelo amor do Doador Universal
Sentimos que tudo está bem
E que a alma cresce
Ao modo como deve ser

Agora nos ofertamos asas
No contexto da imaginação
E com estas asas espirituais
Flutuamos leves como plumas
Sobre um oceano dourado
Que reflete o brilho estelar
E estes reflexos dourados nos alcançam
Tingindo de ouro nossa aura

Neste instante
Nos permitimos desfrutar as alegrias do universo
As ondas harmônicas
Das dimensões elevadas

Nos permitimos estar
Num estado de ser
Que é nosso direito
E natural condição
Quando livres de condicionamentos externos

Assim nos entregamos
A esta gloriosa expressão do ser
Desintegrando nossas couraças de sombra
Desmaterializando nossas perturbações

Para vibrar com a onipresença celestial
Em estado de supra-consciência

Respiramos docemente
Assimilando nosso Eu Superior


Somos vida vibrante
E tudo que nos cerca
São apenas acessórios à nossa apresentação
Perante o plano em que vivemos

Nosso ser cósmico
Magnetiza nesta hora
A todos os aspectos
De nossa passagem pela Terra

Magnetiza nossos meios de sobrevivência
Nossos relacionamentos
A vida dos que nos cercam
As situações planetárias
E o próprio coração da Terra

Nosso imaculado ser primordial
Agora expandido
Irradia com supremo amor
A todas as realidades simultâneas
Trazendo a brisa da paz
E a luz
Para todos os problemas

Ainda com nossas asas espirituais
Voamos até o reino dos seres elementais
Conhecidos como fadas, duendes, ondinas, salamandras e sílfides

Um bosque que exala um doce perfume
E há no seio desse bosque
Um lago de águas rosadas
Que ao dia reluz
Nos convidando a um mergulho

Mergulhamos na claridade rósea destas águas
E neste mergulho
Sentimos uma indefinível sensação de bem-estar
Que nos enche de alegria e bem-aventurança

É o amor líquido da Mãe Natureza
A nos abençoar
E nos energizar
Para os processos existenciais
Que nos aperfeiçoarão ainda mais
Em tempos vindouros


Saímos do seio das águas do lago rosa
E flutuamos a contemplar
Os horizontes límpidos
Dos seres sagrados que somos

E do universo mágico da mente
Retornamos ao plano físico
Desfrutando de grande serenidade
Mais conscientes
De nossa conexão com a verdade superior

E extremamente gratificados
Por tudo que a vida oferece.

O amor e a luz
Continuarão conosco.

sábado, 5 de julho de 2008

Vídeo do Pedro

Ele não é mesmo tuuuuudoooo de bom???

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Fernão Capelo Gaivota - continuação III



Fernão Gaivota passou o resto dos seus dias sozinho, mas voou muito além dos Penhascos Longínquos. A solidão não o entristecia. Entristecia-o que as outras gaivotas se tivessem recusado a acreditar na glória do vôo que as esperava. Recusaram-se a abrir os olhos e ver.

Aprendia cada vez mais. Aprendeu que um eficiente mergulho a grande velocidade lhe dava o peixe raro e saboroso que vivia três metros abaixo da superfície do mar. Já não precisava de barcos de pesca nem de pão duro para viver. Aprendeu a dormir no ar, estabelecendo um percurso noturno pelo vento do largo, cobrindo cento e cinqüenta quilômetros desde o ocaso até a aurora.

Utilizando o mesmo controle interior, voou através de nevoeiros cerrados e subiu acima deles para céus estonteantes de claridade... enquanto qualquer outra gaivota ficava em terra, conhecendo apenas neblina e chuva.

Aprendeu a dominar os altos ventos do continente e a jantar ali os delicados insetos.

O que outrora desejara para o bando tinha-o agora só para si. Aprendera a voar e não lamentava o preço que pagara por isso. Fernão Gaivota descobriu que o tédio, o medo e a ira são as razões por que a vida de uma gaivota é tão curta, e, sem isso a perturbar-lhe o pensamento, viveu de fato uma vida longa e feliz.

* * *

Vieram à noite, e encontraram Fernão deslizando tranqüilamente e sozinho pelo seu querido céu. As duas gaivotas que surgiram junto às suas asas eram puras como a luz das estrelas e o brilho que delas se desprendia era leve e afável no éter noturno. Mas o mais encantador era a perícia com que voavam, as pontas das asas movendo-se a um centímetro exato e constante das suas.

Sem uma palavra, Fernão submeteu-as ao teste, ao teste a que nenhuma gaivota fora ainda submetida. Torceu as asas, diminuiu a velocidade para um quilômetro e meio por hora e deslizou lentamente, quase parando no ar. Os dois pássaros, irradiantes, deslizaram com ele, suavemente, mantendo-se em posição. Sabiam voar devagar.

Dobrou as asas, e caiu num mergulho de duzentos e oitenta quilômetros por hora. Mergulharam com ele, riscando a noite em formação impecável.

Por fim, transformou diretamente essa velocidade numa longa rotação ascendente, lenta e vertical. Giraram com ele, sorrindo. Regressou ao vôo planado e esperou algum tempo, antes de falar.

— Muito bem. Quem são vocês?

— Nós somos do seu bando, Fernão. Somos suas irmãs. — As palavras eram fortes e calmas. — Viemos para levar você para mais alto, para levá-lo para casa.

— Eu não tenho casa. Nem tenho bando. Fui banido. E estamos agora sobrevoando o pico da Grande Montanha do Vento. Já não posso elevar este velho corpo além dumas centenas de metros.

— Você pode, sim, Fernão. Porque aprendeu. Acabou-se uma escola e chegou a hora de começar outra.

O entendimento raiou nesse momento para Fernão Gaivota, tal como o iluminara sempre em toda a sua vida. Tinham razão. Ele PODIA voar mais alto e ERA tempo de ir para casa.

Lançou um último longo olhar pelo céu, por aquela magnífica terra prateada onde aprendera tanto.

— Estou pronto — disse por fim.

E Fernão Capelo Gaivota elevou-se com as duas gaivotas brilhantes como estrelas para desaparecer num céu perfeitamente escuro.

IDEOGRAMA REIKI

Leituras do ideograma:

Chuva milagrosa de energia vital;

Chuva milagrosa que dá vida, porém é mais do que isso;

Esta energia maravilhosa, terá de ser vivenciada;

A comunhão de uma energia superior com uma terrena,
que se pertencem mutuamente.