quinta-feira, 31 de maio de 2007

O erro que deu certo - ao Clovinho

Pensei um poema
Que rimasse direito,
Que aliterasse a ideia,

Que tocasse o peito…

E foram sons combinados,
Pancadas com tês e dês
Correrias com erres e esses…
Mas algo deu errado!


Esqueci as letras,
Ignorei o escrito!
No lugar da palavra certa,
Saiu um risco perdido!


O poeta diz não ser pecado
Afinal, é convencionado.
Vale a comunicação
E o fluir da emoção!

quarta-feira, 30 de maio de 2007

Depressão

A depressão está na moda. É o mal do século, mas que já vem desde o século passado. Os balcões das farmácias estão abarrotados de anti-depressivos e as prateleiras das livrarias repletas de livros de auto-ajuda, para combater a baixa auto-estima, que causa a tal depressão.

Meu avô uma vez me disse que no tempo dele não havia essa coisa de depressão. As pessoas não tinham tempo para deprimir-se, tinham é muito trabalho. É certo que o trabalho a que ele se referia era o trabalho braçal, na lavoura, na lida com o gado, que não representa nenhum grande sacrifício mental. Pelo contrário, quando eu ia para a fazenda, minha maior terapia era acordar com o sol e soltar o gado no pasto.

Já tive amigas deprimidas, que não tinham coragem nem de sair da cama, ficavam lá, enfurnadas, com medo da vida. Eu não conseguia sentir pena, sentia somente uma revolta profunda pelo completo desinteresse delas com tudo o que acontecia em volta.

Eu mesma já pensei em entrar em depressão (acho esta expressão horrível – entrar em depressão!). Estava soterrada de trabalho, a faculdade exigindo mais e mais, sem tempo para nada. Um dia acordei e resolvi: vou me deprimir. Fiquei na cama. Esperei que o tempo passasse e as obrigações passassem junto. Pensei que uns dois meses de depressão seriam suficientes. Era Inverno e estava quentinho na cama, uma sensação maravilhosa.

Na escola, teriam pena de mim - coitada, mais uma professora deprimida. Na faculdade, os professores se apiedariam e talvez me deixassem fazer as provas mais tarde. Levaria um atestado médico, com a cópia da receita azul de remédio faixa preta. Ninguém me culparia, todos entenderiam minha ausência forçada da vida.


Olhei para o relógio, somente dez minutos de depressão e as cobertas começavam a pesar. Vontade de ir ao banheiro – será que a depressão inibe as necessidades fisiologias? Segurei o mais que pude. Não deu. No banheiro, olhando no espelho, tentei fazer cara de deprimida. Baixei os olhos, busquei uma expressão de nada. Mas que nada! Aquela cena pareceu-me tão impossível que caí na gargalhada, rindo sozinha no banheiro. Parecia uma louca. Ops! Mas era depressão e não loucura a minha meta. Respirei fundo e voltei para a cama.

Já era meia hora de depressão. Lembrei da gata que, enrolada nos meus pés olhava-me impacientemente. Tinha fome. Minha depressão não poderia impedir-me de alimentá-la, seria maldade demais. Levantei, fui à cozinha, servi ração. A cafeteira me olhava convidativa e não resisti. O café me acordou e o sentimento de culpa me invadiu.

Na escola, as crianças deveriam estar esperando por mim, todas trancadas dentro da sala-de-aula, correndo, gritando, naquele caos que sempre acontece quando um professor falta. Lembrei que naquele ano haviam muitos feriados e que o tempo para cumprir o currículo era apertado. Como iria recuperar tudo depois da depressão?

A faculdade! Meu Deus, a faculdade! Perderia o semestre, atrasaria minha formatura…
É… o caso é que depois da depressão, há que se recuperar o tempo perdido e isso dá muito trabalho.

Desisti da depressão. Vesti a primeira roupa que vi e saí correndo. Consegui chegar à escola no segundo período. Dei a desculpa do despertador estragado e segui a vida.

Sem depressão.

O tempo


Toc-toc, o tempo bate na porta

Punt-punt, pancadas no batente

Tarda o dia, atrasada vida


Corre rápido, sem celeuma

Que a hora urge

E o relógio...


Fogo!!! O relógio voooooaaaaaa!!!

sábado, 26 de maio de 2007

Amicíssima

Estou perdida, amicíssima.... tornei-me dependente das tecnologias e agora não há terapia de choque que me livre deste vício. O computador estragou, foi arrumar, roubei o do marido.
Estava pensando em projetos (ou projectos? - já não sei mais se escrevo em PE ou em PB, se bem que pelas últimas informações isso tudo vai ficar igual no final do ano - tomara!!!)... e lembrei daquele teu. Nunca mais falaste, nunca mais disseste nada. Desististe? O meu agora é o jardim, só que não tenho nem tempo nem bom jardineiro. O último queria botar argila nos vasos - será que ele não sabe que argila é para fazer e não para preencher??? Foi embora.
A empregada também foi embora. Consegui outro (sim, masculino, aqui é normalíssimo e dizem que eles trabalham melhor do que elas), que também foi embora, durou dois dias. Não sabia cozinhar. Consegui outra, vamos ver...
Meu proje(c)to agora é colocar na cachola toda a teoria literária possível. E êta que tá difícil... Vamos ver, também... dia 11 é o dia D, começa a loucura, a peregrinação das provas. E lá nossos amigos falando em lançar um livro. Bem queria garatujar no livro, mas não tenho a verve... ou será que tenho e está escondida em algum lugar? Eles dizem que sim. Mas não, não tenho tempo de procurá-la agora... antes de fazer literatura, tenho de («de» mesmo, de obrigação, porque «tenho que» não denota obrigação) aprender literatura.
Afinal, amicíssima, tu que és minha guru para assuntos teórico-literários, diga-me a verdade: Para que serve saber que a literatura é um conjunto aberto??? E por que (ih... em PE este «por que» é «porque» - será que isso também vai mudar? - e, se mudar, fica como no PE ou como no PB?) eu tenho DE explicar isso???
Amicíssima... vou estudar que a água já está batendo na bunda!!!
Saudades!!!!

sábado, 19 de maio de 2007

Senhas - Adriana Partimpim




Eu não gosto do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto

Eu aguento até rigores
Eu não tenho pena dos traídos
Eu hospedo infratores e banidos
Eu respeito conveniências
Eu não ligo pra conchavos
Eu suporto aparências
Eu não gosto de maus-tratos

Mas o que eu não gosto é do bom gosto

Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto
Eu aguento até os modernos
E seus segundos cadernos
Eu aguento até os caretas
E suas verdades perfeitas

Eu aguento até os estetas
Eu não julgo a competência
Eu não ligo para etiqueta
Eu aplaudo rebeldias
Eu respeito tiranias
Eu compreendo piedades
Eu não condeno mentiras
Eu não condeno vaidades

Eu gosto dos que têm fome
Dos que morrem de vontade
Dos que secam de desejo
Dos que ardem

quinta-feira, 17 de maio de 2007

Império, Mito e Miopia - Capítulo IÍ

II
Literatura e representação:
Fundamentos e aporias


Um factor constitutivo e definidor da literatura de ficção é que ela participa da composição de mundos possíveis e convoca, para cada um destes mundos, uma ideia de realidade que acaba por se articular, por semelhança ou por contiguidade, com o mundo empírico no qual nos movemos. Segundo Lubomir Dolezel (1988: 83), a acessibilidade ao mundo ficcional efectiva-se a partir do mundo real que concorre, de forma marcada, para a formação do mundo da ficção. Aquele proporciona os modelos da estrutura deste, ancorando, muitas vezes, o relato ficcional num acontecimento histórico e transmitindo factos em bruto ou realemas culturais.

Esta é uma ideia que vai de encontro àquela que é avançada por Marie-Laure Ryan (1997: 181), que preconiza igualmente que um mundo torna-se possível desde que concebido em função do mundo que ocupa o centro do sistema: o real. Apesar de Ryan considerar, por seu lado, que a relação entre o mundo possível da ficção e o mundo empírico é baseado na identidade das propriedades dos objectos comuns dos dois mundos, na uniformidade e na compatibilidade lógica, analítica ou linguística, a questão não nos parece ser tão líquida assim.


Na verdade, acreditamos que a relação entre aquilo que ela designa de «mundo real» (MR) e «mundo real textual» (MRT) não é, por exemplo, sempre e necessariamente lógica. Casos há em que a relação é estruturalmente ilógica, como a ficção científica e as narrativas fantásticas onde o princípio da não-contradição, por exemplo, é transgredido.

Por outro lado, tanto a uniformidade como a identidade entre esses dois mundos acaba por ser posta em causa pelo simples facto de que enquanto um, o mundo da ficção, é um mundo de referências, da linguagem, portanto, o mundo real é, por sua vez, o mundo dos fenómenos. Daí que estejamos perante mundos estrutural e semioticamente distintos.

Reflectindo também sobre a interacção entre estes dois mundos, Jonathan Culler (1997: 29) entende, por seu lado, que one reason why readers attend to literature differently is that its utterances have a special relation to the world – a relation we call «fictional». Exactamente porque, através do exercício interpretativo, se desenvolve um processo de reconhecimento, de identificação e de complementaridade entre as referências dos textos e os referentes do nosso universo.

Apesar de o teórico russo, V. Chklovski (1917: 83), defender que le but de l’art, c’est de donner une sensation de l’objet comme vision et non pas comme reconnaissance e, por conseguinte, salvaguardar a autonomia da obra literária – posição que não podemos deixar de compartilhar –, parece-nos, no entanto, sustentável, sem cair numa contradição irredutível, que essa mesma autonomia não fica em causa por fazermos interagir dois discursos: o do mundo criado e o do mundo do qual participamos enquanto sujeitos empíricos. Entra aí em jogo a relação dialógica tão cara a Bakhtine e que atenua a solidão estrutural e semiótica da obra literária.

Poesia – leia-se literatura, apesar de este ser um vocábulo tardio – é imitação. Com esta asserção, Aristóteles abriu uma das reflexões pioneiras e, também, não menos duradouras sobre as relações entre o mundo que a literatura cria e o mundo que nos situa historicamente. Por outro lado, inaugura com essa afirmação uma determinada forma de fazer e pensar a literatura como representação e que vale pelo mimetismo em relação a uma qualidade preexistente.

Assente na ideia de imitação, o conceito de representação assume, em Aristóteles, uma dimensão que vai muito além do plano a que muitas vezes tem sido reduzido. O classicismo e o neoclassicismo europeus serão os grandes culpados desse reducionismo devido à aplicação dogmática dos princípios aristotélicos da criação literária. Aliás, o filósofo grego evidenciou um rasgo inexcedível ao afirmar que a poesia (literatura) era mais filosófica que a história, precisamente por ver nela potencialidades representativas ilimitadas.

Reflectir, hoje, sobre a literatura como representação pressupõe a priori um exercício tautológico, redundante e, de certo modo, pouco produtivo. Mais a mais, se se considerar que esta é uma reflexão que acompanha o percurso da arte, em geral, e da literatura, em particular, provavelmente desde as suas origens, como o demonstra a milenar tradição da teorização literária de inspiração platónica e aristotélica.

Se é verdade que a revolução romântica, já nos finais do século XVIII, recolocou a questão da representação noutros patamares, de tal modo a ideia da representação como imitação foi substituída pela noção essencial da representação como criação, e se é verdade, também, que outras perspectivas epistemológicas (filosóficas, antropológicas, sociológicas, semiológicas, psicológicas, linguísticas, translinguísticas, políticas, etc.) – entre outros, pensamos nos contributos de Kant, Marx, Freud, Nietzsche, Saussure e Bakhtine – trouxeram novos e diversificados contributos teóricos, a questão em si não deixa aparentemente de manifestar sinais iniludíveis de consumição.

Porém, o facto de estarmos a lidar com a escrita romanesca, por um lado, e que – talvez por isso mesmo – interage decisivamente com o contexto epocal e geográfico em que ela surge, por outro, tornando-se essa mesma interacção um aspecto determinante da sua própria condição, leva-nos a retomar a questão da representação literária, não como um fim em si, mas como um dos eixos de reflexão potencialmente mais harmonizantes com a especificidade da literatura colonial.

No capítulo anterior, apresentámos as razões que fundamentaram a nossa opção pelo romance e que demonstram em que medida esta é uma arena privilegiada dos protocolos representativos não só no concernente à literatura colonial, mas também à literatura em geral. Devido à reconhecida plasticidade do romance, Emile Cioran (1956: 112) será, por isso, cáustico ao considerá-lo «a prostituta da literatura». Isto porque, no seu entender, sendo o romance um usurpador por excelência não hesitou em apoderar-se de meios próprios dos movimentos essencialmente proféticos. Além do mais, é, ainda segundo este filósofo romeno, «impuro» devido à sua própria «desenvoltura», vivendo da fraude e da pilhagem e tendo-se vendido a todas as causas.

Falar, portanto, da representação é reequacionar os diferentes conceitos que lhe são inerentes, ou seja, imitação, conhecimento, criação do mundo, imaginação, mediação, ou, mesmo, predição e que determinam a idiossincrasia do fenómeno artístico. Atento à incontornabilidade desta problemática, Jean Bessière (1995: 382) defende que, apesar de ser uma questão dos realismos e dos naturalismos literários constituídos a partir do século XVIII, a representação constitui, no entanto, um problema para a teoria literária contemporânea. Esgrimindo não só com o conceito de representação, mas também com o conceito de anti ou auto-representação, Bessière adianta que «está em causa aqui o estatuto e o poder do literário» (p. 394). Isto é,

estes termos permanecem presentemente inapagáveis e exactamente recíprocos, porque um deles – a anti ou auto-representação – sugere que o artificialismo do discurso recolhe o próprio infinito do sentido do dizível, e outro – a representação – retém um imperialismo do realismo – a palavra certa e o seu dizer sem resíduo.

Portanto, se a ideia de representação remete para um determinado mundo de coisas, a anti ou auto-representação inscreve-se na circularidade imagética da própria linguagem. Porém, a representação nunca é completa, apenas provisória, uma vez que nunca é mais do que alguma coisa que procede pontualmente segundo a autoridade da linguagem e a autoridade das coisas, e é, ao mesmo tempo, repetição e diferença. Subsiste, pois, uma situação de aparente insolubilidade da linguagem e das coisas.

Porém, definir a representação como criação, criação de mundos possíveis ou alternativos, tal como defendem, entre outros, autores como Lubomir Dolezel, Martínez Bonati, Thomas Pavel, Umberto Eco, M. L. Ryan, ou, simplesmente, como modo de fazer mundos (Goodman), é, tanto em termos teóricos como pragmáticos, a forma com que na contemporaneidade se superam as aporias que o conceito tradicional de representação suscita.

Orientando-nos concretamente pela literatura colonial, verificamos que esta potencia e explora, de maneira intensa, uma rede inextricável de identidades e alteridades (físicas, culturais, éticas e filosóficas) tornando-se, por conseguinte, inevitável tematizar e reflectir sobre a questão da representação que, per si, se impõe como determinação estrutural e semiótica dessa mesma literatura. Tanto enquanto figuração das coisas como da própria linguagem.

A literatura colonial, enquanto modo particular de gerar (e gerir) mundos, acaba por consagrar esteticamente a expressão O mundo que o português criou, uma das mais emblemáticas expressões de Gilberto Freyre e título de uma das suas obras mais representativas. Trata-se, aliás, de uma das crenças que mais alimentam e povoam, mesmo que de forma subterrânea, o imaginário dos portugueses. E a literatura colonial não só se limita a criar mundos, mundos possíveis ou alternativos, como torna seriamente indissolúvel a compatibilidade entre esses mundos e o mundo real, isto é, o seu devir. Daí a sua importância e actualidade.



1. Da irrepresentabilidade ou a resistência à representação

Uma das motivações maiores (e porque não mérito, mesmo tendo em conta o cabedal de distorções e preconceitos?) subjacentes à literatura colonial é o de ela assumir-se, implícita ou explicitamente, como uma forma mais ou menos elaborada de revelação de uma realidade mal conhecida ou simplesmente ignorada.

Até que ponto a representação literária cumpre, pois, este desígnio se nos ativermos, por exemplo, às constatações cépticas de Philippe Hamon (1973: 134) que questiona: como «é possível reproduzir, através de uma mediação semiológica (com signos) uma imediatidade não semiológica?». Ou de Roland Barthes (1978: 22) para quem o real não é representável, daí que a literatura traduz uma «impossibilité topologique» por não poder fazer coincidir uma ordem pluridimensional (o real) com uma ordem unidimensional (a linguagem)?

Em contrapartida, para Roman Ingarden (1965: 301), com o processo de representação, trata-se apenas de reter aspectos de uma realidade em permanente devir ou, numa perspectiva de raiz freudiana e actualizada pelo mesmo Barthes (1973: 121), a representação seria uma figuração embaraçada, estorvada por outros sentidos que não o do desejo: um espaço de álibis (realidade, moral, verosimilhança, legibilidade, verdade, etc.).

Ultrapassada a ideia de assumir a representação como imitação, ideia tributária das reflexões platónico-aristotélicas e que se firmaria como norma[1] até princípios do século XVIII, apesar de amiúde objecto de contestação e de transgressão, colamo-nos agora a um sentido muito mais elástico, muito mais realista, mas nem por isso menos problemático, da representação que, de forma concisa, é definida por aquilo que ela não deve ser, como explica Helena C. Buescu (1990: 266):

Ora, a partir do momento em que se concebe a linguagem como convenção e consenso, a noção de imitação tem de ser liminarmente eliminada, e a representação justamente entendida como a impossibilidade de imitar. Representar não é apenas «não imitar»; é sobretudo o indício de uma actividade apenas possível a partir do momento em que se reconhece que o homem representa justamente na medida em que não pode copiar. Representar não só não é imitar, como sobretudo é não imitar.

Portanto, esta formulação traduz o cruzamento dos subsídios trazidos quer por uma triunfante prática literária inaugurada pelo romantismo, quer por um exercício teórico que se verifica tanto dentro desse mesmo movimento – estamos a pensar, por exemplo, nos irmãos Schlegel –, como também por todo um percurso filosófico e científico que, de forma aguda, e durante o século XIX, deixou a nu a precariedade da própria realidade enquanto valor objectivo, estável e uno.

Para isso, contribuíram quer as transformações teóricas (a dialéctica hegeliana; Marx, com o primado da matéria e da necessidade económica sobre a consciência; Nietzsche, com a apologia do instinto e com a sua negatividade radical em relação ao cristianismo, à filosofia socrático-platónica e à ciência; Freud, com as suas teorias sobre o inconsciente), quer as transformações políticas (a Revolução Francesa, a emancipação política dos povos ditos «primitivos»), quer, ainda, as transformações sociais e tecnológicas, que irão, por sua vez, desencadear a multiplicação de visões do mundo: étnicas, religiosas, culturais, socioeconómicas, estéticas e sexuais.

Segundo o filósofo italiano Gianni Vattimo (1989: 15), dá-se, com todas estas transformações, a erosão do próprio «princípio da realidade». Isto é, o mundo torna-se fábula, interpretação. Esta é, aliás, uma ideia com incontornável sabor nietzschiano, em que os factos, a realidade, o mundo existem apenas como interpretação, isto é, como um texto misterioso em devir e em processo de decifração sempre inconcluso.

Além do mais, disto tudo resultou, entre outras coisas, a exposição da fragilidade da condição humana, que se apresenta de forma fragmentária, solitária, contraditória e dificilmente fixável. De maneira categórica, ficou também patenteada, através da linguística e da semiótica, a importância e a complexidade da linguagem enquanto elemento municiador de sentidos, múltiplos e voláteis, na relação entre o homem e a realidade que o envolve.

Por outro lado, o movimento simbolista redimensionou o conceito de representação, com sentido crítico, ao assentar a sua produção literária fundamentalmente no auto-investimento da linguagem. De acordo com Foucault (1966: 313), a linguagem torna-se um processo alargado de auto-representação de tal modo que, a partir de Mallarmé, la littérature se distingue de plus en plus de discours d’idées, et s’enferme dans une intransivité radicale.

Podemos, pois, concluir que, por um lado, a representação se institui como uma busca incessante, uma impossibilidade, enfim, se tivermos como horizonte a conformação (mimetismo) com uma realidade estável, global e preexistente, a qual ela procura adequar-se. Por outro lado, a representação pode ser um fim em si, cumprindo-se, sobretudo enquanto criação, adquirindo daí uma grandeza imanente, própria. E o que faz com que a representação se torne acessível, compatível, inteligível, verosímil, é que ela se institui, como antes fizemos referência, em função dos códigos (linguísticos, culturais, filosóficos, éticos, estéticos, etc.) do mundo real, isto é, do nosso mundo.



2. O efeito do verosímil

Le concept de vraisemblable n’est plus à la mode (Todorov 1971: 93). Com esta afirmação, concludente e plena de convicção, Todorov retira-nos, à partida, qualquer veleidade de avançarmos numa reflexão em que o conceito de verosimilhança seja equacionado. Na verdade, é muito pouco estimulante sustentar um discurso dito, de modo tão peremptório como démodé há mais de trinta anos.

Em todo o caso, por imperativos de ordem metodológica e teorética e pela necessidade intorneável que temos em manter o nosso estudo perseguindo um determinado alinhamento, decidimo-nos por correr o risco e revisitarmos um dos mais vetustos conceitos dos estudos literários mas, mesmo assim, dotado de particular vitalidade.

Aliás, é o próprio Todorov quem nos abalança nesta direcção quando, a dado passo, concede que existem vários sentidos para o termo: primeiro, quando acções e atitudes conforme a realidade; segundo, enquanto relação com o que a maioria das pessoas julga ser o real; terceiro, enquanto adequação do texto às regras particulares do género que adopta; e, finalmente, já numa acepção mais precisa, enquanto máscara com que se dissimulam as leis do texto, e que nos daria a impressão de uma relação (referencial) com a realidade. Isto é, o texto faz-nos acreditar que se submete ao real e não às suas próprias leis.

Por conseguinte, e de acordo com esta reflexão, falar em verosimilhança implica necessariamente ter em conta a aceitabilidade do mundo representado e a conformidade entre esse mundo e o universo expectacional do leitor. Afinal, e como concede Antonio Risco (1982: 10),

sólo es posible distinguir el fenómeno literario al nivel de la situación comunicativa, situación que establece un pacto particular, una complicidad – específica, sí, en teste caso – entre el autor y el lector.

Segundo este teórico espanhol, este «pacto particular» que se estabelece entre autor e leitor, consiste

en la simulación, en ele ejercicio del como si – la mimesis aristotélica, pero que ha de extenderse a muy diferentes niveles del texto literario – por medio de un conjunto de técnicas y recursos figurativos que tienden a elaborar una suerte de experiencias imaginarias, o sea de vida paralela.

Daí que a literatura seja, antes de tudo, «figuración» e que passa pela simulação de um facto vital. Apesar de discordarmos da ideia de que a figuração literária tende para o concreto, para o acumular de referencias de orden sensorial, há um dado conceptual importante que ele avança e que se refere a um campo imaginativo comum, património de uma unidade cultural num determinado momento no qual cada indivíduo possui a sua parcela: o «hipercódigo».

Trata-se de um campo imaginativo que se actualiza na obra e reúne os universos do leitor e do autor e é uma espécie de «virtual código cultural». Será, pois, o hipercódigo que irá determinar, em grande medida, o grau de verosimilhança da obra literária. Naturalmente que este hipercódigo será tão funcional quanto mais devedor for de uma cultura literária que se instituirá como plataforma identitária entre o universo do autor e do leitor e que acaba por ter uma dimensão histórica.

A este propósito, a já citada M.-L. Ryan reforça o facto de a ficcionalidade, que se ancora na ideia de verosimilhança com a qual muitas vezes se confunde, não se decidir nem pelas propriedades semânticas do universo textual, nem pelas propriedades estilísticas do texto, estabelecendo-se apenas e a priori como parte das nossas expectativas gerais (Ryan 1997: 205). Para esta autora, é, por conseguinte, ao leitor que cabe a função de determinar a ficcionalidade: Consideramos un texto como ficción cuando conocemos su género, y sabemos que el género está governado por las reglas del juego ficcional.

Entretanto, não deixamos ainda de ter em conta outras reservas colocadas em relação a esta arcaica questão da verosimilhança. É o caso de Julia Kristeva, que em Le Texte du Roman. Approche sémiologique d’une structure discoursive transformationnele (1970), defende que a verosimilhança adequa-se mais a sistemas monomorfos como a filosofia ou o discurso científico, onde a preocupação de provar e de verificar é acutilante. Por conseguinte, por a questão da prova e da verificabilidade não se impor em matéria literária, la productivité textuelle releve d’un domaine autre que le vraisemblable(1970: 76). No entender, ainda, desta autora,

La «vérité», ou la pertinence, de la pratique scripturale est d’un autre ordre; elle est indécidable (improuvable, invérifiable) et consiste dans l’accomplissement du geste productif, c’est-à-dire du trajet scriptural se faisant et se détruisant lui-même dans le processus d’une mise en RAPPORT de termes opposés ou contradictoires.

No essencial, Kristeva põe em causa o conceito de verosimilhança, a partir do momento em que lê implicar uma necessidade de provar ou de verificar a realidade textual em confronto com a realidade empírica, extraliterária.

Sem deixarmos de estar de acordo com esta posição por recusar a necessidade de prova e de verificação enquanto caução de verdade, o que é legítimo em termos literários, não anulamos, no entanto, a ideia que avançamos antes em relação ao conceito de representação. Isto é, que a verosimilhança se concretiza quer no horizonte expectacional do leitor, quer em conformidade com as regras impostas pelo próprio género, mesmo quando o texto se institui como factor de transgressão, ou quando se impõe a tal máscara que dissimula as leis da escrita levando-nos a assumir o texto como submisso às regras e contingências da realidade.

Além do mais, não conseguimos colocar a verosimilhança no plano em que Kristeva a coloca (de verificabilidade e de prova), mas simplesmente no da possibilidade. Portanto, o texto mantém-se, no fundo, como o principal municiador dessa mesma verosimilhança, mas sempre enquadrado num movimento interactivo e incessante com o leitor. Isto significa que, e no âmbito do acordo tácito que aí se estabelece, enquanto que a obra finge que o mundo que cria é verdadeiro, o leitor, por seu lado, finge completamente que assume como verdadeiro o mundo que a obra lhe proporciona.

Em convergência com a nossa posição e com a defendida, de certa forma por Todorov, Antonio Risco e Ryan, Gérard Genette (1969: 76) explica que a verosimilhança, que pode variar em parte ou no seu todo, se institui com base em relações de implicação entre, por exemplo, a conduta das personagens e máximas gerais, normativas, implícitas e cristalizadas cultural, moral e socialmente. Isto é:

Le récit vraisemblable est donc un récit dont les actions répondent, comme autant d’applications ou de cas particuliers, à un corps de maximes reçues comme vraies par le public auquel il s’adresse : mais ces maximes, du fait même qu’elles sont admises, restent le plus souvent implicites.

Temos, uma vez mais, a ideia de um «contrato tácito entre a obra e o seu público», de tal modo que uma conduta torna-se incompreensível ou extravagante, inaceitável, portanto, quando não vai de encontro ao horizonte expectacional dos leitores apoiados num determinado conjunto de normas e de princípios. Incluem-se, obviamente, as próprias convenções do género que funcionam como um sistema de forças e de resistências naturais às quais a narrativa obedece sem sempre dar a entender que as percebe e sem as ter que nomear.

Obviamente que nem todas as obras literárias se mantêm reféns da opinião plebiscitária dos leitores. E aqui, o que temos é uma escrita comprometida com uma ordem particular ou uma imaginação ilimitada. Desta feita, L’originalité radicale, l’indépendance d’un tel parti le situe bien, idéologiquement, aux antipodes de la servilité du vraisemblable (Genette, 1969 : 77).

Porém, como a verosimilhança implica a legibilidade da obra, sempre que o autor se apercebe que introduz elementos novos e que escapam ao domínio dos seus destinatários, ou que transgridem o quadro normativo em que se integram, adopta uma atitude pedagogia, didáctica, produzindo, a partir daí, um «verosímil artificial».

E, é, pois, uma espécie de «demónio explicativo», segundo Genette, que vai caracterizar muitos dos segmentos discursivos do romance colonial onde as explanações do narrador, jogando quer com motivações extraliterárias, quer com as leis da própria narrativa, ne sont pás là pour le seul plaisir de théoriser, elles sont d’abord au service du récit: elles lui servent à chaque instant de caution, de justification, de captatio benevolentiae, elles bouchent toutes fissures, elles balisent tous ses carrefours (p. 81).

Em relação, portanto, à literatura colonial, podemos identificar, a partir dos próprios textos, a prevalência de determinadas normas ou princípios de ordem estética, moral, cultural, civilizacional que regem as mundividências e condutas particulares das personagens (e do próprio narrador). Todos esses aspectos traduzem-se, por exemplo, em ideias que têm a ver com a acção civilizadora do homem branco, a inferioridade do negro, a hegemonia da cultura ocidental, etc., e que acabam por constituir pontos de referência em termos de aceitação do que essa literatura veicula, isto é, em termos de verosimilhança. Verosímil que, na vertente mais marcadamente ideológica da literatura colonial, traduz um pretenso ecumenismo que se liga, para todos os efeitos, às expectativas do leitor pretendido.

Há, pois, uma espécie de convencionalidade que determina que um texto seja lido não só como literário, mas também como verosímil. Trata-se de um hyper-protected cooperative principle (Culler 1997: 24), que assegura a comunicação literária. Segundo a esclarecedora perspectiva de Jonathan Culler, o leitor corresponde aos dispositivos do texto, lendo-o e construindo o(s) sentido(s) em função do que lhe é proposto, resultando a eficácia da comunicação da cooperação que se estabelece entre a entidade autoral e o leitor através do próprio texto. Fazendo a interpretação um elemento determinante, tal como Wolfgang Iser, Culler (p. 29) considera que

the literary work is a linguistic event which projects a fictional world that includes speaker, actors, events, and an implied audience (an audience that takes shape through the work’s decisions about what must be explained and what the audience is presumed to know).

Da mesma forma, o «princípio cooperativo hiperprotegido», afinal na mesma linha do «hipercódigo» referido por Antonio Risco, e tendo em conta que estamos perante entidades históricas (autor-obra-leitor), concede, também, ao verosímil uma dimensão histórica. Isto é, aquilo que é verosímil numa determinada época, num determinado contexto, pode deixar de sê-lo, noutros.

Quer dizer, da mesma forma que o realismo de Flaubert, Balzac, Stendhal, Dostoiewski ou Dickens vai, de certa forma, alterar ou alargar o conceito de verosímil – dominado, tradicionalmente, pela representação dos comportamentos exemplares das personagens ligadas às classes hegemónicas –, através da transferência do protagonismo para personagens vulgares como camponeses, criados, comerciantes, operários, o realismo colonial, por seu lado, vai também alargar esse mesmo conceito de verosímil. Isto é, ao permitir que personagens de indivíduos não brancos, mesmo que condicionadas no seu comportamento e na sua atitude mental pela perspectiva manipuladora e etnocêntrica do narrador, mesmo que em confronto com a personagem do colono, joguem papéis determinantes na história narrada como são os casos dos romances Omar Ali, A Neta de Jazira, Fogo III, Raízes do Ódio ou Ku Femba.

Atendendo a que a literatura colonial é direccionada para um público determinado, para um destinatário específico, localizado espacial e temporalmente, interpretar essa mesma literatura torna-se, hoje, um exercício hermenêutico desafiador que requer reenquadramentos históricos e culturais. Isso, tratando-se de um leitor deslocado, ou desconhecedor, em absoluto, do contexto espácio-temporal em que essas obras foram produzidas e profusamente lidas. Trata-se, portanto, de um distanciamento que, apesar da carga informacional reunida nos textos, pode condicionar a recepção das obras.

Isto é, se é verdade que o autor, no extremo do processo comunicacional que desencadeia, é condicionado pelos códigos histórico-culturais que lhe são coevos, o leitor de hoje irá, como é óbvio, na interpretação do texto, aplicar os códigos que fazem parte do seu universo cultural. Apesar da inevitável reconstituição a que será com certeza submetida e partindo do pressuposto que ela assegura a plena legibilidade dos textos, a ideia de verosimilhança irá apresentar contornos mais complexos e fugidios, mas sempre como caução da própria ideia de representação.



3. O múltiplo e o diverso

Excerto 1

Gritam, galos do mato, empoleirados nos braços musculosos dos imbondeiros. Afloramentos de granito, como répteis gigantescos, aquecem o dorso negro ao flamejar do soalheiro. Assustadas, refugiam-se codornizes, em voo estrepitoso, no mais denso das moitas de espinheiras. Esbracejam, em atitudes desengonçadas de esqueleto, os galhos rugosos de mitiáti, pobremente enfolhados.

!Paisagem monótona, despida de pompas, assoalhada mas triste, a perder-se por léguas!

Luta renhida pela existência! O folhedo a pedir angustiado à calidez do céu uma gota benéfica de orvalho; raízes contorcidas, espalmadas rés-vés com o solo, serpeando ou enroscando-se como jibóias; garrunchos grosseiros e disformes, gretados e negros; troncos encarquilhados como velhos mendigos, curvados em gibosas nodosidades; raízes aéreas, grossas como cordas, em fartas madeixas pendentes dos braços gretados das escassas frondes, outros tantos dedos inertes, caídos em atitude de desalento, a pedir inutilmente ao espaço a esmola que a terra implacável lhes não quer dar.

E sempre assim, léguas e léguas andadas pelo mesmo brejo agreste, calcorreando por entre herbagens como fios de arame, duras e praganosas, furtando o corpo às garras dilacerantes de espinheiras arbustivas, revoltadas contra a sua morte malfazeja.
(In Eduardo Correia de Matos, Sinfonia Bárbara, pp. 87-88)


Excerto 2

Passou Dezembro, ardente, dos dias longos. Janeiro correu célere. Fevereiro apareceu mais quente. O chão do Muende era enorme ventre inchado, onde germinavam as sementes, que o branco da cantina oferecera aos negros. Viam-se-lhe as protuberâncias, quando a semente, feita planta, empurrara a terra, para vir espreitar o Sol – e crescer, cheia de mornidões revigorantes, criadoras de seivas fortes. E as hastes delicadas das plantas se tornaram vergônteas rijas, gingando ao sabor da brisa. Às noites, receberiam a frescura dos cacimbos, que as tomavam de cima a baixo.

Os milharais tinham as espigas maduras. No topo das hastes fortes, as barbas do milho tinham mudado de cor: haviam passado do loiro dourado ao castanho escuro.
(In Rodrigues Júnior, Muende, p. 175)


Excerto 3

A indumentária de Catuane, essa é que era realmente assombrosa. Fazia a inveja e a cobiça de quantos a admiravam. Botas de cano largo, até meio da perna, de solas ferradas; calções à Chantily, às riscas azuis e brancas, chapeadas de cabedal em figuras geométricas; espessas meias vermelhas de lã que chegavam aos joelhos, saindo dos canos das botas; uma blusa feita de retraços de pergamóide de diversas cores, unindo ao meio por um fecho éclair; além dum casacão enorme, tão felpudo que era inteiramente aceitável ter pertencido ao espólio de algum alpinista. Na cabeça, um grande chapéu à cow-boy, de alta copa e de aba larga revirada, com duas penas de galo espetadas no alto. Óculos preto e uma sombrinha de senhora completavam a carnavalesca indumentária. A atravessar o lóbulo de uma das orelhas uma caneta de tinta permanente.
(In Eduardo Correia de Matos, Terra Conquistada, pp. 176,177)


Excerto 4

Cafere e as irmãs trouxeram, para a esteira, a panela de farinha, a carne de cabrito – e o tacho de ferro, com o molho de amendoim. O dono da casa iniciou o banquete, enfiando na panela maior a mão vazia, para a tirar cheia de farinha de milho cozida. Meteu, depois, no molho de amendoim, a bola que fizera dela – e foi comendo, devagar, enquanto a outra mão segurava um pedaço de carne assada, que ofereceu a Pedro da Maia. Pedro da Maia imitou Bambo, fazendo com a mão nua, uma bola de farinha cozida, que mergulhou no molho gorduroso […]

Quando nada ficou nas panelas, encostou à parede as costas largas, estendeu mais as pernas – e arrotou. Pedro da Maia fez um esforço – e arrotou, também, num acto de delicada cortesia, que Bambo agradeceu com um sorriso tão largo, que lhe deixou os dentes à mostra.
(In Rodrigues Júnior, Muende, pp. 73, 74)


Excerto 5

- … Não trazemos bandeirinhas como quando somos empurrados até Porto Amélia, e que uma vez levámos a Nampula para ver pessoa grande de Lisboa. Alguns gostaram ir. Era passeio de graça mesmo, com outra alimentação. Negro com cabeça maior nunca pode gostar destes passeios porque dinheiro gasto em bandeirinhas morreu assim mesmo, quando podia empatar-se para termos água perto das palhotas…
[…]
- Só falar não é nada, senhor governador. Fartos aguentar má vida! Vê esta gente ainda molhada? Choveu toda a manhã. Aguentamos porque desejamos ficar sem brancos nos macondes. [Itálicos nossos]
(In Agostinho Caramelo, Fogo III, pp. 225, 226)


Excerto 6

Fomos sempre mais um povo de aventureiros, nada ambiciosos, com pouco nos contentamos. Ligados, direi antes, amarrados a um atavismo das épocas recuadas em que as caravelas despejavam no reino carregamentos de especiarias vindas da costa do Malabar, continuamos até à presente época com o mesmo sistema, olhos fechados à realidade ultramarina. […] Tivemos sempre nos povos que civilizámos amigos fiéis que nada nos pediram, que defenderam as nossas fronteiras, que trabalharam resignadamente sem um queixume, sem um reparo. Somos um povo multirracial, vivemos sempre em paz e concórdia, tivemos essa felicidade, não a deixemos hoje fugir com posições de intransigência, de incompreensão.
(In Eduardo Paixão, Cacimbo, p. 249)


Atentando nestes seis excertos, consideramos que são vários os elementos que garantem a sua aceitabilidade e que, portanto, os tornam verosímeis aos olhos de múltiplos e diferentes leitores. Isto sem descurar o desfasamento referencial entre a realidade representada, o contexto onde se inserem muitos desses leitores e o seu horizonte de expectativas.

Vamos, pois, sem deixar de equacionar como se processa essa representação – que oscila entre a narração, o diálogo e a descrição – identificar o que é aí representado. Com esta identificação, procuramos por um lado, interligar o conceito de verosimilhança, enquanto dimensão representacional fundamental, com uma produção literária determinada e, por outro, deixar em aberto a abordagem das categorias, dos elementos e das modelizações que participam dessa mundividência específica.

Assim, no primeiro excerto, construção com fortes marcas impressionistas, deparamo-nos com uma representação dominada pelo espaço. Espaço que, apesar de humanizado pelo olhar da entidade que o recria, é essencialmente de desolação e de solidão.

Veremos, adiante, como o espaço é uma categoria determinante não só dos movimentos narrativos particulares, mas também da representação da colonialidade literária[2], em geral, subordinada a percepções e vivências em que os lugares, sejam eles privados ou colectivos, sejam eles reais ou imaginários, interiores ou exteriores, surgindo como referências dolorosas e insuportáveis, por um lado, ou com uma dimensão sortílega e compensatória, por outro, acabam por se instituir, todos eles, como verdadeiramente estruturantes.

No segundo excerto, temos o tempo como um dos centros do processo representativo. E o tempo, melhor, a sua fluência aparece-nos aqui tanto no seu movimento objectivo, homogéneo e cronológico (Dezembro, Janeiro, Fevereiro), como nos surge fundamentalmente enquanto efeito estético, de tal modo que é através dos motivos e dos elementos da natureza que nos damos conta do tempo que efectivamente evolui: «viam-se-lhe as protuberâncias, quando a semente, feita planta, empurrara a terra, para vir espreitar o Sol – e crescer…».

E é muito na relação com o espaço e os seres que é marcada a representação do tempo no romance colonial (daí a ideia bakhtiniana de o romance ser, no essencial, um cronótopo[3]) em que a tangibilidade realista é dominante. Casos há, como iremos verificar, em que o tempo mais do que uma dimensão categorial da narrativa apresenta-se como o grande protagonista. Seja o tempo como «mobilidade imóvel», segundo Bergson – quase sempre tempo de inacção e de despojamento –, seja o tempo no seu movimento incessante: vertiginoso ou lento, edificante ou desestruturante.

Reflectindo uma tensão metonímica, a descrição da indumentária da personagem conduz-nos, no terceiro excerto, à representação do ser na sua condição física e psicológica. Nesta representação, com inequívocos contornos caricaturais, interagem duas visões do mundo; por um lado, a do narrador (de quem vê) que polvilha a sua descrição com doses calculadas de juízos de valor (realmente assombrosa, inteiramente aceitável ter pertencido ao espólio de algum alpinista, à cow-boy, carnavalesca indumentária).

Por outro lado, temos a visão do mundo de Catuane, aquele que é visto, e que não sentindo o ridículo experienciado pelo narrador vive, no seu próprio envaidecimento, a importância e a sobrevalorização da sua pessoa, pois: «Fazia a inveja e a cobiça de quantos o admiravam».

A partir desta dicotomia entre o olhar do narrador e o ser objectalizado, o Outro, neste caso, institui-se numa rede interpretativa, uma espécie de «intriga ética», ou «uma não-relação», segundo Lévinas, e que representa uma das imagens de marca de toda a literatura colonial. Tal é a carga preconceituosa que domina toda essa interpretação – vista nos dois sentidos, isto é, do observador para o observado e vice-versa – que nos parece incontornável a ideia de que na interpretação do Outro, a subjectividade do observador sobrepõe-se de modo irredutível.

No quarto excerto, confrontamo-nos com a dimensão cinética da narrativa e que nos é veiculada através da representação do conjunto de acções das personagens. Todo esse movimento apresenta-se dominantemente com virtualidades diacrónicas. Trata-se de uma ordem não só cronológica, mas essencialmente lógica. Desde o momento que precede o repasto, em que Cafere e as irmãs trazem a panela de farinha, a carne de cabrito e o molho de amendoim, até o momento em que os comensais arrotam, temos uma representação sugestiva em termos de cadencia cinematográfica, em que os detalhes mostrados acabam por adquirir valor próprio. E esta é uma das características maiores da narrativa colonial que, no desvelamento de uma realidade alienígena, explora no pormenor o fardo antropológico e histórico de uma civilização. Mesmo com as distorções e as leituras enviesadas que se reconhecem.

Com a figuração da linguagem, que encontramos no quinto excerto, vem à superfície o conceito de auto-representação. Isto é, à linguagem que fala a linguagem. Gesto que é aqui desenvolvido através de uma tipicidade discursiva que, neste caso, é uma desfiguração sintáctica do português-padrão: alguns gostaram ir. Desfiguração que pode também ser a nível semântico: Negro com cabeça maior, isto é, negro inteligente.

Esta transfiguração linguística insere-se no contexto mais vasto do afã realista da literatura colonial que procura representar todo um universo em que a exploração da diferença se institui como um fenómeno verdadeiramente marcante em termos de anulação do Outro. A diferença que é referida no nosso estudo tem a ver não só com o Outro, que é encontrado num espaço outro, mas também com aquele que o encontra, com as construções que aos dois se referem e, finalmente, com quem evidencia essa mesma diferença. Os que vêm de fora (os europeus) assumem-se, assim, como diferentes em relação ao espaço de chegada do mesmo modo que se irão tornar gradualmente diferentes (embora não essencialmente outros) em relação ao lugar de origem (Europa).

Voluntária ou não, a vertente auto-representativa da linguagem acaba por ser uma credencial, mesmo que obedecendo a desígnios extraliterários no sentido da depreciação e da inferiorização cultural, que permite reconhecer alguma modernidade nesta literatura. E a modernidade institui-se, de modo particular, quando a linguagem se coloca no centro da criação literária, espaço de produção estética.

E o romance de Agostinho Caramelo, todo ele em ritmo dialogado, intercruzando falas distintas, com níveis de língua também distintos, é um exemplo destacado dessa vertente emancipatória do romance.

Como o último excerto, extraído de Cacimbo de Eduardo Paixão, confrontamo-nos com um dos aspectos mais carregados de intencionalidade da literatura colonial e esteticamente mais problemáticos: a representação ideológica.

Segundo Mukarowski (1975: 303-304), a «concepção do mundo pode significar quer a atitude que o homem de uma época qualquer adopta em relação à realidade, ou então, designa um determinado conteúdo ideológico». Se há uma Weltanschauung presente, explícita ou implicitamente, numa produção artística, essa parece ser, a todos os títulos, uma evidência no romance colonial, em geral, e neste texto, em particular.

E tratando-se, neste caso, de um manifesto exercício autognóstico – o de um povo que se repensa através da consciência de uma personagem – reconhece-se aí uma das imagens de marca de qualquer ideologia: a de ela impor-se como um sistema de ideias dominante. Por conseguinte, apesar da projecção de um aspecto negativo, ao deixar a descoberta uma verdadeira «ferida narcísica», como diria Freud, com a afirmação de que «fomos sempre mais um povo de aventureiros, nada ambiciosos, com pouco nos contentamos», há, logo de seguida, na fala da mesma personagem, uma genuína vangloriação, uma hipervalorização cauterizante e sublimatória de todos as imperfeições: «Somos um povo multirracial, vivemos sempre em paz e concórdia, tivemos essa felicidade, não a deixemos hoje fugir com posições de intransigência, de incompreensão.».

A representação do ideológico que é recorrente na literatura colonial – e que muitas vezes se fica pelas entrelinhas – acaba por ser decisiva na concepção do mundo que aí prevalece. A ideologia constitui, afinal, e ainda segundo Mukarowski (1975: 311), «um dos elementos da obra de arte, mas um elemento que funciona como laço eficaz entre a arte e toda a ampla esfera da cultura humana e as suas diversas componentes como a ciência, a política, etc.».

Posição que, num outro contexto, é partilhada por Althusser (Jameson, 1981: 30) para quem a ideologia é uma estrutura representacional que permite ao sujeito imaginar a sua efectiva ligação com a estrutura social ou lógica da História.

Portanto, analisar a função ideológica inscrita no romance colonial pode ser determinante para entender as diferentes interacções estabelecidas pelo próprio texto. Facto de que nos dá conta Jenny Sharpe (1993: 8-9) quando afirma: I also [como Foucault] consider a theory of ideology to be crucial for addressing cultural constructions of race, class, and gender.

Considerando, na esteira de Althusser, a ideologia como uma «second-degree relation», a mesma estudiosa adianta que ideology is not «the imaginary» but the articulation of na ideal (Womanhood, Nation, Democracy) with the relations that make that ideal active (gender and sexuality, race and ethnicity, class and status).

Se eh verdade que a literatura, do ponto de vista estético, fica caucionada sempre que a motivação ideológica é evidente, por outro lado, não deixa de ser interessante perceber o texto literário coo um espaço dialógico, ou melhor, antagonistique dialogue of class voices em que acaba por se sobrepor a voice of a hegemonic class (Jameson, 1981: 79). Neste caso, a voz que determina que a literatura colonial seja exactamente o que ela é: colonial.

[1] A nota curiosa do preceito mimético na literatura ocidental é que já não se trata de imitar a realidade, mas os modelos que asseguram a aceitabilidade dessa imitação. Esta é uma ideia que atravessa diagonalmente as reflexões de Erich Auerbach (1946) e Michel Foucault (1966).
[2] Como antes já foi sistematizado, entendemos por colonialidade literária o conjunto de marcas específicas que no texto traduzem a hegemonização cultural e civilizacional do universo das personagens identificadas com o colono, através de formas discursivas, comportamentais ou psicológicas.
[3] Na definição avançada por esse teórico russo, chronotope, ce qui se traduit, littéralement, par «temp-espace»: la corrélation essentielle des rapports spatio-temporels, telle qu’elle a été assimilée par la littérature (Bakhtine, 1975 : 237). Sobre a origem do termo, esclarece-nos o autor que : Ce terme est propre aux mathématiques; il a été introduit et adapté sur la base de la théorie de la relativité d’Einstein.

Animais? Humanos?


Ontem à noite mais uma vez tentei ignorar os gritos de um cão atropelado. Não consegui. Não eram gemidos nem latidos, eram gritos de dor, de desespero, de abandono. Eu tirei as mãos do computador, arranquei os óculos da cara e fiquei rezando para que o cão morresse logo. Dormi com a imagem do pobre animalzinho encolhido em qualquer canto, sozinho, sofrendo, sentindo a solidão das suas feridas.


Em outro tempo, em outro lugar, teria saído correndo em busca do acidentado, teria chamado o veterinário, teria cuidado do seu sofrimento e tentado amenizar seu abandono. Mas aqui, não posso. Todos os dias são dezenas de cães atropelados, maltratados, abandonados e eu rezo para que todos eles morram logo, como se reza para que o sofrimento de um doente terminal acabe.


A impotência é o pior dos sentimentos. Dizer «não posso» é a pior das frases. Mas, realmente, não posso.


Enquanto tento dormir, crio imagens de um hospital canino destinado a tratar destas emergências. Um carro a vagar pela cidade dia e noite atrás de cães abandonados que os recolhe e os leva a um abrigo. Sonho em ganhar na loteria para comprar um sítio grande o suficiente para acolhê-los e cuidá-los e para ter dinheiro suficiente para dar-lhes todos os mimos que dou aos meus dois cães.


Meus dois cães não sabem como são afortunados. No fundo, não têm mais do que merecem. Têm água limpa, comida abundante, banhos, remédios e muito amor. Mas o que é isso perto de tudo o que eles me dão? Não, eu não lhes dou nada de graça, recebo em dobro a alimentação e os cuidados que lhes dou.

Voltando aos cães que não são meus… Eles são do mundo, das ruas, filhos da miséria humana. Miséria da alma humana que despreza, judia e mata sem remorso criaturas indefesas que só têm amor para dar.

Às vezes penso que seria mais humano matá-los a todos, colocá-los em uma grande câmara de gás e acabar com seu sofrimento. Mas não, diriam alguns – câmara de gás não é humano, é desumano.

Aí está um conceito que não consigo entender. Utiliza-se a expressão «humano» como sinónimo de bondade; utiliza-se «animal» como sinónimo de maldade. Está tudo trocado.

Ora os ditos humanos destroem, poluem, inventam guerras em nome da cobiça e endurecem cada vez mais seus corações. A morte é cada vez mais banalizada nos noticiários. Ferem e fazem sofrer por motivos mesquinhos e ainda têm a petulância de justificar que o fazem por humanidade. Exactamente! As guerras, as fomes, a desolação do planeta, tudo é feito por humanidade!

E os animais? Ah, sim, são perigosos. Cobras picam e matam; elefantes arrasam colheitas inteiras com seus pesados pés; leões atacam sem piedade; jacarés engolem pés e mãos e pessoas inteiras; ursos polares competem na pesca com esquimós; pássaros comem as sementes das lavouras… Animais! Terríveis criaturas que simplesmente defendem seu território de invasores ou vão em busca de comida porque sua comida foi destruída pela humanidade.

Outro dia, encontrei uma cobra mamba no meu quintal. Era filhote, da grossura do meu dedo e com uns 20 centímetros. Relutei em matá-la, afinal, muito antigamente, no lugar desta casa havia um mato espesso onde ela podia esconder-se e caçar à vontade. E era o que fazia no meu quintal, tentando engolir um sapinho gordo que não passava nas suas mandíbulas. Matei-a por medo, por precaução. O correcto seria abandonar o quintal e deixá-lo todo para ela. Mas minha humanidade me impede de respeitar seu espaço, ela que respeite o meu!

Então esta é a solução: matem todos os animais. Construam uma grande câmara de gás e coloquem todos lá dentro. Que durmam tranquilos e vão para o céu, de onde nunca deveriam ter saído, porque são todos anjos de bondade e inocência.

A humanidade não merece sua companhia. Somos humanos demais, mesquinhos demais. Vamos criar uma civilização de animais-robôs programados para fazerem todas as graças dos antigos animais de carne e osso, sem o instinto de picar, pisotear, caçar… cães e gatos de estimação que não fazem chichi nem cocô, que não roem os sapatos, que não precisam de banho e cuidados. Será fácil. Quando estivermos muito atarefados e não lhes pudermos ou quisermos dar atenção, desligaremos o botão. Receberemos amor quando quisermos, uma lambida com gosto de lata, um ronronar metálico entre nossas pernas.

E, enquanto tudo isso acontece aqui embaixo, os animais-anjos estarão rindo de nós lá no céu, felizes, pulando de nuvem em nuvem em liberdade e harmonia. Esta é a sociedade perfeita, o mundo perfeito, sem guerras, equilibrado, onde só se caça por fome e só se ataca por defesa. Infelizmente, a humanidade ainda não evoluiu suficientemente para chegar a este nível.

Perguntas...



Hoje lembrei de um poema do Brecht, «Perguntas de um trabalhador que lê». Lembrei porque também tenho muitas perguntas que andam sem resposta...


Pensei em parodiá-lo, seria o poema «Perguntas de uma dona-de-casa que lê», mas quando li «Quem construiu a Tebas, a das sete portas...» desisti na hora. Não consegui achar nada que fosse construído por uma dona-de-casa letrada, pelo menos nada material, a não ser bolos, assados, biscoitos... mas isso depois desaparece, permanece somente na lembrança de quem comeu - isso se estiver muito bom ou muito ruim, porque, se estiver «normal», ninguém lembra mesmo! Eu mesma não lembro o que jantei ontem!


Mesmo assim, resolvi perguntar...


Por que quando tenho que estudar quero cozinhar e quando tenho que cozinhar quero estudar?

Por que quando finalmente consigo engatar um raciocínio, meu marido chega do trabalho?
Por que demorei tanto tempo procurando a diferença entre Teoria da Literatura e Ciência da Literatura e no final descobri que são basicamente a mesma coisa?

Por que, quando resolvo fazer «aquela» receita diferente, nunca tenho os ingredientes?

Por que o sexo era bem melhor quando meu marido era meu namorado?

Por que a empregada simplesmente faz questão de fazer de conta que não entende o que eu digo?

Por que nos raros dias que estou inspirada, perfumada e empolgada, meu marido chega cansado e estressado do trabalho? E vice-versa?

Por que o Barthes escreveu tantos livros se na maioria deles repetiu o que os estruturalistas russos disseram? E por que eu tive que ler Barthes para descobrir isso?

Por que fiquei curiosa em descobrir mais sobre o tal lusotropicalismo? E por que agora vou me obrigar a reler Casa Grande e Senzala para entender essa maluquice?

Por que a tarde passou tão depressa, ja são 7:00, ainda tenho que tomar banho e preparar o jantar e, na verdade, queria ficar aqui viajando e buscando mais porquês???

Agora um porque junto: porque c'est la vie...

Ah, só mais uma: Por que resolvi que iria aprender francês sozinha e agora passo manhãs inteiras fazendo biquinho para o espanto e gozação dos empregados???

Fui, então, porque já acabou meu tempo!


Ecologia, Hipocrisia e Recalque



Não costumo assistir televisão. Penso que existem coisas muito mais interessantes e informativas do que ficar horas e horas sentada à frente de uma tela que nos diz como agir e como viver...Mas, recentemente, num desses momentos de ociosidade completa, resolvi passar os canais.



Num canal conhecido, a National Geographic, passava uma reportagem sobre o lixo tóxico que os EUA haviam despejado no fundo da baía de Monterey e que agora está causando graves problemas - o feitiço virou contra o feiticeiro - o lixo contaminou a cadeia alimentar e está indo parar no prato dos poluidores. Confesso que pensei baixinho: «bem feito! - quem mandou sujar???».



Em outro canal, passava ao vivo uma conferência sobre o meio ambiente em Moçambique. O palestrante falava sobre dados da ONU, revelando que os EUA, com somente 5% da população mundial, consumiam 40% das reservas naturais do planeta. Se todos os habitantes da Terra consumissem como os estadunidenses (explico mais abaixo o uso deste termo), seriam necessários 6 planetas Terra!Este palestrante disse também que somente agora os EUA estão começando a ceder às pressões do protocolo de Kioto e iniciando uma tentativa de redução da emissão dos gases poluentes...Por fim (antes de eu desligar a televisão), disse que precisamos urgentemente encontrar meios para pressionar os «senhores do mundo» na questão ambiental, mas que, em contrapartida, temos que «limpar nossos quintais» também.Corretíssimos, a Nat Geo e o palestrante do outro canal.



Estas observações acenderam a minha velha aversão aos EUA. Aversão aprendida na escola, na faculdade, entre os hipócritas intelectuais comunistas-marxistas e todos os «istas» que se puder imaginar...Aprendi, naquele tempo, que não se pode chamar aos habitantes dos EUA «americanos» porque este termo pertence a todos os habitantes das 3 Américas, consequentemente, os brasileiros, bolivianos, chilenos......... também são americanos; muito menos «norte-americanos», porque a esta denominação também respondem os Canadenses e os Mexicanos. O termo politicamente correto (sob qual ponto de vista?) é mesmo «estadunidense».

Nós, dos países sub ou em vias de desenvolvimento, temos este nato sentimento confuso em relação aos vizinhos ricos do Norte. Ao mesmo tempo que os odiamos, os admiramos e os invejamos. Eu, particularmente, tenho outro termo para isso: recalque. Isso mesmo. Somos todos recalcados.Julgamos e condenamos, mas não nos colocamos no lugar deles. Será que não faríamos o mesmo? Quem no Brasil ou em qualquer outro país «sub» ou «terceiromundista» abriria mão da sua água quente no chuveiro, do seu forno de micro-ondas, da sua geladeira e do seu ar-condicionado? Quem abriria mão do spray para mosquitos e das lindas frutas e verduras cheias de agrotóxicos? Quem deixaria de passear no seu carro altamente poluente para enfrentar um ônibus lotado? Sou sincera: EUZINHA, NEM MORTA!

Gostei da expressão (acho que já bem batida) daquele palestrante: limpar nossos quintais. Se fôssemos viver de acordo com todas as leis ecológicas, teríamos de voltar à época dos paus e pedras. Sem eletricidade, sem confortos. Comendo o que a terra nos dá - porque a matança de animais também é anti-ecológica. Repito: sou sincera - não vivo sem um bom bife mal passado!Isso tudo é para dizer que somos radicais no que se refere aos hábitos dos outros - ELES não devem poluir, ELES não devem matar os animais, ELES não devem.... tantas reticências e tantos etecétaras...Mas NÓS... ah, nós não podemos viver sem nossos confortos.Quero deixar claro que não estou defendendo DE JEITO NENHUM os Estados Unidos. Nunca me passaria pela cabeça.

Continuo considerando-os os bandidos mais perigosos do mundo, sem escrúpulos nem humanidade nenhuma - veja-se Iraque & Cia (com trocadilhos). Mas, quanto à ecologia, acho que deveríamos parar com esse recalque de dizer que ELES devem ser pressionados. Primeiro, pressionemos a nós mesmos. Olhemos os nossos rabos antes de apontar os dos outros, talvez o nosso seja mais comprido.


Para terminar: li em algum lugar que a presença de borboletas indica um ambiente não contaminado, limpo de qualquer substância tóxica ou nociva à vida - as borboletas são extremamente sensíveis a qualquer poluição. Sugiro: olhem agora pela janela e procurem uma única borboleta.

Se avistarem alguma, podem jogar a primeira pedra em quem quer que seja.Eu, particularmente, tenho borboletas no meu jardim. Mas vivo na África, em Moçambique, num país sub-sub-sub-sub-desenvolvido... Será que continuarei a ter borboletas no meu jardim quando Moçambique se tornar um país desenvolvido como todos querem?

Crise da noção de pessoa


Vítor Manuel de Aguiar e Silva, no seu livro Teoria e Metodologia Literárias (Universidade Aberta, Lisboa, s/d), falando sobre o nascimento do 'nouveau roman' destaca a crise da noção de pessoa como como subjacente à crise da personagem romanesca. Neste 'novo romance', a personagem já não é descrita como nos romances dos séculos XVIII e XIX, com nome, atributos físicos e caracteres psicológicos bem definidos.

Chamou-me a atenção o último parágrafo do sub-capítulo 9.3.4 (O retrato da personagem), na p. 263, que diz o seguinte:



«Esta crise da noção de pessoa, imediatamente explicável pela influência exercida em largos sectores intelectuais e artísticos pela psicanálise e pela psicologia das profundidades, tem uma matriz mais profunda e deve situar-se num contexto mais amplo: trata-se de uma consequência e de um reflexo da crise ideológica, ética e política que vem minando a sociedade ocidental contemporânea - crise que alcançou o paroxismo com a sociedade neocapitalista dos nossos dias, dominada por uma tecnologia cada vez mais tirânica, regida pelo ideal do consumo crescente de mercadorias e serviços e comandada por um capital cada vez mais anónimo, mais identificado com gigantescos empreendimentos técnico-económicos de carácter multinacional e, por isso mesmo, cada vez mais brutalmente desumano. Nesta sociedade tecnoburocratizada, carecente de motivações éticas profundas, onde o homem sofre e não age, onde a reificação vai implacavelmente alastrando, o romance não poderia retratar personagens segundo os moldes e os valores da sociedade burguesa e liberal dos séculos XVIII e XIX.» (negrito meu)



O autor aqui não insinua, mas diz diretamente que vivemos numa sociedade sem identidade, sem motivações pessoais ou individualizações...



Quando ele diz «... o homem sofre e não age...» é como um tapa na nossa cara, porque vemos as barbáries, sangramos por dentro e o único ato que praticamos é mudar de canal ou fechar o jornal - ou quem sabe, no máximo, mandar um e-mail para toda a nossa lista de contatos protestando, com palavras de ordem.



Lembrou-me o Huxley e seu Admirável Mundo Novo - só falta mesmo admitirmos que somos humanóides, robôs programados pela mídia e pelas convenções de um capitalismo impessoal (será redundância chamar o capitalismo de impessoal?)!



Ah, o idílio, onde estão os pastores do Parnaso nesta algura???

A caminho da completa inutilidade masculina



Depois da emancipação feminina, da invenção do veneno de barata, do guindaste e do vibrador, a última função masculina está sendo posta em causa.

Em Londres, cientistas britânicos criaram espermatozóides a partir das células-tronco masculinas que podem ser a solução para uma concepção completamente feminina...

Leiam matéria abaixo, extraída do site do jornal O Globo, de 13/04/2007 - (xiii... que notícia para os homens, logo em uma sexta-feira 13!!!)


Técnica daria espermatozóides às mulheres

O Globo

LONDRES - Cientistas conseguiram criar células sexuais masculinas em laboratório a partir de células-tronco extraídas da medula óssea de homens, num estudo que promete aumentar a discussão sobre os limites da ética na reprodução assistida. A pesquisa, em tese, abre caminho para que sejam criados espermatozóides de mulheres, tornando possível, por exemplo, que um casal de lésbicas tenha filhos biológicos. De acordo com a reportagem do jornal britânico «The Independent», os pesquisadores já estão buscando obter autorização para tentar desenvolver células sexuais masculinas a partir de células-tronco da medula óssea de uma mulher.
- Teoricamente é possível. O problema é saber se os espermatozóides seriam funcionais ou não. Não acho que exista nenhuma barreira ética desde que seja seguro - afirmou, em entrevista ao jornal, o principal autor do estudo, Karim Nayernia, atualmente na Universidade de Newcastle upon Tyne, na Inglaterra. - Estamos no processo de tentar obter as licenças éticas. E nos preparamos para pedir autorização para usar as células-tronco existentes em um banco aqui em Newcastle. Precisamos da autorização do paciente que forneceu a medula, do comitê de ética e do hospital.
Se os especialistas conseguirem obter espermatozóides femininos, eles serão cultivados em laboratório. Depois, terão testada sua capacidade de conseguir penetrar um óvulo, no caso o de um camundongo, num teste básico para checar a viabilidade de espermatozóides.
- Queremos testar a funcionalidade de qualquer espermatozóide, masculino ou feminino, produzido dessa forma - afirmou Nayernia.
Entretanto, não há intenção, segundo o especialista, de produzir espermatozóides femininos para fertilizar um óvulo humano, o que requeriria a aprovação da Autoridade de Embriologia e Fertilização Humana do Reino Unido.
O objetivo imediato é avaliar se as células-tronco retiradas da medula óssea feminina poderiam mesmo originar espermatozóides. Não está claro ainda se as células femininas teriam as informações genéticas necessárias para criar uma célula exclusivamente masculina.
Criar espermatozóides de mulheres significa que eles só seriam capazes de produzir filhas mulheres porque o cromossomo Y do espermatozóide masculino é o responsável pelo nascimento de meninos. Para tanto, frisam os especialistas, ainda seriam necessários muitos anos de pesquisa. Mas ainda assim, o novo estudo torna a idéia da concepção feminina mais próxima da realidade.
Quer dizer -> as mulheres vão mesmo dominar o planeta!!! Cuidem-se, machões!!!

Devezenquandário

(do antigo Devezenquandário)


Este título - Devezenquandário - é porque, óbvio, não é Diário...
Não, não deve ser original, alguém já deve ter usado esta expressão em algum outro lugar, mas também não tenho a pretensão de ser original. Não tenho a pretensão nem de ser plagiadora, quanto mais original...
É porque, de-vez-em-quando, dá-me vontade de escrever qualquer coisa, qualquer viagem, filosofia sem fundamento ou fazer alguma hermenêutica ou exegese de algumas letras perdidas...
É também porque quando vêm-me estes pensamentos meio galáticos, psicodélicos, extra-planetários, é mais fácil escrever do que falar...
É porque, por fim, gosto de escrever... e gosto mais ainda de viajar...Pensei em fazer um «Diário» por escrito mesmo, mas, como me conheço muito bem, primeiro não escreveria todos os dias (o que também vai acontecer aqui), segundo, quando digito, as idéias não se perdem, consigo escrever antes que elas fujam...
Meus neurônios andam brigados, em greve, talvez seja o tal problema dos controladores aéreos lá no Brasil... afinal, eles (os neurônios) também são de certa forma controladores aéreos - do ar que às vezes ocupa o meu cérebro e pelo qual passam aviõezinhos de idéias sem piloto automático nem radar...

Para a amicíssima - em tom de diário

(postado no antigo Devezenquandário)

Querida amiga,
Conforme último e-mail: as lágrimas rolam, e eu rolo junto com elas.
Motivo? Só que o instante existe. E basta. Melhor curtir com a Cecília. Sonho... - Não será o Matrix uma realidade? Quem prova que não é?
Viagens, viagens... Capital, civilização, disk-pizza, nuvens, avião tremendo. Tinha uma mulher doente no avião, acho que com tuberculose, sentada bem atrás de mim. Humanidades à parte, Deus que me perdoe, morri de medo - no avião, todos respiramos o mesmo ar.
Afinal, o perigo de voar é maior do que simplesmente esborrachar-se no chão. A gente pode acordar.
E tudo isso por conta da TPM.
Por que hormônios e neurônios insistem em rebelar-se constantemente???
Um espanhol derrubou a porta do próprio quarto no hotel - dizem que tinha problemas mentais, foi para o hospital. Aí pensei: hospício? Será que ele não estava na Matrix e a porta era o telefone que não funcionava?
Sei lá, amicíssima, sei lá... viagens, viagens...
Beijos!


Comentários:

Sílvia Câmara disse...
Gostei muito do endereçamento, Aline: Para a Amicíssima.
Posso tomar como um personagem?
Avante, escritora!
um beijo

26 de Abril de 2007 20:47

Fernando Couto - pai de peixe, peixão é!!!

Imagem: «África» - Raphael Sirianni


As mãos ferem
acariciam e golpeiam
os tambores
- seu surdo grito na noite

Os pés batem
acariciam e revolvem
a terra
- sua ressonância grave e surda

No mesmo grito e ressonância
se caldeiam
os pés e a terra
a noite e a floresta
as mãos e os tambores

Violada na sua noite
opaca e tenebrosa
a terra desperta
corpo acariciado
que estremece
a terra acorda
possuído corpo
vibrante
a terra exulta
corpo marinho
ou vulcânico

Pulsa
o coração único
- as mãos e os tambores
a noite e a floresta
os pés e a terra

quarta-feira, 16 de maio de 2007

José Bento - a pedidos

Afinal, o misterioso poeta é realmente muito misterioso. Percorri a Internet atrás dele e... quase nada...


Descobri que ele é português, nasceu em 1932 e, nos anos 50, revelou-se como poeta nas revistas de poesia Árvore, Eros, Cadernos do Meio-dia e Cassiopeia.


Também é mais conhecido como tradutor do que como poeta - é considerado um excelente tradutor de numerosos poetas de língua espanhola, como S. Juan de la Cruz, Pablo Neruda, Cernuda, Quevedo.


Um outro comentário bem interessante feito sobre este poeta é que a intertextualidade da sua poesia com os poetas que ele costuma traduzir é bem visível.


Pronto, só isso, além da fotinho dele, aí ao lado.


Também no site do Instituto Camões, encontrei mais um poema dele, também belíssimo:


Novembro apagou nas buganvílias

seus nomes brancos, roxos, escarlates.


É mais difícil regressar a casa:

o caminho disfarçou, emudeceu

seu rosto nos muros e nas grades.


- Por onde seguiremos

sem que o outono espesso nos trespasse?



Este belo poema, sem título, é do livro Um Sossegado Silêncio, de 2002. Também publicou Sequência de Bilbau (1978), O enterro do senhor Orgaz (1986) e Silabário (1992) e está presente na Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea (1985).


É isso, pessoal... pouca informação, mas já é um começo. Toca andar à procura dos livros, que o poeta é dos bons!!!

sábado, 5 de maio de 2007

Império, Mito e Miopia - Capítulo I

I
Literatura colonial: enquadramento
teórico e periodológico

1. O conceito: uma dimensão problematológica

Devemos a Michel Meyer (1993) o conceito de problematologia que, mutatis mutandis, corresponde aos desafios e às dificuldades que se nos colocam ao tentar definir, de forma satisfatória, a literatura colonial. Em síntese, o teórico belga, analisando a linguagem, em geral, e a retórica, em particular, considera a existência de duas atitudes interpelativas que prefiguram uma «diferença problematológica»: uma, que se caracteriza por ser crítica e desassombrada e que não abole a interrogatividade exprimindo, por isso, o problemático; a outra, que se dispõe a tornar concludente ou a encobrir a interrogatividade da questão.

Para todos os efeitos, é com a primeira atitude que nos identificamos, pois, apesar dos «riscos» que daí possam advir, acreditamos que a literatura colonial, por aquilo que ela é e por tudo que a tem (ou não) envolvido, encerra motivos bastantes para que, longe de factualizá-la, a interroguemos, devassemos e problematizemos. E quanto mais essa questão é incerta, ou incómoda, menos se reduz a uma única e conclusiva alternativa e mais se abre a um espaço de alternativas múltiplas.

Além do mais, e ainda na esteira de Meyer, a dimensão problematológica decorre do facto de que cada afirmação feita em relação ao objecto em análise é, de certo modo, uma resposta a questões que não foram necessariamente formuladas. Isto é, quanto mais avançarmos nas nossas afirmações e respostas, crescente, mas não menos produtivo, será o grau de interrogatividade.
Se tivermos em conta, ainda, a sua proposta sobre o grau de problematicidade: máxima (questão duvidosa, sem critério de resolução); grande (questão incerta, mas com critério de resolução); fraca (questão resolvida), não hesitamos em considerar a literatura colonial um caso de grande problematicidade. Como veremos ao longo deste trabalho, e através dos diferentes exemplos que iremos apresentar, são, de facto, notórias as incertezas sobre o que é, na verdade, a literatura colonial.

Contudo, julgamos que o critério de resolução dessa incerteza residirá, de forma inequívoca, no texto e nas suas interacções com o contexto (histórico, cultural, social e espacial) como fundamento da sua conceptualização tipológica – veja-se o exemplo da literatura brasileira, em que temos, antes da independência, uma literatura que é definida como sendo do período colonial –, noutros, como aquele que nos interessa, se impõe como género, como estética determinada.
Recordemos que, a dado passo, na Introdução deste trabalho, colocámos a questão: «o que é a literatura colonial?». Questionamo-nos, agora, até que ponto uma tentativa de definir esta literatura não corre o risco de se tornar um exercício tautológico, indefinido e frustrante. Afinal, de forma implícita ou explícita, o desenvolvimento deste trabalho em cada linha, em cada parágrafo, deverá responder a esta preocupação mesmo quando ela permanece como uma questão em aberto, mesmo quando avançamos com definições provisórias ou parcelares. Além do mais, acreditamos que a perseguição dos conceitos – apesar da sua importância enquanto dispositivos operatórios – concorre, muitas vezes, mais para obscurecer e fechar a questão do que para aprofundá-la e apreendê-la na sua real dimensão.

No entanto, porque já têm sido avançadas, em diferentes épocas e lugares, e por diferentes autores, algumas conceptualizações inerentes à literatura colonial, parece-nos de importância sistematizar essas formulações, tanto para observar os pontos de convergência e de divergência como para melhor se avaliar da complexidade de um fenómeno que alguns têm tentado reduzir à mais simples expressão.

De sublinhar, entretanto, que um dos problemas que se coloca, de modo premente, para quem analisa o discurso colonial, privilegiando a sua vertente estética, é o de conseguir manter um equilíbrio epistemológico concordante com essa vertente. Isto porque se intersectam nesse tipo de discurso múltiplas e variadas dimensões: ideológicas, históricas, políticas, culturais, sociais, morais, etc., Daí que se reconheçam nas diferentes abordagens da literatura colonial embaraços dificilmente contornáveis.

Portanto, a literatura colonial, além de jogar com uma mais ou menos longa tradição histórica e literária, tem a envolvê-la, numa interacção dinâmica, todo um conjunto de valores e manifestações que transcendem o âmbito exclusivamente literário. Referimo-nos, antes, ao facto de essa interacção conduzir não só ao empobrecimento estético de muitas das obras produzidas, como também e por consequência, provocar algumas reservas na forma como é avaliada do ponto de vista da criação artística, ou, mesmo, do ponto de vista estético.

É, pois, tendo como pano de fundo esta última perspectiva que, por exemplo, Augusto dos Santos Abranches (1947:2), uma das vozes que se destaca na reflexão inaugural sobre a literatura colonial em Moçambique, defende que «se na criação literária existe essencialmente humanidade, na falada «literatura colonial» esse sentido de humanidade brilha pela ausência»[1].

Por sua vez, Rui Knopfli (1974:8), tomando como modelo Rodrigues Júnior, refere-o como «exemplo extremo da pseudoliteratura que pontifica sob os auspícios do establishment». Mais tarde, Fátima Mendonça (1989:44) afirmará, a propósito, que se trata de «produtos pseudoculturais nascidos artificialmente da aberrante situação colonial».

Pires Laranjeira e Luciano Caetano da Rosa citam um artista plástico do regime com quem parecem comungar a ideia de que a literatura colonial era quase sempre bizarra, afectada e sem consistência (Laranjeira 1999:249). Por sua vez, Inocência Mata (1992: 187), num estudo de fundo sobre a colonialidade literária de São Tomé e Príncipe, advoga que:

Da análise que ora ensaiamos, podemos concluir que há nos textos coloniais a ausência de uma dimensão literária muito importante que é a pensatividade textual (vs. impacto poético), índice de profundidade humana analítica. (Itálicos nossos).

Rui de Azevedo Teixeira (1998:347), na sua tese de doutoramento intitulada A Guerra Colonial e o Romance Português, afirma, a dado passo, e de forma concludente, que «não temos [os portugueses] verdadeiramente uma literatura colonial».

Contudo, apesar da atitude de desconfiança ou de rejeição que se gerou, a literatura colonial é um facto consumado. Isto é, produziram-se inúmeros textos líricos, dramáticos e narrativos que, com maior ou menor valia estética, exprimindo visões de mundo determinadas, circularam com uma certa intensidade durante cinco ou seis décadas, envolvendo leitores metropolitanos e «ultramarinos», e foram objecto de crítica, de premiação e de consagração pública e institucional.
Entretanto, a propósito da inevitabilidade desta literatura, o mesmo Augusto dos Santos Abranches (1947:1) conclui que:

Provável seria, pois, que a actividade colonizadora tivesse também a sua representação, a sua estética peculiar, oferecendo através da realidade criada a sua forma de arte. Seria natural o dar-se como verdadeiro o dístico «literatura colonial».

Entretanto, no que concerne à sua especificidade temático-estrutural, várias têm sido as interpretações avançadas sobre a literatura colonial. Pela sua importância, destacamos algumas delas na certeza, porém, de que nenhuma esgota a reflexão, mas que, pelo contrário, a alarga, aprofunda e enriquece.

Desta feita, e regressando, uma vez mais, a Santos Abranches (p. 3), verificamos que este procura definir a literatura colonial, equacionando o choque antropológico e civilizacional:

Antes de mais nada, entenda-se que, por «literatura colonial», nos referimos à que pretende contar as reacções do branco perante o meio ambiente do negro, isto é: a toda essa espécie de descrição mais ou menos ficcionista que nos introduz perante as pessoas imaginariamente vindas de ambientes culturais desenvolvidos, civilizados, para meios ambientes «primitivos».

Muito mais tarde, Manuel Ferreira (1989:241-249) concebe a colonialidade literária, de modo mais sistemático e consequente, a partir da análise do romance O Velo d’Oiro de Henrique Galvão, sustentando-se nos seguintes critérios: superioridade numérica das personagens brancas; melhor tratamento estético dado a essas personagens; estatuto a que têm direito: são quase sempre protagonistas; espaço físico normalmente inóspito e que justifica a acção do branco; tom épico dominante, numa espécie de «celebração colonial»; ponto de vista predominantemente europeu: visualização lusocêntrica; autor português com vivência africana; narrador apresentando uma «intencionalidade patriótica»; destinatário da ficção: o homem português vivendo em Portugal.

Este autor – que introduz já fundamentos de natureza pendularmente literária no conjunto dos seus critérios, nomeadamente o estatuto das personagens, o ponto de vista e a interacção autor-narrador-destinatário –, conclui que a literatura colonial «é a expressão de uma prática e de um pensamento que assentam no pressuposto de superioridade cultural e civilizacional do colonizador» (p. 250).

Por seu lado, Salvato Trigo (1987:144-145), numa comunicação intitulada «Literatura Colonial, Literaturas Africanas», apresentada num Colóquio sobre as Literaturas dos Países Africanos de Língua Portuguesa organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian, em 1985, defende que a literatura colonial caracteriza-se justamente pelo facto de os seus cultores não abdicarem da sua identidade, das referencias culturais e civilizacionais dos seus países, embora tentem mostrar-se integrados no meio e na sociedade nova de que fazem parte.

Isto é,

a literatura colonial pretende ser, fundamentalmente, um hino de louvor à civilização colonizadora, à metrópole e à nação do colono, cujos actos de heroicidade e de aventureirismo, de humanidade e de estoicismo são, quase sempre, enquadrados por uma visão maniqueísta da vida e do mundo envolvente.

Até aqui, verificamos que se nota nestas reflexões a incidência no facto de a literatura colonial traduzir a sobreposição cultural e civilizacional dos europeus que se manifesta no silenciamento, subordinação ou na marginalização do elemento autóctone. Este facto, como veremos adiante, é reconhecível nos factores estruturais da narrativa que instituem para o efeito uma escrita particular.

Um aspecto fundamental a reter, na conceptualização da literatura colonial, tem a ver com o facto de tanto os autores, através da visão do mundo que fazem prevalecer no texto, como os seus protagonistas não revelarem, em algum momento, qualquer crise em termos de identidade cultural. Portanto, no confronto com outras identidades, subsiste uma europeidade (portugalidade) inabalável.

Onde, entretanto, a reflexão teoria sobre o discurso colonial, em geral, e sobre a literatura colonial, em particular, conheceu desenvolvimentos assinaláveis foi nos círculos intelectuais anglo-americanos. Sistemática, acutilante, controversa, tentacular, trata-se de uma reflexão que, para todos os efeitos, não deixou de trazer subsídios teóricos e interpretativos significativos e de que iremos dando conta ao longo do nosso trabalho.

Não podemos, no entanto, deixar desde já de apontar Edward Said, uma das vozes mais destacadas na teorização sobre a literatura colonial. Assim, em Orientalism (1978), debruçando-se tanto sobre textos literários como não literários, Said procura analisar o modo como o Ocidente «inventa» o Outro, neste caso, o Oriente. Com uma linha de pensamento tributária do desconstrucionismo de inspiração derridiana, em que se procura dar voz às vozes ocultas ou dominadas, Said define o orientalismo como uma vontade e uma intenção de entender, controlar, manipular e incorporar aquilo que é um mundo manifestamente diferente (ou alternativo e novo). O autor conclui que o discurso sobre o Outro é, de modo inevitável, um discurso de poder.
Noutra obra de referência, Culture and Imperialism (1994), E. Said, através da análise de alguns autores britânicos e franceses que exprimiram de forma aguda e complexa o imaginário colonial na literatura, defende o aspecto dinâmico da cultura e as suas interacções políticas e sociais. A literatura, em particular a literatura colonial, acaba por revelar este dinamismo de tal modo que o império surge como o prolongamento da vontade de poder desenhado e alimentado pela cultura.

Por outro lado, Said atribui à narrativa um papel decisivo quer na formação das atitudes, referências e experiências imperiais, quer, em contraponto, na afirmação identitária dos dominados, isto é, the method colonized people use to assert their own identity and the existence of their own history (p. XIII). Aliás, para Said (p. 191), estudar as relações entre o Ocidente e as culturas dominadas não serve apenas para compreender uma relação desigual entre interlocutores desiguais, mas é um ponto de partida para estudar a formação e o significado das práticas culturais do Ocidente.

Daí que, ainda segundo Said (pp. 192-193), o discurso literário, sendo um dos grandes meios para exprimir o ideário ocidental, em especial na afirmação da sua pretensa superioridade em relação aos «outros», pode transformar-se num veículo importante na recolha das fraquezas desse mesmo imaginário e na definição da dependência cultural que foi criando em relação aos «outros».

Finalmente, ao considerar que a literatura colonial, em particular do século XIX, it effectively silences the Other, it reconstitutes difference as identity, it rules over and represents domains figured by occupying powers, not by inactive inhabitants (p. 166), Said consagra um provérbio africano citado por Chinua Achebe (2000:73) que reza que until the lions produce their own historian, the story of the hunt will glorify only the hunter.

Numa dimensão argumentativa que transcende as explanações de natureza político-ideológica, dominantes em Said, e fazendo do estereótipo (racial e cultural) o fundamento da sua interpretação não somente da literatura colonial, mas do discurso colonial, em geral, encontramos um dos seus mais proeminentes discípulos: Homi Bhabha. Recorrendo a autores como Freud, Lacan, Barthes e Foucault, Bhabha (1995:77) explica que, entre outras coisas, a construção do discurso colonial é então uma articulação dos tropos do fetichismo – metáfora e metonímia – e as formas de uma narcísica e agressiva identificação disponibilizadas pelo imaginário.

Com um discurso muito marcado pela teoria psicanalítica – daí que além de aliar a racialidade à teoria da sexualidade, o autor utiliza um vasto repertório dominado por termos como subjectividade, ambivalência, desejo, regresso do recalcado, poder, atracção e repulsa, fetichismo, etc. – em The Location of Culture, Bhabha analisa as atitudes e os discursos das personagens enquadrando-as em contextos epocais e espaciais determinados, sob o signo do conflito social e psicológico.

Uma das características da teorização anglo-americana, e que acaba por causar algum retraimento nos estudiosos de literatura, é o facto de essa reflexão ter como objecto o discurso colonial lato sensu, não respeitando a delimitação semântico-estrutural entre texto literário e texto não literário. Trata-se, por conseguinte, de uma colonialidade discursiva explorada essencialmente nas suas manifestações sociológicas, psicológicas, políticas, antropológicas, estéticas, etc.

Como que a sintetizar o espírito que domina esta orientação metodológica, Anne McClintock (1995:9) defende: I believe, however, that it can be safely said that no social category should remain invisible with respect to an analysis of empire. Por este motivo, observamos que se partiu, neste caso, para uma abordagem pluri e heterodiscursiva, enquanto o que nós procuramos circunscrever-nos ao discurso tout court, o que não implica que tenham de permanecer «invisíveis» os múltiplos aspectos que caracterizam a mundividência colonial. Muito pelo contrário.

Uma avaliação global destas interpretações oferece-nos um entendimento mais ou menos panorâmico, mais ou menos circunstanciado da literatura colonial, a partir exactamente da identificação dos pontos comuns que foram avançados. Ou seja, o facto de a literatura colonial basear-se em modelos hierarquizadores e que traduz, no seu todo, uma visão do mundo hegemónica. Em confronto, portanto, com outras visões do mundo latentes, ou explícitas, com frequência distorcidas, manipuladas, senão mesmo silenciadas, representando, na maior parte das vezes, um anacronismo cultural e civilizacional.

Existe, ainda segundo Bhabha, à volta da verdade colonial a conspiracy of silence (p. 123). Esta conspiração de silêncio encontra-se em todas as narrativas do império. É um silêncio ominoso que revela uma alteridade colonial arcaica que assenta em enigmas, obliterando nomes próprios e lugares próprios. Silencio que transforma o triunfalismo imperial em testemunho da confusão colonial, e aqueles que escutam o seu eco perdem as suas memórias históricas.

Em síntese, e em face das diferentes posições que temos aqui cotejado, a colonialidade literária significa, no essencial: reacção do europeu perante um meio e seres que lhe são estranhos; sobreposição de um ponto de vista eurocêntrico; escrita cujos autores não abdicam da sua identidade cultural; instituição de revelações de poder dominadores/dominados; expressão de um relativismo cultural pendularmente etnocêntrico e limitação da capacidade interpretativa do Ocidente.

Acreditamos que o adjectivo «colonial» será, provavelmente, uma das palavras mais carregadas de sentido(s), pois implica um triplo horizonte: do colonizado, do colonizador e do que resulta do cruzamento entre ambos e que se erige como síntese. A situação colonial representa uma verdadeira armadilha histórica da qual nem uns nem outros saíram incólumes.

Vocábulos como «selvagem», «mato», «primitivo», etc., são reveladores do facto de a acção civilizadora – leia-se colonizadora – aparecer como um acto providencial. Não é, pois, por acaso que o discurso colonial, no seu todo, se apresenta com um pendor essencialmente autojustificativo.

O uso que fazemos do termo «colonial» não deve ser entendido como um dado apriorístico e determinista aplicado de forma aleatória, ligeira e indiscriminada, mas sim como um conceito que emerge dos próprios textos através de um exercício de leitura mais sistematizado e que não pode deixar de se confrontar com realidades adjacentes. O que permite que o conceito de colonialidade literária, como já foi referido, se possa entender muito além dos limites históricos.

Com esta última asserção queremos reafirmar a ideia de que, no caso da literatura colonial de expressão portuguesa, se se reconhece a existência de uma colonialidade literária delimitada pelo ciclo histórico que se fecha em 1974, outras manifestações mais ou menos subtis, literárias e não literárias, podem denunciar uma colonialidade entranhada, travestida e persistente. Deste facto apercebe-se Alfredo Margarido. Daí que se refira aos «novos mitos portugueses», centrados na veneração da língua e de vocábulos como «lusofonia». Aliás, segundo o autor (2000:12), a independência das nações africanas fez com que muitos teóricos da colonização portuguesa modificassem «de maneira substancial o seu vocabulário». Por outro lado, a língua tornou-se o instrumento com o qual muitos portugueses pretendem perpetuar o império.



2. O contexto: a alavanca histórica

Como é sabido, há todo um conjunto de factores de ordem política, económica e social que acaba por ser determinante para o relançamento da ocupação colonial em África no século XIX, em que as potencias europeias adoptam uma nova fórmula «oposta às operações de conquista e de prestígio da colonização tradicional» (Brunschwig 1971: 24).

A partir da segunda metade do século XIX, período em que é revitalizada a influência ocidental no mundo colonizado, a Europa sentiu necessidade de reescrever o seu movimento expansionista, de reinventar a sua própria tradição de modo a dar-lhe maior «dignidade» e legitimidade, o que se traduzirá, entre outras realizações, pela produção de obras literárias que se instituirão como evocativas da saga imperial.

Um dos exemplos mais conhecidos é o do romancista inglês, Joseph Conrad, com obras como Heart of Darkness, The Nigger of the «Narcissus», etc. Temos, ainda, outros romancistas ingleses, casos de Rudyard Kipling e de E. M. Forster. Este teria em A Passage to India a obra de referência neste contexto. Em relação à França, destacam-se, entre outros, Victor Segalen e Pierre Loti.

Entretanto, numa etapa preliminar, os exploradores oitocentistas vão desempenhar um papel fundamental na renovação da colonização africana, o que faz com que apareçam como os precursores mais próximos da literatura colonial, obrigados que estavam a narrar a sua saga e a descrever as paisagens e os seres que iam encontrando. Referimo-nos às viagens de exploração do continente africano que permitiram as narrativas de David Livingstone, Verney Lovett Cameron, Henry Morton Stanley, Serpa Pinto, Silva Porto, Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens, etc.

Britânicos, alemães, franceses e portugueses envolver-se-iam nestas viagens de exploração sob o argumento do «interesse científico». Todavia, camuflava-se uma nova etapa da colonização africana virada para a consolidação da presença europeia. Esta era, entretanto, retoricamente justificada pela necessidade da sua «missão civilizadora» o que, de imediato, se traduziria pela abertura de novos mercados fora da Europa.

Além do mais, muitos dos exploradores que pretensamente realizavam viagens de exploração e de interesse científico acabaram por protagonizar ou apoiar actos de violência contra as populações nativas. Robert Hampson (1995:XIX) aponta, por exemplo, as acções levadas a cabo pelo britânico Henry Morton Stanley contra os habitantes de Banbireh Island, no Lago Vitória, em 1875. Ou de Livingstone que defendia que os africanos respeitavam só force, boldness and decision. Daí que se possa concluir, ainda segundo Hampson que war against slavery in Africa was so often used to justify colonial expansion (p. XVII).

Para V. G. Kiernan (1988: 226), contrariando o argumento do imperativo moral que movia os europeus e que impregnava os relatos dos exploradores, no sentido de trazerem a luz[2] para zonas mergulhadas na escuridão, a África became very truly a Dark Continent, but its darkness was one the invaders brought with them, the sombre shadow of the white man.

No século XIX português, encontram-se, também, algumas posições (raras) que, contrastando com as ideias dominantes sobre a acção colonizadora dos europeus, viam nela um processo de desagregação das sociedades africanas. E uma dessas posições é protagonizada justamente por Andrade Corvo (João 1985: 202), escritor e estadista, para quem:

O negro adopta os vícios e mesmo os costumes do europeu com facilidade, mas daí não lhe provém o bem; porque os bons exemplos e as boas doutrinas morais não acompanham a acção dos povos civilizados; antes a opressão, a violência e acção do seu sórdido comércio parecem ser as mais naturais manifestações do domínio europeu na África.

Por sua vez, na análise que faz deste momento marcante para o destino dos africanos, o historiador britânico Malyn Newitt (1995: 304) observa que:

Estes viajantes europeus, conscientes da expectativa do seu público, cujo apetite por livros de aventuras em África parecia insaciável, davam deliberadamente a impressão de estarem a descobrir terras novas e que as condições no interior careciam da atenção civilizadora dos europeus do Norte.

E, dado o espírito de competitividade que prevalecia, uma das arenas privilegiadas na rivalidade entre as várias potências acabou por ser a própria narrativa de viagens. Daí que, por exemplo, e segundo o mesmo historiador (p. 304):

Era normalmente nas histórias das atrocidades, sem dúvida exageradas para causar efeito e vir ao encontro dos gostos de um público leitor lúbrico, que os Portugueses tinham o papel principal, e grande parte das obras inglesas assumiu um tom manifestamente antiluso.

Para desfazer esta imagem, por um lado, e para não ficar arredado, por completo, deste novo movimento colonizador, por outro, o governo português, através dos seus exploradores e da Sociedade de Geografia de Lisboa, entretanto surgida em 1875, empenhou-se de forma intensa em organizar a realização de viagens de exploração. Estas, por sua vez, deviam motivar relatos sobre o interior africano e seriam uma resposta eficaz à hostilidade britânica. A rivalidade entre britânicos e portugueses será uma das notas dominantes nesta fase de procura de novos mercados e de conquista global e que, depois de muitos acordos e desacordos, terminaria de forma humilhante e traumática para os portugueses com o Ultimatum inglês de 1890.

Assiste-se, portanto, na segunda metade do século XIX, à retomada do movimento ocupacionista no sentido de se criar uma administração colonial consistente e efectiva, com o recurso a viagens de exploração, o que resultaria na proliferação de narrativas correlativas. Este movimento será selado pela Conferência de Berlim, em 1885, que significou a partilha formal de África entre as potências europeias.

Entretanto, Portugal, em função das novas circunstancias históricas, ia redefinindo a sua política colonial, concretamente em relação a Moçambique, através de algumas medidas como a introdução da tarifa colonial de 1892, a alienação de grande parte de Moçambique às companhias concessionárias, os acordos laborais com a África do Sul, a nova legislação sobre a terra, os impostos e a mão-de-obra, a lei laboral de 1899 onde, entre outras coisas, se reconhecia a existência de duas classes de cidadãos: indígenas e não-indígenas. Esta distinção será uma das especificidades da colonização portuguesa em Moçambique e que acabará por ser recriada na literatura colonial.

Será, porém, com o advento do Estado Novo, em 1926, que a política colonial – que só se fará sentir, de modo efectivo, em África a partir da década de 30 – fica traçada, em definitivo. Numa leitura atenta deste período, Manuel Ferreira afirma que, com a implantação do Estado Novo, se iniciou um frenético movimento propagandístico, cultural e ideológico (literatura, cinema, jornais, revistas, jornadas, semanas, slogans de glorificação do regime, programas escolares, congressos e exposições coloniais, prémios de literatura colonial, paradas militares, viagens presidenciais ao Ultramar, criação da Agência-Geral das Colónias, da Junta de Investigação do Ultramar), numa impressionante e desmedida «pirotecnia colonial do Governo», em que «nada e ninguém escapava a este vendaval da impunidade imperial» (1989: 9).

Por sua vez, Rui Ferreira da Silva (1985: 319) reforça a ideia de que, «em termos ideológicos, o Império Colonial povoa o imaginário do Estado Novo, fenómeno bem ilustrado pelas centenas de reuniões e exposições a ele dedicadas, com especial relevo para a Exposição do Mundo Português de 1940». É nessa conformidade que são aprovados os documentos que irão legislar a acção colonial durante o século XX, nomeadamente, o Acto Colonial (1930), a Constituição Portuguesa, a Carta Orgânica e a Lei da Reforma Administrativa Ultramarina de 1933. O imaginário vai, a partir desta altura, em especial em relação à África, sofrer um adensamento significativo dado o estreitamento das ligações entre a questão colonial, o regime e a identidade nacional.

Além do mais, o Estado Novo procura ressuscitar o multissecular espírito messiânico dos portugueses. Portanto, é todo um movimento que se impõe, segundo Cláudia Orvalho Castelo (1996: 189), «associado ao ressurgimento do Império e da Fé, ou melhor, ao retomar da missão histórica do povo português. Uma missão de origem divina que compreendia a evangelização dos povos e a construção da paz e do progresso do mundo».

Há, pois, um reavivar da lusitanidade alicerçada no ideal universalizante que ligaria Portugal aos territórios colonizados, processo que seria marcado por dois acontecimentos que exaltavam esse «nacionalismo universalista» e que são: a Exposição Colonial do Porto, em 1934, e a Exposição do Mundo Português, realizada em Lisboa, em 1940. Aí, seriam exibidas, de modo absolutamente vexatório, as diferentes tentativas de aniquilamento e de esvaziamento da identidade cultural dos povos sob domínio português.

Estamos, portanto, no contexto da história colonial, diante de «um dos momentos de anulação da identidade étnica e cultural de cada colónia» (Castelo, 1996: 118), porquanto, para a realização deste evento, a Exposição Colonial do Porto, o ministro do Ultramar, na altura Armindo Monteiro, «solicita a todos os governantes das colónias que enviem para a metrópole «famílias indígenas típicas», a fim de serem exibidas na Exposição, «alojadas em ambiente tão aproximado quanto possível do natural».

Um dos factos reveladores dos efeitos da dinâmica cultural e propagandística imprimida pelo Estado Novo é a constatação por parte de Marcello Caetano (1934: 253), uma das mais representativas figuras do regime, de que «sinal do carinho que as colónias nos merecem, é o desenvolvimento que tem tido nos últimos anos a literatura colonial, sobretudo a literatura de imaginação que é de maior efeito pedagógico pela sua feição aliciadora».

A literatura colonial pode ser vista, no cômputo geral, como tributária, tendo em atenção tudo o que se apresentou até aqui, de um duplo circunstancialismo: literário (relativo às narrativas de viagem atrás referidas) e político-ideológico (em função de toda a evolução do quadro de ocupação iniciado no século XIX e que terá, com o movimento que em Portugal lançou e consagrou Salazar, o seu momento mais elaborado). Estritamente conotadas com este último circunstancialismo, muitas das obras produzidas apresentar-se-ão com formas e conteúdos rudimentares, expressão quase transparente do ideal colonialista. Emblemáticos desta situação são, por exemplo, os romances de Eduardo Correia de matos e de Rodrigues Júnior, este último um dos mais panfletários e prolíferos escritores do regime[3]. Aproveitamos para esclarecer que a digressão que iremos de seguida realizar serve, no essencial, para identificar as obras que constituem o corpus do nosso trabalho.


3. O corpus: um roteiro reconfigurativo

Para a selecção dos textos que vão integrar e fundamentar a nossa análise, guiámo-nos, de certo modo, pela sugestão greimasiana segundo a qual um corpus, para ser bem constituído, deve satisfazer as seguintes condições: ser representativo, exaustivo e homogéneo. Partimos, para esse efeito, quer de algum conhecimento prévio decorrente de leituras anteriores e de informações escritas sobre autores coloniais – em muito contribuiu, nesse sentido, a Bibliografia das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa (1984) de Gerard Moser e Manuel Ferreira –, quer de testemunhos que nos foram prestados sobre obras que circularam no período colonial configurando uma visão do mundo específica e uma orientação estética determinada.

Conseguimos, assim, reunir um conjunto que, mantendo uma certa homogeneidade (Moçambique como invenção literária) e uma representatividade particular (um imaginário dominante de matriz eurocêntrica), nos permite identificar e analisar as principais linhas de força que caracterizam o que designamos de «literatura colonial». Voltamos, entretanto, a insistir na ideia de que esta literatura, no seu todo, não deve ser avaliada de modo uniforme e redutor, pois, como iremos demonstrar, ela irá conhecendo com o correr do tempo um processo evolutivo tanto em termos estruturais como temáticos.

São, portanto, três as fases que designamos, sucessivamente, por fase exótica, doutrinária e cosmopolita.


3.1. A fase exótica

Temos, assim, um primeiro momento em que, no seguimento do tom dominante na literatura de viagens de exploração, a literatura colonial apresenta a emoção do escritor perante terras e gentes estranhas e diferentes. É a fase exótica que se prolonga até meados da década de 50. Trata-se, neste caso, de um exotismo estético que se traduz na atitude deslumbrada e contemplativa do narrador que projecta representações paisagísticas ou humanas dominadas pelo culto do desconhecido, do surpreendente. Um autor que se destaca, neste período, é Eduardo Correia de Matos, com obras como Sinfonia Bárbara (1935) e Terra Conquistada (1946).

Da obra Sinfonia Bárbara, retirámos uma passagem (p. 25) bastante elucidativa sobre a vertente em que o exótico, tanto do ponto de vista da linguagem como das referências, se institui como valor dominante:

Nem a mais leve brisa acaricia as vergônteas, imóveis como se houvessem sido petrificadas, nem as borboletas, abundantes por êstes sítios, tão vistosas em sua garridice de côres, procuram com a tromba espiralada o pólen adocicado de escassas leguminosas. O activo colibri africano não adeja agora em tôrno às corolas procurando os insectos da sua alimentação.

Não se ouve o gemer enamorado das rôlas nem o grito metálico do galo do mato.

Afundou-se a vida na tumba do silêncio. A Natureza adormeceu, amodorrada pelo soalheiro, exausta de calor e de sêde.

Paira no ambiente uma expectativa tenebrosa. Recolhidos em seus quartéis, os habitantes dêste logar, que vivem em contacto com o mundo da matéria bruta e conhecem os seus ardis, dispõem-se resignados a suportar os rigores da calamidade.[4]

Um dos aspectos que alimenta o exótico é a localização das próprias histórias, que se desenvolvem dominantemente no «mato». Aliás, há uma relação metonímica entre África e o «mato» que será explorada até à exaustão na literatura colonial, validando a afirmação de Bernard Mouralis (1975: 87) de que le discours exotique s’ordenne ainsi selon une rhétorique que vise à l’expression et à la caractérisation d’une réalité considérée comme fondamentalement différente.

É com este discurso exótico, «folclorismo literário» ou «turismo intelectual», segundo Inocência Mata (1992: 17), que se introduzem outras paisagens, outros homens, outros valores, éticos e estéticos, se multiplicam e se diversificam os pontos de referência, relativizando, portanto, o próprio mundo do autor colonial.

Se é verdade que este, na percepção de Mouralis (1975: 11), acaba por subverter o equilíbrio do campo literário e por pôr em causa o dogmatismo e o etnocentrismo literários, não o será de forma tão óbvia, pois o que acontece é que existe uma manifesta e persistente recusa de conhecer no Outro o direito à diferença. Veja-se, como ilustração desta situação, a descrição que é feita de um conjunto de mulheres africanas, em Sinfonia Bárbara (pp. 37-38):

São agora as mulheres.
Não ousadias de guerra, que elas nunca empunham arco ou lança nas lides da peleja.
Requebros e ademanes sáficos. Odaliscas que, quando luta pela vida dá tréguas aos seus senhores, lhes excitam os nervos para os prazeres da carne e lhes lembram que há em seus corpus doçuras compensadoras de todas as fadigas.
Não há, em regra, beleza alguma a adorná-las. Na sua maioria, são encarquilhadas, sujas e feias. Excepcionalmente, algumas, bem poucas, apresentam-se dum encanto exótico, misterioso, antigo, do templo de Salomão ou dos faraós do Egito.
Ora se saracoteiam, meio curvadas, prestes a cair, meneando os braços abertos e as nádegas gordurosas em moganguices concupiscentes e requebros pornográficos; ora se erguem em desafio e sacodem o busto farto, a mostrar aos homens, em círculo à sua volta, a exuberância dos seios entumecidos.

São, aqui, claramente expressos, por parte do narrador, cruzamentos judicativos de ordem estética e ética onde a incompreensão antropológica acaba por reger, de modo decisivo, a forma como vê o mundo diferente que representa. O que ele, na realidade, vê não são formas, mas deformações, medidas precisamente pelo seu inabalável código de valores.

Neste capítulo, um dos aspectos mais paradoxais do discurso exótico – de certo modo, uma característica mais ou menos presente nos discursos culturais enquanto discursos de alteridade – é que quanto maior é o investimento na autenticidade do ser representado, maior é a sobreposição dos diferentes códigos que regem a visão do observador.

Publicado, pela primeira vez, em 1927 e reeditado em 1999 pelo Arquivo Histórico de Moçambique, o romance Zambeziana. Cenas da Vida Colonial, de Emílio de San Bruno, traduz em muitos dos seus segmentos descritivos o deslumbramento que a descoberta do Outro provoca no espírito dos europeus.

Repare-se, pois, na forma como se manifestam as contradições entre o que a personagem visada deve eventualmente ser e o que, Paulo, o jovem tenente recém-chegado à Zambézia, quer que ela seja:

- Efectivamente é esquisito isto! – pensava Paulo. – Isto é uma raridade! Uma preta assim com as feições tão correctas, com um nariz tão regular e a esbelteza do corpo… e o pé, que não é o chato e espalmado pé da preta! O Lucena tinha razão! Isto é uma bela rapariga em toda a parte… e tem o cabelo corredio! Um pouco encrespado, é verdade, mas nada que se pareça com as ásperas carapinhas… Com certeza esta rapariga na Europa fazia fortuna!... (p. 119).

O desconhecimento, que se traduz quase sempre no preconceito, acentua a condição paradoxal do discurso exótico que oscila assim entre a visão deslumbrada e a inferiorização muitas vezes inconsciente do Outro. Com penetração, Todorov (1989: 356) observa que o conhecimento é incompatível com o exotismo, mas o desconhecimento é, por sua vez, inconciliável com o elogio dos outros; ora, é exactamente o que o exotismo acaba por ser, neste caso: um elogio no desconhecimento. Tal é o seu paradoxo constitutivo.

O exotismo atravessa diacronicamente o imaginário ocidental e a literatura tem sido um dos palcos onde tal fenómeno tem tido particular expressão. Temos, portanto, um exotismo clássico, neoclássico, romântico, simbolista, naturalista, etc. Seja ele exotismo humano, paisagístico ou do vocabulário, trata-se, no essencial, da sobreposição de uma visão do mundo perante outras terras e outros seres: africanos, americanos, orientais, etc.

Muito chegado à estética naturalista, Sinfonia Bárbara traduz, no culto do exótico, a oscilação entre uma objectividade analítica e uma imaginação quase delirante, visível na forma como o narrador maneja a sua apreensão de um mundo (o africano) cujos segredos procura desvendar através da aplicação de teorias ancoradas em ciências emergentes, como a etnografia e a antropologia. Já não se trata aí de pura contemplação, mas de uma activa e controversa interpretação do Outro:

Os pretos habitavam em palhotas de colmo que edificavam, cultivavam a terra, apascentavam gado; embora num estado de civilização muito rudimentar, não viviam como êsses bárbaros [os bosquímanes], à mercê do acaso, tão abaixo na escala dos seres humanos como os mais mesquinhos habitantes das cavernas na Idade Média (p. 89).

Esta leitura vai, de forma clara, de encontro à análise de Johannes Fabian (1983: 143) que defende que anthropology emerged and established itself as na allochronic discourse; it is a science of other men in another Time. It is a discourse whose referent has been removed from the present of the speaking/writing subject. Investido no papel de antropólogo, o narrador vai construindo um universo em que a diferença se insittui como valor determinante na afirmação do distanciamento espacial e temporal entre uns e outros. Isto é, e tal como explica Edward Said (1978: 24), o exótico, neste caso particular, além de exprimir uma vontade e uma intenção de entender, procura controlar, manipular e incorporar aquilo que é um mundo manifestamente diferente (ou alternativo e novo).

Serão, pois, estas algumas das características que fazem do exótico não só um segmento constituinte de um momento particular do percurso da literatura colonial, mas também um aspecto recorrente em toda essa literatura nas suas diferentes tendências.

Apesar de tardio em relação à fase que nos ocupa, de momento, o romance A Neta de Jazira (1957), de Maria da Beira, enquadra-se aí perfeitamente devido ao facto de o exotismo humano e geográfico ser fortemente explorado e determinando a estrutura narrativa e a representação dos diferentes imaginários. Trata-se, neste caso, da história de uma rapariga que, adoptada pelo seu padrinho de baptismo, um médico prestigiado, radicado na capital da colónia, descobre, um dia, que era neta de um francês, engenheiro numa fábrica de descaroçamento de algodão, na Zambézia, e de Jazira, filha de um cabo de guerra nativo. Esta descoberta, que está associada a uma decepção amorosa, levará a jovem Eva Maria a radicar-se no interior, onde acidentes de percurso lhe farão conhecer factos até aí ignorados inerentes às suas tão desencontradas origens.


3.2. A fase doutrinária

Enquanto que, na fase exótica, o protagonista, espécie de dandy, tem uma aura romântica a envolvê-lo (viajante, aventureiro, etnógrafo, etc.), animado por uma curiosidade insaciável e pelo desejo quase altruísta de conhecer o mundo do Outro, na fase que designamos de «doutrinária», o protagonista, sempre europeu, apresenta contornos mais realistas, é inculto, dinâmico, investido na missão de agir sobre o mundo do Outro. Trata-se de um tipo de personagem que poucas vezes compreende o alcance histórico da sua própria acção.

Portanto, se na fase exótica são visíveis as influências das teorias evolucionistas oitocentistas e do cientismo, muitas vezes utópico, que atravessa o século XIX na fase doutrinária, o que vamos encontrar é um tipo de escrita identificado com a ideologia colonialista instituída e propagandeada pelo Estado Novo. Um romance que cruza, quase que proporcionalmente, o exótico e o doutrinário é Terra Conquistada de Correia de Matos.

Apesar de as funções que exercerá no seu primeiro trabalho em Moçambique se reduzirem ao papel de fiscalizador, o protagonista, Francisco da Marta, inicia a sua saga africana integrado numa missão científica, no Norte da colónia. E é exactamente a partir daí onde obtemos os quadros descritivos mais identificados com uma perspectiva exótica dos homens, dos costumes e do espaço. Porém, ao transformar-se, mais tarde, em agricultor, da Marta concorre para a transfiguração da própria narrativa que, centrando-se nas suas acções, faz o romance evoluir para uma dimensão que simboliza a missão civilizadora dos portugueses em África.

Entre os anos 40 e 50, irá afirmar-se uma tendência do romance colonial mais preocupada em exaltar princípios e ideias que acabavam por pôr em causa não só a autonomia da obra, enquanto criação artística, mas também a sua própria valia estética. E a ideia de doutrinação impõe-se precisamente porque tanto os eventos como as próprias personagens funcionam como títeres, instrumentos de uma ideologia que precede e atravessa a obra, mantendo-se, de certo modo, intacta. Trata-se, neste caso, de ficcionalizar as linhas mestras da política colonial consignadas no Acto Colonial e sintetizada no seu artigo 2º, do título I, «Das garantias gerais»:

É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que nelas se compreendam, exercendo também a influência moral que lhe é adstrita pelo Padroado do Oriente.

São conhecidas as dificuldades e as inquietações que as relações entre arte e ideologia suscitam. Seja no plano da usa aplicação prática, seja no plano da análise dessas mesmas relações. Porém, devido à evidência com que se manifestam no romance colonial, neste período particular, torna-se incontornável que nos debrucemos sobre elas.

No duplo condicionalismo que apontámos anteriormente como estando subjacente à emergência da literatura colonial, identificamos um, de ordem estético-literária (literatura de viagens de exploração), e outro, de ordem histórico-política, que tem a ver com a revitalização da presença colonial europeia, decisivamente marcada, em Portugal, pelo advento do Estado Novo. Além das diferentes medidas e acções que são levadas a cabo pelo regime instituído, há um discurso que se vai impondo e que liga os destinos do país, a identidade e a consciência nacional aos territórios colonizados.

Aliás, desse facto dá-nos conta Fernando Rosas (1995: 28) quando observa que, além do mais, todo o esforço do Estado Novo era no sentido de criar uma nova «consciência colonial», de definição do carácter inalienável do «império» e de apresentar-se, na sua existência e permanência, como requisito político essencial à defesa e salvaguarda do «império». Por outro lado, Rosas apresenta como fundamentos da ideologia colonial, na época: primeiro, a «missão histórica» de colonizar, civilizar e evangelizar; segundo, superioridade do homem branco face ao «indígena» ou ao «preto» e que decorria muito do «darwinismo social»; terceiro, direito histórico à ocupação e manutenção do «império» face à conspiração permanente das grandes potências da época, e quarto, defender as colónias como se da própria independência nacional se tratasse.

De certo modo, há sempre uma construção ideológica, subjacente ou explícita, na literatura colonial. Por exemplo, o eurocentrismo, presente em praticamente todo o texto colonial, é uma construção ideológica. Na fase doutrinária, a ideologia faz-se sentir na sua múltipla acepção: quer como imagem invertida, deformada, fragmentária, mutilada daquilo que ela procura representar, isto é, má consciência (perspectiva marxista), quer como sistema determinado de ideias (Gramsci), quer, ainda, como conjunto estruturado de imagens, representações, mitos determinando certos tipos de comportamentos, práticas, hábitos, funcionando como um verdadeiro inconsciente cultural (Althusser). Assim, a ideologia, imbuída de uma ferocidade doutrinadora, manifestar-se-á a nu, com as intrusões do autor/narrador, de forma mais ou menos explícita, ou, então, subtilmente, ao ser entrevista nas peripécias da narrativa, no desenvolvimento da intriga, na concepção e no destino das personagens.

Temos, por conseguinte, neste segundo momento da literatura colonial, a partir dos inícios da década de 50, uma escrita dominada por um tipo de mensagem que expressamente vangloria a acção (gesta) individual e colectiva de um povo que se julga no direito sagrado de «salvar» o outro. Encontraremos, aqui, diluída nas acções e no discurso das personagens (quando não da própria instância narrativa), a autolegitimação da ocupação colonial que assenta na crença da predestinação de um povo no sentido de cumprir uma missão divina, levando a iluminação do espírito e a civilização onde elas não existem. Atente-se, por exemplo, em Sehura de Rodrigues Júnior, nesta curta, mas incisiva afirmação do narrador: «O mato precisa do homem branco» (p. 103). E o mato, metonimicamente, significa todo o espaço de sujeição.

Estamos aqui perante o romance-epopeia, segundo Julia Kristeva (1970: 190), em que temos uma escrita de carácter não transgressivo, facto que contraria a própria natureza do romance, pois tout roman à thèse idéologique tend vers un épisme et constitue une déviation de la structure proprement romanesque (p. 97). Portanto, trata-se de uma escrita dominantemente simbólica marcada pelo seu ideologema[5], de tal modo que além de o discurso restringir-se a determinados valores que procura projectar (coragem, heroísmo, nobreza, dedicação, etc.), acentua as contradições entre, por exemplo, valores como o bem e o mal, incompatíveis entre si e personalizados, respectivamente, pelo colono e pelo nativo.

É, pois, na fase doutrinária onde encontramos, como figura de proa, Rodrigues Júnior. Nas quatro obras em referência, nomeadamente Sehura (1944), O Branco da Motase (1952), Calanga (1955) e Muende (1960), é manifesto o peso de uma ideologia que encontra no preconceito (racial, étnico, cultural, civilizacional) uma das suas principais bases de sustentação. Alguns exemplos:

A sua [do branco] ligação com o indígena, só o prejudicará moralmente […] A influência «desse» modo de vida [dos negros] promoverá o rebaixamento moral e intelectual dos elementos de ocupação. (Sehura, p. 41).

A mulher negra é tudo quando o colono não tem mais nada (O Branco da Motase, p. 78).

Esquecia-se o Administrador que era servindo o branco que o negro havia de assimilar melhor os hábitos da nossa gente; que era trabalhando nos campos que o negro modificaria os processos primitivos das culturas para se desprender dos velhos costumes e ir, com êxito, para as machambas trabalhar os seus campos; (Calanga, p. 129).

Esta dimensão multipreconceituosa que é, no fundo, uma manifesta negação do direito à diferença, institui-se como uma das imagens de marca desta literatura. Preconceito que, no entender de Bhabha (1995: 66), é «um modo de conhecimento» (ou não será, antes, pseudoconhecimento?) e «um modo de poder». Por outro lado, trata-se de um exercício fantasista e defensivo, cristalizado no estereótipo, mecanismo complexo, ambíguo e contraditório. Sobre este aspecto, em particular, daremos um desenvolvimento mais alargado e aprofundado no capítulo V, onde analisamos as personagens.

Entretanto, nos excertos que seleccionámos, as personagens dos colonos aparecem representando ideologemas ancorados em valores sociais e morais positivos. A construção do mundo é feita à sua medida numa dimensão que coloca tudo e todos dependentes da usa presença e das suas conveniências. Já não estamos perante o exótico estético e antropológico, traduzindo uma atitude que se pretendia científica, todavia mais contemplativa que efectiva, observável na fase anterior, mas trata-se agora de um exótico ideológico, marcadamente racista.
Por outro lado, a literatura colonial desta fase é marcada por um realismo que explora ao pormenor representações da vida do colono, incidindo, em especial, na sua fixação e movimentação no interior, nas suas interacções conflituais ou harmoniosas com o meio físico e humano. São indisfarçáveis as influências nesta escrita da estética neo-realista entretanto em voga na Europa e na América, facto paradoxal tendo em conta as suas motivações humanistas. O realismo colonial[6] vai, também, impor-se como pintura verídica e concreta da realidade através da descrição da rudeza da vida das personagens, da valorização do trabalho rural, do retrato dos costumes, da obediência ao estilo próprio do documentário e da reportagem, da convencionalidade do traço caracterológico do colono e do nativo, do despojamento estético:

Os brancos não tinham nada. Eram pobres de pedir. Ao Matata [o colono] restava-lhe ainda o gado leiteiro, os bois de trabalho, os porcos e os galináceos. A terra precisava de ser trabalhada e a semente teria de germinar depois para dar o fruto. Até lá, quantas dificuldades a vencer, quanto suor e quanta lágrima se havia de verter sobre a terra toa generosa e tão traiçoeira? Os bananais desapareceram. Era necessário refazê-los […] O trigo, o milho e os batatais eram um recurso. Mas nada se fazia sem dinheiro. A mão-de-obra indígena, a alimentação e o vestuário custavam muitas centenas de escudos que teriam de ser pagos adiantadamente para garantir os contingentes de trabalhadores no amanho da terra. E nem dinheiro nem crédito. Quando se é desgraçado como essa gente da Calanga, ninguém quer saber quanto custa o sofrimento da penúria.

Através deste excerto de Calanga (p. 61-62), é possível observar que enquanto que as motivações e a orientação ideológica do Neo-Realismo assentavam no humanismo marxista, com a denúncia vigorosa das injustiças e das desigualdades sociais, o realismo colonial explora essas mesmas desigualdades, porém em defesa dos interesses do colono, sob o olhar apiedado do narrador que, entretanto, manifesta um completo alheamento pelo sofrimento e pela condição precária e marginal dos africanos.

Rodrigues Júnior é, nesta fase, o principal representante da literatura colonial que tem Moçambique como cenário. Deste autor, analisaremos, também, alguns aspectos do romance Omar Ali (1975), obra que, apesar de fugir ligeiramente aos nossos limites cronológicos (1930-1974), apresenta elementos importantes inerentes ao imaginário colonial e que assentam na representação do Outro, pensando e agindo segundo os filtros culturais ocidentais.

Enfim, aparecendo como proposta de uma orientação precisa à acção histórica de um grupo ou de uma colectividade, o código ideológico – que se institui sob forma de abstracção discursiva, juízos de valor, aproximação ou distanciamento em relação à determinada personagem, construção do enredo, etc. –, apesar das suas motivações extraliterárias, contamina e redirecciona, quase sempre, a configuração da obra literária.


3.3. A fase cosmopolita

Até que ponto a literatura colonial pode, em determinado momento da sua existência, emergir como representação de uma condição universal, de abertura ao mundo? Por outro lado, conhecida que é a dimensão ultranacionalista do sistema colonial português, de feição rural, em permanente atitude defensiva e fechado sobre si mesmo, como é possível falar em cosmopolitismo?

Segundo Jean Sèvry (1990: 8), o fenómeno colonial, na sua generalidade, enquanto nos surge como algo vivido, afinal, como toda a experiência humana, ele é involutivo, muda ao longo dos anos, passa do entusiasmo à decepção mais amarga. É o que podemos constatar em relação à literatura colonial que, da fase exótica, exprimindo um deslumbramento na revelação do humano e do paisagístico, passando à fase doutrinária, marcada por um ultranacionalismo imperial, desemboca, a partir dos finais da década de 50 e inícios da década de 60, num conjunto representacional acometido por tendências inovadoras e complexas.

Deste modo, tanto por influência de factores estritamente literários (pense-se na sucessão dos diferentes movimentos que marcaram a história literária do Ocidente, na primeira metade do século XX, desde o Futurismo até ao Neo-Realismo), como por influência de factores extraliterários (as duas Guerras Mundiais, a pressão das Nações Unidas sobre os impérios coloniais, os movimentos autonomistas e independentistas na África e no Oriente, etc.), o que se verifica é uma espécie de revitalização estética e temática do romance colonial onde passamos a encontrar, além de algum experimentalismo formal (Fernando Magalhães, Agostinho Caramelo), ambiguidades, dilacerantes internos das personagens, contradições, indefinições, consciência crítica, alargamento do campo referencial, etc.

Em termos conjunturais, este é um período marcado, em termos políticos, pela alteração de alguma terminologia que caracterizava o discurso colonial em que a expressão «províncias ultramarinas» substitui «colónias», o termo «assimilação» substitui «solidariedade». Por outro lado, é suprimida a designação «Império Colonial Português», surgindo o conceito de «nação pluricontinental», composta por províncias europeias e províncias ultramarinas formando um único todo nacional. Há, pois, um revisionismo discursivo e constitucional que leva à abolição do Acto Colonial (1951) e do Estatuto dos Indígenas (1961).

Além do mais, são encetados esforços, por algumas destacadas figuras do regime, no sentido de revalorizar e reconceptualizar termos como «colonização» ou «colonialismo». É assim que, por exemplo, Silva Cunha (1955: 148), professor catedrático e, mais tarde, ministro do Ultramar (1965 – 1973), se revolta pelo facto de a opinião pública internacional condenar a colonização, riscando «a palavra do texto dos tratados e das páginas dos livros», e falar «em tom desprezivo de colonialismo». Como contraponto, defende que dado tratar-se de «uma obra que só pode resultar quando for conduzida com perseverança, espírito de continuidade, devoção, amor e serenidade», facto que, do seu ponto de vista, tem como exemplo indesmentível o caso português:

A colonização, dê-se-lhe o nome que se lhe dê, seja qual for o sistema que se adopte para a organizar, é, ainda, uma actividade indispensável, a não ser que os povos civilizados se exonerem de um dever que lhes incumbe, imposto pela Moral e pelo Direito, de proteger e auxiliar na evolução dos povos mais atrazados [sic].

Trata-se, uma vez mais, de reivindicar narcisicamente o White Man’s Burden, segundo Kipling. Na verdade, este fardo, identificado com a auto-assumida responsabilidade de trazer o Outro para os carris civilizacionais e culturais do Ocidente, não passa de uma evidencia de arrogância etnocêntrica.

Por seu lado, Adriano Moreira, também professor catedrático e ministro do Ultramar (1960-62), colocando-se a favor da «reabilitação do colonialismo», postula uma distinção entre «colonialismo missionário» e «colonialismo espaço vital» (1955: 161). Enquanto que a primeira fórmula se assumia como «directa herdeira ideológica da concepção peninsular originária», representada por Portugal, e que devia ser salvaguardada, a segunda correspondia a acção das outras potencias coloniais que, preocupadas com a «satisfação dos seus interesses», acabavam por ignorar «a legitimidade dos interesses das populações colonizadas». Facto que naturalmente devia ser condenado.

Entretanto, além do conceito de cidadania que é estendido aos «indígenas», que teórica e praticamente se mantêm na sua condição de súbditos em relação à metrópole, começa a ganhar espaço a teoria da miscigenação que, de imediato, se confrontou com a resistência dos espíritos tradicionalmente conservadores da sociedade portuguesa. Isto porque, e de acordo com Cláudia Castelo (1966:119), a

possibilidade de se realizar em África uma simbiose étnica e cultural equilibrada repugnava o exacerbado nacionalismo lusitano. Em nome da pureza da «raça», da religião e da cultura portuguesa, a experiência brasileira não se podia repetir no Império Colonial português.

Será, no entanto, a teoria da miscigenação desenvolvida e sistematizada pelo sociólogo Gilberto Freyre, que ficou conhecido com o nome de «lusotropicalismo», que será não só adaptada pelo poder político como também pela própria literatura colonial. No essencial, o lusotropicalismo advoga a mestiçagem, a interpenetração de culturas e a vocação universalista dos portugueses que seriam dotados, segundo o autor, de um «especialíssimo carácter», expresso na «mobilidade», «plasticidade» (miscibilidade) e «adaptabilidade» (aclimatabilidade) (Freyre, 1933: 21). Era um claro investimento no ego nacionalista dos portugueses e que surgia providencialmente como a tábua salvadora do regime entretanto pressionado pela comunidade internacional.

Entre posições «misófobas» (que viam na miscigenação o princípio da degeneração da «raça» lusitana) e «misófilas» (que consideravam a miscigenação como uma prática «natural» dos portugueses e que tinham produzidos tipos humanos de qualidade «superior», caso do Brasil), emerge um discurso oficial para consumo externo que defende que «Portugal constitui uma comunidade multirracial, composta por parcelas territoriais geograficamente distantes, habitadas por populações de origens étnicas diversas, unidas pelo mesmo sentimento e pela mesma cultura» (Castelo 1996: 135).

As teses lusotropicalistas de Gilberto Freyre, que farão época, irão não só impregnar a literatura colonial das décadas de 50 e 60, ainda na fase doutrinária, como também se irão repercutir ou permanecer como sedimentos no imaginário português, em geral, em que a crença numa colonização «diferente» é sustentada por uma outra crença: a de um povo com uma «vocação» e qualidades especiais.

Sem estarem perdidas as características das duas fases anteriores, exótica e doutrinária, a fase cosmopolita vai apresentar um maior amadurecimento estético e discursivo, em que os cruzamentos culturais e sociais representados são visivelmente mais complexos, e em que a retórica que exprime a sobreposição cultural e civilizacional apresenta contornos mais elaborados e, em alguns casos, notoriamente ambíguos.

Por outro lado, há uma deslocação espacial dos movimentos narrativos do campo par à cidade que se torna no epicentro de toda a dinâmica narrativa. Facto que acaba, também, por ser decisivo pois veremos desenvolverem-se nesse espaço, e através dele, problemáticas que transcendem a determinação geográfica das personagens e que acabam por ter um alcance em que se explora, em geral, a condição humana.

Esta é, sem sombra de dúvida, a fase adulta da literatura colonial e que tem a ver, como já dissemos, com o desenvolvimento crescente das tensões internas e externas nas colónias portuguesas, por um lado, e com os processos intrínsecos à criação literária, por outro. Por conseguinte, o cosmopolitismo na literatura colonial passa, outrossim, pelo alargamento da perspectiva narrativa no sentido de considerar outras visões do mundo, outras vozes e por uma espécie de distanciamento em relação à consciência dominante marcada por um patriotismo restritivo e exclusivo.

Aliás, Rousseau, ao defender que o cosmopolitismo é incompatível com o patriotismo, antecipa teoricamente a nossa constatação das indefinições da fase cosmopolita da literatura colonial caracterizada pela ambiguidade e pela contradição, prenunciando, de certo modo, a dissolução da sociedade colonial e da literatura que a representa.

Destacamos, nesta terceira fase, os seguintes autores: Fernando Magalhães, com 3x9=21 (1959), Guilherme de Melo, com Raízes do Ódio (1963), Agostinho Caramelo, com uma trilogia romanesca intitulada Fogo (1961, 1962 e 1964), João Salva-Rey com Ku-Femba (1973), Eduardo Paixão, o autor cujos livros maior circulação e recepção tiveram, com Cacimbo (3 edições: 1972, 1972 e 1974), O Mulungo (1974) e Tchova, Tchova (1975). Esta última obra escapa ao âmbito temporal previamente definido no nosso trabalho, mas suscita notas de interesse para perceber algumas transfigurações reveladoras. Além do mais, os acontecimentos narrados situam-se nos anos precedentes à publicação do romance. Daí a sua inclusão.

Da autoria de Agostinho Caramelo, o romance Fogo (três volumes) narra, através de uma técnica inovadora e provocadora baseada, em exclusivo, no diálogo das personagens, os sucessos e desventuras de uma família de colonos enganada por um grego e que, na perseguição deste, acaba por percorrer todo o país. Daí, em cada volume, verificamos que a história desenrola-se, respectivamente, no Sul (Lourenço Marques), no Centro (Tete) e no Norte de Moçambique (Cabo Delgado). Parece ressaltar aqui um ideal programático, muito específico, assente na geografização de uma saga familiar e que permite a figuração e exploração das vicissitudes inerentes à coabitação de visões de mundo privada e colectivas, por um lado, distintas e dificilmente conciliáveis, por outro.

Mais interessado em mostrar do que em dizer, o romancista apresenta-nos intensos quadros psicológicos, através do monólogo interior, em que tanto os colonos como os nativos nos surgem enquadrados por um realismo impenitente, muitas vezes desconcertante. Veja-se, por exemplo, o momento em que o menino, filho do colono, chega pela primeira vez a Tete e fica surpreendido por ver um outro menino branco, sujo, a brincar com outros meninos, porém, limpos:

Não tens vergonha? Um rapaz branco, dessa forma despenteado, cabelo sobre as orelhas ensebadas […]? Assim, entre estes negros limpos, espertos? (Fogo, II, p. 54) (Itálicos nossos).

Por outro lado, casos há em que o desconcerto atinge o paroxismo, visto que aquilo que é vivido interiormente pelas personagens está em gritante e burlesca contradição com o que elas exteriorizam. Isto é, aquilo que elas dizem e fazem contraria o que lhes vai no íntimo. Neste pequeno excerto retirado de um diálogo entre o patrão branco e o seu empregado negro, repare-se no contraste entre a fala e os apartes:

- Negro não teme cobras, patrão («nem bichos do mato … são quase família … nascemos perto uns dos outros … vivemos quase misturados … só receamos gente branca …»).

- Despacha-te, carago; fala («se não procedesse assim, a pretalhada bem que me tratava da saúde … aguentaria esta matula de selvagens? …») (Fogo, III, p. 83).

No terceiro volume de Fogo, além de termos como protagonista uma personagem negra, a maconde Némia, profundamente interiorizada – aliás, como quase todas as personagens intervenientes, facto bem revelador do psicologismo realista que caracteriza a obra de Caramelo –, depara-se-nos um momento raro na literatura produzida em Moçambique: a representação do massacre de Mueda.[7]

Caramelo consegue aqui, através de diálogos eloquentes, recriar, com uma calculada intensidade dramática, esse momento histórico, polvilhando-o, antes, durante e depois, com minudências interiores e exteriores e cuidando inclusivamente de reproduzir, através do recurso a onomatopeias, o matraquear das metralhadoras. Trata-se, no essencial, de uma perseguição obsessiva e envolvente de um realismo que, de modo surpreendente, deita por terra toda a mitologia com que os romances anteriores cobriam a presença colonial portuguesa. O romance cosmopolita de Caramelo cumpre deliberadamente uma função desmitificadora e desmistificadora.

Não surpreende, portanto, que um dos mais destacados legisladores da chamada «literatura ultramarina», Amândio César, considere Agostinho Caramelo «um equívoco» (1971: 289). Mais adiante, o referido crítico acrescentará num misto de complacência e desprezo:

Não podemos negar a Agostinho Caramelo uma forte, quase direi, exaustiva, experiência humana […] daí a ser romancista… é que vai um abismo. E nesse abismo nasce o equívoco lamentável, em que alguns responsáveis [Fernando Namora, Montezuma de Carvalho] colaboraram, naquela inconsciência, muito nossa, de dar parecer a quem no-lo pede, não olhando às consequências. (p. 290).

Contundente, Amândio César concluirá que, apesar da vivência e da experiência, falta «chispa» a Caramelo, daí que a sua obra não traduza nenhum «romanesco, um romanesco que nunca houve e que não vemos por onde um dia possa surgir».

Quanto a Eduardo Paixão, cuja produção privilegia os meandros urbanos, principalmente lourençomarquianos, é um autor que introduz também algumas notas inovadoras no quadro das relações e das referencias dominantes sem, no entanto, deixar de exprimir o ideário europeu que passa, entre outros aspectos, pelo relevo que é dado ao colono cuja visão do mundo é fortemente dominada pela sua origem extra-africana.

Em Cacimbo, confrontamo-nos com a figuração da podridão moral da sociedade colonial desde a prostituição, passando por traições, o ódio, a ambição desmedida, a corrupção, até ao tráfico e consumo de droga e à discriminação racial e socioeconómica. Notoriamente, a partir dos meados da década de 50, começa a ser cada vez mais pronunciado, no contexto da literatura colonial, o romance de tendência pessimista e crítica em relação à sociedade que representa.

São disso exemplo obras como Tarantela (1956), de Francisco de Sousa Neves, e 3x9=21, de Fernando Magalhães. Por essa mesma altura, produzia-se, sintomaticamente em Portugal, uma literatura que, segundo Clara Rocha (1985: 260), estava «marcada, antes de mais, pelo sentimento duma civilização em perigo, advindo dum conjunto de causas históricas mais ou menos próximas». Isto é, trata-se de «um período em que se desenvolvem, profundos sentimentos de ordem destrutiva».

Por outro lado, são sensíveis as preocupações da burguesia colonial em relação a toda uma conjuntura interna e externa que perturbava a usa estabilidade e sobrevivência em África. Daí que, além da apologia das ideias de multirracialidade e de igualdade veiculadas, por exemplo, em Cacimbo[8], nos surgem, como aparentemente naturais, referências explícitas à Frelimo, movimento nacionalista que se erguera contra a dominação colonial portuguesa («Dizem que está na Frelimo», p. 266); a uma conferência de Sartre subordinada ao tema «Colonialismo e Neo-colonialismo» e que teve a presença do filho e da nora de Carlos e Emília de Sucena, Artur e Isabel (p. 345); ao jovem negro, Zé Luís Molindo, estudante de Medicina que interrompe os estudos para se juntar à Frelimo (p. 366). Quebrava-se, portanto, a «conspiração do silêncio» identificada por Bhabha.

Interessante é confrontar os discursos cruzados no romance sobre a questão racial e que, dada a sua eloquência, valem por si. Assim, se num determinado passo, o narrador – qual porta-voz de uma consciência colectiva autolegitimadora – defende que «o nosso tradicional multirracialismo possibilitava-nos um presente de paz e amor» (p. 132), D. Emília de Sucena, mãe zelosa dos sagrados valores da família e da sociedade coloniais, não consegue, pelo contrário, evitar um desabafo: «Era o maior desgosto da minha vida ver o meu filho casado com uma rapariga de cor» (p. 126). Anabela, a filha, representando no texto a juventude progressista e liberal, concluirá, depois de uma conversa edificante com a referida D. Emília: «Felizmente nós [os portugueses] não praticamos a segregação racial que leva ao ódio e à destruição» (p. 244). (Itálicos nossos).

Há, entretanto, no romance, a representação de uma cena que tem tanto de épico como de programaticamente utópico, quando Zé Molindo, chefiando um grupo de guerrilheiros, interrompe o combate, depois de reconhecer de longe o seu amigo Artur, e corre em direcção a este que comandava, por sua vez, um pelotão do exército colonial português. Contudo, uma mina, inadvertidamente pisada pelo primeiro atira o jovem guerrilheiro, já moribundo para os braços de Artur. Atente-se na carga simbólica, no élan trágico e patético que domina a cena e o discurso:

O sangue do negro e do branco corriam na areia, fundindo-se numa pequena poça […]:
- Artur … repara … o nosso sangue é igual … [Molindo, antes de morrer]. (p. 384).

A literatura colonial, na sua vertente cosmopolita, apresenta-se inequivocadamente com uma sofisticação retórica até aí inimaginável. É com Guilherme de Melo e Eduardo Paixão que nos apercebemos de um ideário utópico de uma nação livre, onde brancos e pretos viveriam harmoniosamente, tal como parece prefigurá-lo a cena acima descrita. Aqui manifesta-se um dos aspectos mais singulares deste cosmopolitismo que, ao pretender transgredir fronteiras e diferenças e estabelecer uma espécie de harmonia universal, acaba por desembocar na utopia.

Na obra Tchova, Tchova, por exemplo, este desiderato é levado ao extremo de colocar dois jovens brancos e um negro – este, inda menino, tinha sido moleque (empregado doméstico) dos dois primeiros – fugindo para uma zona libertada. Aliás, no percurso da literatura colonial, este é um espaço novo, apesar de tudo não totalmente surpreendente no universo expectacional do leitor habitual desta literatura.

Se é verdade que no romance de Eduardo Paixão, na sua quase totalidade, se reconhece, com relativa antecipação, um discurso denunciando o esgotamento da sociedade colonial e apontando para a ideia de uma nação multirracial e harmoniosa – mas nem por isso deixa de ser literatura colonial, pois, todo o universo continua a ser dominado por uma visão lusocêntrica –, ao inovador campo referencial de Tchova, Tchova não será indiferente o movimento revolucionário despoletado pelo 25 de Abril, em Portugal, influenciado, por sua vez, pelas guerras independentistas em África. E a aldeia comunal surge-nos como uma espécie de utopia realizada, um microcosmo de uma nação que despontava.

Importa aqui observar que estas obras que nos surgem no limiar da revolução, ou imediatamente depois dela, pela metamorfose temática e por um certo alargamento do campo referencial (como são os casos de Tchova, Tchova e Omar Ali, este de Rodrigues Júnior), aprofundam o grau de problematicidade da literatura colonial em Moçambique. Por conseguinte, ou se trata de simples oportunismo, e a questão esgota-se imediatamente, ou, então, estamos perante uma escrita que evoluiu num sentido que a coloca numa situação de ambiguidade em termos de integração num determinado sistema literário, enquanto expressão de uma específica orientação cultural.

Se tivermos em conta que já na década de 60, com Agostinho Caramelo, por exemplo, esta mesma literatura se abria, com alguma profundidade, para uma plurivocidade inequívoca (Fogo II e III), em que a representação do imaginário e das vozes dos dominados adquire uma dimensão assinalável, não é despicienda a hipótese de considerarmos que a literatura colonial caminhava par à usa autodissolução, enquanto apologia da visão do mundo do colonizador, ou, pelo menos, perfilava-se no sentido de estabelecer uma ponte com uma literatura nacionalista, vincadamente moçambicana, que se ia, entretanto, constituindo.

Interessa, aqui, sublinhar que esta literatura nacionalista estabelece em relação à literatura colonial dois movimentos: um, de continuidade, assegurado pelo facto de Moçambique e os negros aparecerem como motivo e temas literários. O outro, de ruptura, em que contrariamente aos textos coloniais, tanto as representações dos negros como de Moçambique deixam de ser pretexto para a reafirmação da portugalidade, para, pelo contrário, se guindarem como esteio reivindicativo e afirmativo de uma identidade assumidamente moçambicana.

Regressando a Tchova, Tchova, verifica-se aí que se abre um genuíno espaço fabulatório de tal modo que o que era inimaginável ou inverosímil num passado imediato institui, a partir de determinada altura, a sua própria condição de aceitabilidade, de verdade literária. Afinal, é por isos que, na óptica de Foucault (1966: 9), as utopias permitem as fábulas e os discursos; elas situam-se na própria linha da linguagem, na dimensão fundamental da fábula.

E a utopia, aqui, não reside na antecipação optimista de uma realidade – aldeia colonial –, pois ela já existia, de facto, mas na crença de que com essa incursão a literatura realizava a autrotransfiguração, isto é, superava-se. Enquanto filha da linguagem a literatura faz-se, pois, utopia de si própria.

Enfim, se é verdade que a visão do mundo do europeu enquanto valor dominante atravessa toda a literatura colonial, o que parece irrecusável é o facto de essa mesma literatura seguir uma progressão a que não são alheios tanto uma maior consistência do fazer literário como, por outro lado, uma maior consciência do devir histórico que, inevitavelmente, perturbava o sentido hegemónico da voz do Ocidente.



4. Epos e totalidade: o apelo do romance

Apesar de falarmos da literatura colonial em termos gerais, o romance é que é verdadeiramente o objecto da nossa reflexão. Os exemplos a que temos recorrido são elucidativos. Pensamos que esta opção é plenamente justificada se atendermos a que este é o género, de entre os vários que se produziram e circularam adentro da lógica e do contexto coloniais – a poesia lírica, o conto, o drama –, o que mais se destaca e o que é mais representativo das tendências globais e particulares do imaginário colonial.

Curiosamente, verifica-se que a literatura colonial, dado o predomínio do texto romanesco, tanto rompe com a tradição da literatura portuguesa (metropolitana) como se distingue da literatura moçambicana onde, quer num caso como no outro – exceptuando as décadas de 70, 80 e 90 para o caso português e a última década para o caso moçambicano –, nos confrontamos com a hegemónica presença da lírica.

Na tentativa de explicar o défice do discurso romanesco na literatura portuguesa, alguém como José Bacelar (1939: 117) aponta, entre outras razões, a falta de espírito crítico, imaginação psicológica, vontade de realizar e, sobretudo, falta de «humanidade de coração», como principais causas para que os portugueses não cultivem o romance de «interesse universal».
Por sua vez, Adolfo Casais Monteiro (1940: 59)[9], mais incisivo, constata que «é inegável [que] não a temos [grande produção romanesca em qualidade], nem sequer em quantidade!». Entende, por isso, que a «deficiência do português como criador de romances» (p. 64) deve-se à «incapacidade de transpor para o romance a vivacidade da usa própria experiência» (p. 65) e de «analisar os que o rodeiam» (p. 71). Daí o interrogar-se, com um conformismo amargo: «o facto de termos poucos romancistas não significará que o romance tem de ser uma excepção na nossa literatura?» (p. 68).

José Osório de Oliveira (1931: 88), por seu lado, já reconhecera, tendo em conta a experiência francesa e inglesa, que a literatura colonial de língua portuguesa só vingaria se cultivasse o género romanesco. Isto, porque os romances coloniais,

pelo entrecho, pelos personagens, e pelo conflito sentimental que lhes serve de pretexto, exercem sôbre o público uma influência superior, não só à dos relatórios mais bem escritos, mas à dos livros de impressões, de memórias, ou mesmo de contos.

Regressando à questão da representação, eixo teórico e metodológico do nosso trabalho, temos consciência de que tal opção nos obriga a derivar invariavelmente para o realismo. Realismo não necessariamente como manifestação estética localizada no tempo, mas sim como uma disposição que, neste caso, intenta levar o leitor a aceitar como real o mundo narrado. Em todo o caso, há, pelo menos, na produção romanesca colonial, uma aposta nítida na criação de um efeito de real, como temos vindo, aliás, a referir.

Realismo é um daqueles vocábulos propensos, de certo modo, a adquirir contornos inflacionistas quer devido à sua polissemia, quer à sua, muitas vezes, desregrada utilização. E dessa polissemia dá-nos conta Roman Jakobson (1921: 99-101) no artigo «Du réalisme artistique» em que, além de considerar que se trata de um termo carregado de ambiguidade, adianta as seguintes definições: primeiro, uma tendência, uma aspiração; isto é, chama-se realista a obra que o autor em causa propõe como verosímil; segundo, a obra que é percebida como verosímil; terceiro, as obras do Realismo do século passado; quarto, na procura de uma palavra certa, uma palavra pouco usual, forçada, às vezes, pode ajudar a visualizar o objecto. Neste último caso, trata-se de «realismo revolucionário».

Outras definições de outros autores que irão surgindo ao longo deste trabalho, permitir-nos-ão confrontar os aspectos divergentes e aproximativos com os que são aqui apresentados. Contudo, adiantamos, desde já, o ponto de vista de Todorov (1982: 9) para quem o realismo tem como função dissimular qualquer regra e dar-nos a impressão de que o discurso é, em si mesmo, transparente (quase seria possível dizer-se inexistente) e de que estamos perante o vivido – um fragmento de vida.

Poder-se-á contrapor que o ideal realista está subjacente a toda a criação literária, a toda a criação artística. Acontece que, em relação ao romance colonial, mais do que uma pretensão, trata-se da condição da sua própria existência, da sua própria especificidade, de tal modo que o realismo tal como concede Ian Watt (1957: 16), «não reside no género de vida que representa, mas sim na forma como o faz.». Isto é, são as estratégias textuais e intratextuais[10] aplicadas na concepção do romance colonial que irão determinar aquilo que ele é.

Sob o fascínio do real, ou melhor, da ilusão de realismo, o romance é de facto o género mais representativo da literatura colonial, por:

- melhor corresponder aos desígnios de uma literatura que procura garantir uma ligação metonímica com o mundo que julga representar;
- devido à sua extensão, e pela pluralidade de vozes que convoca, fazer uma maior abrangência do mundo colonial enquanto um todo;
- estar em íntima adequação com a dimensão épica dos fenómenos, das figuras e do ideário que se pretende exaltar;
- pela sua plurivocidade, melhor traduzir as tendências evolutivas do mundo moderno;
- ser o género menos convencional e que, de modo mais eficaz, assegura a articulação entre os pressupostos da obra e as expectativas do leitor;
- afirmar o «realismo moderno» que, segundo Auerbach (1946: 435), se caracteriza por apresentar, por um lado, «seriamente» acontecimentos quotidianos e reais de uma camada social baixa e, por outro, os acontecimentos quotidianos estarem submersos exacta e profundamente numa época histórico-contemporânea determinada;
- aparecer como um género triunfante e que conheceu uma vitalidade assinalável e crescente desde os meados do século XIX, universalizando nomes como Flaubert, Balzac, Émile Zola, Charles Dickens, Dostoiewski, Henry James, Hemingway, John Steinback,, Scott Fitzgerald, etc., figuras que, individual ou colectivamente, constituem referência intorneável para os escritores que vêm a seguir;
- adequar-se à modernidade do homem e do mundo. Segundo Milan Kundera (1986: 15): Le roman accompagne l’homme constamment et fidèlement dès les début des Temps modernes» ;
- ser uma forma de conhecimento sui generis. Já nos referimos ao facto de o romance colonial, em particular, representar o desvelamento de um mundo novo, diferente, para muitos europeus uma verdadeira incógnita. Daí que tenha acuidade a afirmação atinente ao romance em geral de que découvrir ce que seul un roman peut découvrir, c’est la seule raison d’être d’un roman. Isto é, Le roman qui ne découvre pas une portion jusqu’alors inconnue de l’existence est immoral. La connaissance est la seule morale du roman (Kundera, 1986 : 16).

Por conseguinte, o romance aparece-nos assim como o género por excelência da literatura colonial, quer pelas razões que acabamos de enunciar, e em que destacamos o pendor realista – mesmo que muitas vezes esse realismo nos surja sob a influência de um notório deslumbramento, ou, pelo contrário, de um entranhado e indisfarçado pessimismo –, quer pelas temáticas que, como veremos adiante, desenvolve, quer, ainda, pela vontade de abrangência temporal e espacial que move os autores coloniais. Enfim, para todos os efeitos, porque é efectivamente o género que mais marcou o espectro da literatura colonial produzida em Moçambique.



5. A arquitectura do romance colonial

Na referência que antes fizemos ao romance ideologicamente mais marcado – que é mais ou menos reconhecido na totalidade do romance colonial enquanto veículo de uma visão de mundo herarquizadora –, defendemos que esse é um tipo de escrita que acaba por pôr em causa o carácter transgressivo do género romanesco e que, segundo Kristeva (1970: 190), se institui como seu valor essencial.

Deste modo, até que ponto o romance colonial, onde explícita ou implicitamente se reconhece a cristalização de uma Weltanschauung[AR1] já de si hegemónica, pode, mesmo assim, subsistir uma dimensão transgressiva? Entre outros aspectos, consideramos que é pelo facto de o espaço africano tornar-se um espaço narrativo dominante que esse carácter transgressivo, em certa medida, se manifesta. Transgressão, portanto, em relação ao cânone literário prevalecente nas metrópoles europeias.

Isto é, desencadeia-se a partir daí um outro tipo de interacções entre os seres, os espaços e o tempo, uma outra configuração de relações entre personagens antropológica e filosoficamente distintas, introduzindo outros valores e outras visões do mundo em quase permanente e profunda negatividade relacional, num conjunto que vem estabelecer a novidade, ou restabelecê-la, se tivermos em linha de conta que o exotismo, por exemplo, atravessa iterativamente alguns períodos marcantes da literatura ocidental.

Por conseguinte, mesmo tendo em conta esta novidade transgressiva ou subversiva do romance colonial – pela introdução de outros motivos estético-literários (espaciais, temporais, humanos e discursivos) –, este não deixa, no entanto, de se manter fiel ao género a que pertence. Isto é, são narradas acções que decorrem num determinado espaço, obedecendo a determinada sequência temporal, levadas a cabo por uma ou várias personagens, orientadas para uma determinada finalidade, enquadrados por diferentes pontos de vista e percorrendo um determinado enredo, entremeado, por sua vez, por inevitáveis segmentos descritivos.

Encontramos, por outro lado, nesta fidelidade ao género, uma nota pletórica que se tornará uma imagem de marca na literatura colonial e que se verifica na utilização recorrente do termo Romance, indicação paratextual que nos surge estampado na capa de inúmeras obras. Trata-se aqui do fenómeno de arquitextualidade referido por Genette em Palimpsestes (1982). Portanto, o que aí acontece é uma remissão ao género, que tanto nos alerta para a construção do texto, como pré-condiciona o leitor e as suas expectativas de leitura. Este tópico merecerá maior desenvolvimento no capítulo VI.

Por sua vez, pensando neste mesmo universo de recepção, Wolfgang Kayser (1958: 8) considera que o leitor é uma criatura fictícia, um papel no qual nós mesmos nos podemos rever. Ainda segundo este autor, o início desta transformação permanece habitualmente inconsciente; ela começa quando lemos no subtítulo de um livro a palavra «romance».

Com este recurso que faz com que o leitor assuma o tal papel fictício, auto-reflexivo, assegura-se a identificação e a comunicação entre a obra e a entidade receptora no sentido de esta ler o texto que lh cai nas mãos de uma forma determinada.

Afinal, segundo Charles Grivel citado por Carlos Reis (1998: 218), escrever «um texto narrativo [falamos concretamente do romance] é, pois, solicitar a atenção de um leitor cujas coordenadas histórico-culturais e ideológico-sociais o autor conhece em maior ou menor pormenor». Além do mais, é através desse conhecimento que o autor assume estratégias literárias que, obedecendo com regularidade à curiosidade do leitor de textos narrativos, geram, de forma calculada, as expectativas deste em relação ao que vai sendo relatado. No caso do romance colonial, em particular, esse leitor, leitor implícito, faz parte de uma audiência convicta, ainda, de que eles (os homens) pertenciam a um poder imperial invencível e a um raça superior.

Sem esquecermos que o romance é um género proteico susceptível de ganhar aspectos muito variados, há na sua organização interna, em geral, e do romance colonial, em especial, certas variáveis que nos permitem desenvolver uma reflexão teoricamente sustentada no sentido de determinar a tipologia deste mesmo romance.

É, pois, com base em categorias como o espaço, o tempo, as acções, a descrição, as personagens, a instância narrativa, o ponto de vista que iremos escalpelizar a arquitectura do romance colonial. A ideia de arquitectura legitima aqui, não uma abordagem apenas formalista ou estruturalista, mas a aceitação do romance colonial como uma totalidade onde o composicional e o temático são absolutamente indissociáveis.

Por outro lado, sendo a arquitectura a arte do espaço por excelência, acabamos por associar intencionalmente toda a gramática e enciclopédia inerentes a essa arte com o romance colonial, enquanto romance do espaço. Mais adiante, no capítulo III, iremos fundamentar esta ideia.

Imperativos de ordem metodológica e operativa fazem-nos recorrer às referidas categorias, neste caso, para orientarmos o nosso estudo de forma mais coerente, consistente e objectiva. Entretanto, em nenhum momento deixaremos de ter em conta a dicotomia narratológica fundamental entre fabula e intriga cujas particularidades estarão sempre implicitamente presentes. Implícita ou explicitamente. Porém, iremos sobrelevar as correlações dessa complexa e indissolúvel dualidade de que depende a integridade orgânica e a legitimidade do próprio romance.


[1] Este e outros excertos foram retirados de uma comunicação apresentada por Abranches, com o título «Sobre Literatura Colonial» ao 1º Congresso da Sociedade de Estudos da Colónia de Moçambique realizado entre 8 e 13 de Setembro de 1947 e que provocaria uma acesa polémica. Seria, aliás, no decurso desse congresso que Eduardo Correia de Matos receberia o 1º prémio de «Literatura Colonial» pelo seu romance Terra Conquistada (1946), obra que seleccionamos para fazer parte do nosso corpus.
[2] Não resistimos a encontrar na utilização deste vocábulo ressonâncias quer de motivação religiosa, quer decorrentes do movimento iluminista, quer ainda da ideia triunfalista do Progresso alimentada pela Revolução Industrial.
[3] Segundo uma informação prestada informalmente por Fátima Mendonça, Rodrigues Júnior, que se «transferiria» para o regime, era oriundo da Seara Nova, revista de «doutrina e crítica» com fins declaradamente pedagógicos e políticos e exprimindo um militantismo social de esquerda. Por outro lado, ao sublinhar que «a Seara Nova foi uma importante publicação doutrinária, tanto no plano ideológico como no plano literário, preparando neste último domínio o terreno para o advento das revistas e das obras que deram voz ao movimento neo-realista português», Clara Rocha (1985: 377) ajuda-nos a enquadrar melhor certas aproximações no plano estético entre este movimento e o realismo colonial de que damos conta adiante.
[4] Dada a época em que foi publicada esta obra observam-se alguns anacronismos ortográficos que naturalmente tivemos que respeitar.
[5] A autora define ideologema como a função intertextual que podemos ler «materializada» nos vários níveis da estrutura de cada texto, e que se estende ao longo de todo o seu trajecto, dando-lhe as suas coordenadas históricas e sociais. Isto é, ideologema de um texto est le foyer dans lequel la rationalité connaissante saisit la transformation DES ÉNONCÉS (auxquels le texte est irréductible) en un TOUT (le texte), de même que les insertions de cette totalité dans le texte historique et social. (p. 12).
[6] Um dos grandes representantes do realismo colonial é Castro Soromenho, cujos universos narrativos têm como cenário Angola, em particular, os meios rurais. Armado de um agudo sentido de real, descreve-nos, de forma impenitente, as arbitrariedades da administração colonial, a rudeza da vida no interior, a condição de vida dos negros. Estes surgem-nos quase sempre sob um olhar relativamente imparcial. Onde o bisturi do narrador se torna implacável é na representação dos mulatos, como pode ser comprovado, por exemplo, em Viragem (1957) e A Chaga (1970).
[7] Este é um facto histórico que se deu a 16 de Junho de 1960 e que se traduziu na chacina de centenas de pessoas indefesas, ordenada pela administração colonial naquela localidade no Norte do país.
[8] São inegáveis no texto ressonâncias das teorias lusotropicalistas de Gilberto Freyre. Além da publicação, em 1933, da 1ª edição de Casa Grande e Senzala, obra maior dessa mesma teoria e que seria aproveitada pelo salazarismo na afirmação do «humanismo» português, Gilberto Freyre visitou Moçambique em Janeiro de 1952 a convite do regime.
[9] Sobre a problemática do romance português, isto é, da sua (in)viabilidade, pode também consultar-se Camilo Castelo Branco (1908: 33), João Gaspar Simões (1938: 13-14), Miguel Torga (1946: 190), Joaquim Paço d’Arcos (1962: 59-67) e Alexandre Pinheiro Torres (1970: 21-29).
[10] Desenvolveremos este tema no capítulo VI.

[AR1]Visão do mundo