quarta-feira, 14 de novembro de 2007


Enquanto eu dormia,

o pai do Pedro pensou:

«É tudo muito injusto!

Ele sempre com ela,

ela sempre com ele.

Injusto comigo, que não privo dele,

Injusto com ela, que o carrega sozinha.»

Resolveu:

«Vou levar um pouquinho comigo...»

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

O curandeiro branco - José Cardoso

Este é o conto que dá nome ao primeiro livro de José Cardoso, antigo morador da Beira e grande cineasta. Interessantíssima história, porque narra um fato que ainda hoje em dia seria inusitado: a existência de um curandeiro branco.
Os curandeiros são tipicamente moçambicanos, existem aos milhares, alguns mais famosos fazem publicidade de seus poderes curativos em jornais e outros mais modestos aguardam em suas casas a chegada dos pacientes. Os nativos têm mais confiança nos curandeiros do que nos médicos, tanto que aqueles são também chamados de médicos tradicionais. Mas são todos de origem africana.



O curandeiro branco


A cidade da Beira tem uma característica peculiar: assente num chão de dunas de areia e matope que fica abaixo do nível do mar nas marés vivas, tem a elevação de terreno mais significativa para os lados da Manga, bairro que regista uma cota de cerca de seis metros de altitude e que se afasta do centro da cidade pelo mesmo número traduzido em quilómetros.

Na época não muito distante, em que Moçambique era considerada uma província ultramarina da metrópole colonial, dizia-se, gracejando com a fantasia globalizante dos governantes do Império e com a sua divisão regional, que Portugal, entre as províncias que o compunham, tinha quatro Beiras: a Alta, a Baixa, a Litoral e a Chata, esta em referência à cidade da Beira.
A particularidade da cidade assentar numa superfície rasa, ou chata, permite-lhe, possivelmente, concentrar e expandir as vibrações magnéticas dos sons característicos de uma cidade portuária, onde navios e locomotivas participam dos gritos e da azáfama de capatazes e estivadores.

No silêncio consentido das madrugadas cacimbeiras, as vibrações sonoras que, áspera e prematuramente, nos despertam para um quotidiano ainda distante eram mais agressivas e incómodas, e, quando isso acontecia, modorrava eu sobre o leito morno, memorizando os contornos da vida de todos os dias.
E foi numa dessas manhãs que o estridular do silvo de uma locomotiva me despertou para a possibilidade de o seu timoneiro ser o António Santos, maquinista dos Caminhos de Ferro, e de estar ele, portanto, rumando para Machipanda no transporte de gentes e mercadorias para as diversas estações e apeadeiros do trajecto e para a vizinha Rodésia.
Conhecera-o através de um camarada e amigo comum, o João Correia, e embora nos relacionássemos muito pouco, devido quer à distancia que separava os nossos bairros (o dele era a Manga e o meu Matacuane), quer às características da sua profissão, sempre pautámos a nossa relação por um mútuo respeito e uma franca amizade.
Nunca lhe perguntei, porque isso não seria correcto nem recomendável entre camaradas, se nas suas frequentes viagens entre a Beira e Machipanda, além dos passageiros e das mercadorias, não distribuía também o «Avante» ou outros materiais de âmbito ideológico, que ao tempo circulavam por canais seguros e ocultos às insinuantes e perigosas infiltrações das «bufarias» regionais.
Era por todos assumido como receita salutar, que quanto menos soubéssemos menos tínhamos para contar se um dia, perante um qualquer torniquete medieval, ou uma contemporânea injecção do «soro da verdade», fôssemos forçados a fazê-lo.

Mas uma coisa eu sabia quanto às suas actividades extraprofissionais: aproveitando as suas viagens, contactava regularmente com um velho nativo para os lados de Machipanda ou Macequece, de quem se tornou amigo e do qual bebia a sabedoria dos anos na prática da cura dos males do corpo e da alma. Sempre insatisfeito e naturalmente curioso, abria-se para o conhecimento e procurava do velho as propriedades curativas de cada planta, as suas origens e formas de identificação, familiarizando-se com um mundo vegetal que o apaixonava e seduzia.
No agnosticismo da sua forma de encarar a vida, acreditava mais nas propriedades curativas das plantas para os males do corpo e menos nos seus místicos poderes para atenuar as perturbações da alma. Fosse como fosse, o certo é que, entregue à filantropia das suas abnegadas acções, iniciou um percurso de sucessos e de angústias oferecendo remédios a quem sofria e esperança a quem, desiludido, se entregava a pensamentos fatalistas.
Passaram-se alguns anos até que, numa visita que fiz ao António Santos, tive conhecimento da morte do velho de Macequece e do legado de conhecimentos e de práticas que aquele lhe tinha deixado, coo testemunho de uma amizade, muito rara na época, entre um preto e um branco, entre o colonizado e o colono.
E surpreendeu-me, na altura, o invulgar número de pessoas espalhadas pela sala e pela varanda da sua residência. Tinha vindo certamente numa altura imprópria, imiscuindo-me numa qualquer festa para a qual não tinha sido convidado, mas a curiosidade levou-me até à dona da casa e, através dela, vim a saber das razões de tão grande movimento.
- São clientes do António; pessoas desiludidas com a ciência dos médicos e os remédios das farmácias, porque nem uns nem outros lhes proporcionam cura e alívio para os males de que padecem.

Trabalhava eu então como técnico na Farmácia Graça, bem no centro da cidade, e já aí me haviam chegado aos ouvidos tanto os rumores sobre as actividades medicinais do António coo uma certa apreensão e relutância da classe médica em aceitar como verdadeiras as curas e os sucessos cochichados nos bastidores das salas de espera dos respectivos consultórios; mas estava longe de supor que a sua fama tivesse atingido tamanha dimensão, ao ponto de vir encontrar em sua casa um número de doentes superior ao de qualquer consultório médico da praça.
O mais surpreendente para mim, porém, foi quando mais tarde vim a saber, pela leitura de cartas de reconhecimento de doentes que o António tratara e que se consideravam curdos, que até já vinham da Europa e das Américas ao seu «consultório», depois de desiludidos com a medicina encartada nos seus países.
O António não cobrava um tostão a quem quer que fosse, e abespinhava-se quando alguém pretendia ser mais teimoso do que ele e lhe exibia – apenas para pagamento de despesas, como se esforçavam por convencê-lo – algumas notas de moeda forte, como o dólar estadunidense e a libra inglesa.
Em suma, o António Santos era um homem generoso e sensível; sofria com o sofrimento dos seus pacientes e com eles festejava os sucessos anunciados, inquietando-se perante situações mais renitentes, tanto mais que grande parte dos que o procuravam padecia dos males que a ciência médica considerava incuráveis, como o câncer. O sucesso de uma cura era a moeda que achava justa para pagamento do seu trabalho e da sua dedicação.
Recordo-me de uma carta remetida por uma paciente americana, creio que residente numa qualquer cidade da Califórnia, na qual, a pedido do seu médico, que a considerava espantosamente curada, solicitava ao António informações sobre o tratamento administrado e sobre as características das plantas e raízes medicinais por ele utilizadas.

Não sei se o meu amigo teria ou não curado alguém, porque isto de tratamentos e curas é coisa complexa (basta que se saiba o muito que isso tem a ver com a psique de cada um) e, consequentemente, matéria para muitos tratados, mas repudio a ideia de que ele fosse um charlatão, coisa de que muitos tentaram rotulá-lo, porque sei que ele acreditava profundamente no que fazia, e fazia-o convicto de que contribuía para que o seu semelhante não perdesse a esperança de uma cura possível, ajudando-o a ultrapassar os momentos mais difíceis da sua vida. E isso constituía uma boa fatia da sua própria felicidade.

Em 1976 a minha paixão pela imagem levou-me a abraçar outra profissão, ingressando nos quadros técnicos do Instituto Nacional de Cinema. Rumei a Maputo, deixando de ter contactos com a Beira e com os poucos amigos que, por não terem alinhado no êxodo dos «retornados» do pós-independência, ali restaram.
E foi já em Maputo que, alguns anos mais tarde, tive conhecimento da morte do António Santos.
Ele tratou e curou presumivelmente tanta gente sofrendo de câncer que não lhe sobrou tempo nem ciência, para se curar a si próprio do mesmo mal, pois, segundo me disseram, foi que o matou!...

Animais Solidários - Blog do Sant'Ana


Reproduzo aqui, sem autorização, mas espero que com compreensão, um posto do Blog do Paulo Sant'Ana, comentarista da RBS, grande pensador e fantástico gremista!


Foto: Arivaldo Chaves

De uma vez por todas, é preciso que a população de Porto Alegre saiba qual é o órgão destinado ao salvamento dos animais. Segunda-feira passada, uma leitora me telefonou desesperada porque um pássaro estava preso numa fenda de um caule de árvore já fazia 48 horas e o Corpo de Bombeiros se recusava a ir libertar o animalzinho. Isso aconteceu numa árvore da Rua Tomás Flores.

Do Corpo de Bombeiros, informaram que era caso para o órgão de proteção ambiental. No órgão de proteção ambiental, informaram que era caso para o Corpo de Bombeiros, que, no entanto, encurralado, disse que só poderia tomar providências no dia seguinte, não atendiam esses casos à noite. Este é um país em que quem tem câncer no intestino entra em fila de cirurgia que demora três anos e em que Corpo de Bombeiros não trabalha à noite.

É melhor ir embora daqui.

Ontem Zero Hora mostrou a sorte de outro pássaro preso num poste da esquina das avenidas Panamericana e Quito, no Jardim Lindóia.

Um filhote de chupim, pássaro que costuma morar nos ninhos dos outros, ficou com a perna presa num fio de náilon, no alto de um poste elétrico, entre duas casas de joões-de-barro.

Foi um deus-nos-acuda para chamar um órgão que salvasse o passarinho, que estava de cabeça para baixo. Chama a CEEE e lá dizem que é com os Bombeiros. Chama os Bombeiros, não atende porque é em cima de um poste e, se é em cima de um poste, tem de ser a CEEE.

Até que o clamor dos populares, ansiosos pela salvação do pobre passarinho, fez chegar ao local uma equipe da CEEE.

Mas veio o pelotão de choque da CEEE, aquele que está melhor preparado para enfrentar brigas com moradores que furtam energia elétrica do que fazer consertos na rede.

E o que decidiu o Bope da CEEE? Escolheu entre duas alternativas, dinamitar o poste ou destruir a casa do joão-de-barro, a segunda. E pôs-se o Bope da CEEE, em vez de subir lá no ninho e libertar o pássaro, a destruir a casa do joão-de-barro, com uma barra longa acionada lá de baixo.

Rasparam, rasparam na casinha de barro até que a demoliram. E junto com a casinha despencou lá de cima o passarinho que estava com a perna presa. Espatifou-se no chão o chupim e morreu.

Que salvamento desastrado esse do pelotão de choque da CEEE. Por preguiça, não puseram uma escada e não foram lá em cima libertar o animalzinho.

Que idéia estúpida a de escarafunchar na casa do joão-de-barro até derrubá-la, e com ela o pássaro que estava preso e morreu estatelado no chão. Que tropelia, que operação desastrada! Que trágica trapalhada.

Terminou o casal de joões-de-barro ficando sem casa, vão ter de chamar o Demhab.

E terminou principalmente o pobrezinho do chupim morto.

Restou uma lição de solidariedade animal jamais vista em nossa cidade. Tanto no episódio da Rua Tomás Flores quanto no do Jardim Lindóia, os dois pássaros presos pelas pernas e pendurados de cabeça para baixo foram socorridos, no primeiro caso por dois dias, no segundo por várias horas, por pássaros de outras espécies, que lhes alcançavam alimentos em seus bicos.

Outras aves socorristas alimentando, bico a bico, as duas avezinhas em apuros. Que solenidade de ternura. Que humanidade entre os animais!

E ainda vêm me dizer incautos cientistas que os animais não têm inteligência.

Para ler mais do Paulo Sant'Ana: http://www.clicrbs.com.br/blog/jsp/default.jsp?uf=1&local=1&source=DYNAMIC,blog.BlogDataServer,getBlog&pg=1&template=3948.dwt&tp=&section=Blogs&blog=220&tipo=1&coldir=1&topo=3951.dwt

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

... e entom começarom a escrever livros...


[...] e depois que o home assi foi criado razoavil e sabedor e deshi vierom os homees de geeraçom em geeraçom e começarom a provar as cousas e os conhecimentos d'ellas e virom que aqueles que alguas cousas sabem, tanto que morriam elles, os outros que depois delles vinham perdiam os saberes, por se perceberem de se os saberes nom perderem, catarom as figuras das letras e nomearom-nas e fezerom em como se per ellas nom perdessem os saberes: e entom começarom a escrever livros [...]


D. João I - Livro da Montaria (séc. XV)

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Do que um cão precisa

“... Um cão não precisa de carros modernos, palacetes ou roupas de grife. Símbolos de status não significam nada para ele. Um pedaço de madeira encontrado na praia serve. Um cão não julga os outros por sua cor, credo ou classe, mas por quem são por dentro. Um cão não se importa se você é rico ou pobre, educado ou analfabeto, inteligente ou burro. Se você lhe der seu coração, ele lhe dará o dele. É realmente muito simples, mas, mesmo assim, nós humanos, tão mais sábios e sofisticados, sempre tivemos problemas para descobrir o que realmente importa ou não.”


John Grogan

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

A forma justa



Existirá ainda beleza no mundo?


Será que diante de tanto sofrimento ainda podemos ter esperança?


Descobri que sim...


Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos - se ninguém atraiçoasse - proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
- Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Amor não se esquece!

Este vídeo mostra o reencontro de dois leões com seus pais adotivos.

Encontrados abandonados, foram criados por humanos e soltos na natureza para se readaptarem à vida selvagem. Um ano depois, os pais adotivos voltaram ao local onde deixaram os leões e foram prontamente reconhecidos.

É mesmo assim... amor, carinho, dedicação nunca são esquecidos, nem por animais selvagens!

E tem gente que ainda acha que o perigo são os cães ferozes e não os donos...

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Alberto e Cláudia - um sonho de amor

Ontem recebi uma notícia de morte. Veio numa linha só, uma frase curta: «Gente, Alberto morreu ontem, 8 horas da noite». Naquele instante, reagi - «Meu Deus!». Meu marido gritou, perguntou «o que houve?» e eu, já engasgada pelo choro, respondi: «Morreu um amigo meu».

Morreu um amigo meu! Chamei Alberto da Cunha Melo de amigo, apesar de nunca o ter visto nem falado com ele. Dele, só conhecia os versos fantásticos e as palavras amorosas de Cláudia.

Cláudia… minha amiga também. Amiga que nunca vi. Fiquei pensando nela o dia inteiro, dormi pensando nela. Uma vez, falamo-nos ao telefone. O assunto era outro, mas Alberto esteve presente na conversa. Foi aí que senti o quanto aquele amor era grande! Quando Cláudia falava de Alberto, seu tom de voz mudava, ficava doce, melodioso. Era um misto de amor, dedicação, admiração, devoção! Senti uma inveja boa daquele amor. Não imaginava que existisse sentimento assim fora dos livros e dos poemas.

Hoje vejo uma declaração de Cláudia dizendo que foi pelo poeta, por seus versos que se apaixonou primeiro. E lembrei dos meus sonhos de menina, quando lia poemas de amor e me imaginava a destinatária daqueles versos. Um amor que não se vê. É assim que sinto o amor de Cláudia e Alberto.

Eleita por ele a décima musa, Cláudia foi tema de inúmeros poemas e destinatária de uns tantos livros. Que homem de carne e osso ama assim? Só conheço Alberto.
Consigo imaginar, nunca mensurar a perda de Cláudia.

Mas estava dizendo que dormi pensando neles, em Alberto e Cláudia. E sonhei um sonho que só agora começa a fazer sentido.

Estava em uma plantação de mortos. Parecia uma horta, onde eu via os vários montes de terra, colocados todos um ao lado do outro e em fila. O cenário era sombrio, era dia mas a claridade era pouquíssima, como se estivesse nublado. O tempo úmido e pesado, sem vento, nem uma brisa. Um menino estava ocupadíssimo arrumando os montes de terra, limpando os caminhos que davam passagem entre eles. Nisto, outro menino chega. É incumbido pelo primeiro de me levar dali, para que eu aprenda – ainda agora não sei o que deveria aprender, mas sabia que precisava ir. O segundo menino pegou-me pela mão e saímos da plantação-cemitério. Fomos dar a uma rua de barro, com poças d’água, suja, com as margens também sombrias onde crescia um mato desordenado, algumas casas de madeira sem cor, tudo cinzento. Caminhamos até o final desta rua e dobramos a esquina. Saímos em uma rua paralela àquela em que estava.

Esta rua já era diferente. Ali via-se a claridade do sol, uma brisa gostosa batia no rosto. A rua era calçada com paralelepípedos perfeitos, colocados todos um ao lado do outro. Suas margens eram floridas, com belas casas. No final da rua, uma subida.

Foi então que meu guia, ainda segurando-me pela mão, disse que tínhamos que correr. Na hora fiquei assustada… como conseguiria correr? Já não tenho fôlego para isso! E o esforço? Não prejudicaria a minha gravidez? Mas não falei nada, como já disse, sabia que deveria seguir o menino.

Após alguns metros de corrida, uma subida incrivelmente íngreme. No início, ainda consegui me manter em pé, até que já não pude. A gravidade puxava-me para baixo. Terminei a subida arrastando-me, como se estivesse escalando a rua, levando um braço após o outro.

De repente, no topo da rua/morro, um templo. Não sei o que havia lá, tenho a impressão de ser um Buda ou coisa parecida. Só sei que era divino. Uma imagem iluminada (em todos os sentidos), que refletia a luz do sol por todos os lados. Era lindo, e eu senti uma sensação de completude, de paz infinita.

Acordei assim e não consegui esquecer este sonho.

Agora, penso que pode ter algum significado. Um significado que Cláudia, sábia como é, talvez entenda. Saí de um campo de mortos, sombrio, feio, guiada por um menino, para um local iluminado! Talvez o mesmo tenha acontecido com Alberto… ou talvez seja só uma associação que eu esteja fazendo neste momento, talvez queira dizer alguma coisa muito diferente, mas………

Com certeza Cláudia entenderá! Até porque um amor daquele tamanho não cabe nos limites da existência física!!!

sábado, 6 de outubro de 2007

Houssein



Este é o Houssein, um pitt bull que vive num corredor cheio de sucatas de construção ao lado do prédio da minha mãe, em Blumenau.



Da janela da cozinha, chamava-o e ele abanava o rabo, feliz de me ver e ouvir uma voz carinhosa. Eu, sei que erradamente, atirava-lhe alguma comida, um pedaço de pão, um resto de bife. E a cada dia meu coração ficava mais apertado por ele.



Reparava que nem sempre o balde de água estava cheio, que seu lugar não era limpo e que passava o dia inteiro trancado ali, naquele corredorzinho, muitas vezes preso pela corrente, com o espaço mais limitado ainda.



Não conseguia sentir medo daquele cão. Seus olhos demonstravam carinho e carência. Ele precisava de carinho, de amor. E eu não podia fazer mais nada do que lhe enviar algumas palavras mansas e um pouco de comida.

Um dia, ouvi a voz do seu dono conversando com ele. Corri à janela e perguntei se podia descer para vê-lo de perto. O dono concordou na hora, simpaticamente dizendo que o Houssein era inofensivo e que adorava brincar.

Foi aí que descobri que aquele já era seu terceiro dono, e ele só tinha oito meses. O rapaz era bem intencionado, brincava e fazia festas ao cão e disse que pretendia enviá-lo a um local de treinamento numa cidade perto. Na hora fiquei apreensiva. Que tipo de treinamento, perguntei. É claro que ele respondeu que era treinamento de obediência e não de violência. Do fundo do meu coração espero bem que sim. Fiz algumas festas ao Houssein que, quando me viu, abanou o rabo e saltou para brincar. Acariciei sua cabeça e lhe dei um beijo na testa. Sem medo, sem receio, sem desconfiança.

Conversei um pouco mais com o rapaz, não deixei, é claro, de meter-me na história, tirando não sei de onde que um cão com pouca água e pouca comida torna-se muito agressivo. E no fundo, todos sabemos que isso é verdade...

De tudo isso, ficou uma idéia perturbadora dentro de mim. Acredito que não há cães assassinos, há donos irresponsáveis e mal intencionados. No caso do Houssein, o seu dono até é muito bem intencionado, mas não tem o preparo nem os meios para criar um cão desta raça. E penso, então, que é exatamente isso que acontece: donos despreparados, que não conhecem as particularidades da raça, que resolvem criar um cão por estar na moda. Estes donos acabam criando monstros que, na maioria das vezes, voltam-se contra eles próprios.

Ouvi alguns comentários sobre a extinção da raça dos pitt bulls. Talvez seja melhor para os cães, porque os humanos que os criam não estão preparados para valorizá-los e cuidá-los.

Continuo defendendo e repetindo-me: a culpa não é dos cães, é dos donos. Estes, sim, deveriam ser presos e surrados, enquanto os cães deveriam ser encaminhados para reabilitação. Solução que existe e que funciona mesmo.

Afinal, com compreensão, carinho, dedicação e, principalmente, amor, o que não se consegue??? Um cão é um cão, seu instinto é ser dócil, é ser amigo, é ser companheiro. Se ele ataca, é porque foi ensinado a atacar, um cão nunca é mau.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

4 de Outubro - dia de São Francisco!!!


Oração de São Francisco de Assis




Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz.



Onde houver ódio, que eu leve o amor;



Onde houver ofensa, que eu leve o perdão;



Onde houver discórdia, que eu leve a união;



Onde houver dúvida, que eu leve a fé;



Onde houver erro, que eu leve a verdade;



Onde houver desespero, que eu leve a esperança;



Onde houver tristeza, que eu leve a alegria;



Onde houver trevas, que eu leve a luz.



Ó Mestre, Fazei que eu procure mais Consolar, que ser consolado;



compreender, que ser compreendido;



amar, que ser amado.



Pois é dando que se recebe,



é perdoando que se é perdoado,



e é morrendo que se vive para a vida eterna.

Hermano sol, hermana luna

Quem não se emociona???

Irmão Sol, Irmã Lua, uma grande lição de São Francisco!!!

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

À Bê


Foste a luz e a escuridão
O mistério desvelado,
A verdade calada.

Não viste o amor, até senti-lo.
Não sentiste o ódio, até prová-lo.
Não provaste o medo, mas ele veio.

Gosto amargo de remorso,
Asco de amargura,
Desencanto da procura.

Sonhavas o céu,
Desejavas o infinito,
Querias asas…

Mas saltos altos não são asas,
Talvez bengalas, muletas,
Efémeras alegrias fingidas.

Deste teu último voo,
Estás livre dos saltos,
Desamarrada dos sonhos.

Voa mais alto agora,
Minha estrela de papel,
Já brilhas sem fingir.

Vai, amiga-irmã,
Assumo tua dor, que já foi minha,
E do teu jeito abrandaste.

sábado, 4 de agosto de 2007



Se essa rua, se essa rua fosse minha,
Eu mandava, eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes
Para o meu, para o meu amor passar...


Nesta rua, nesta rua tem um bosque
Que se chama, que se chama solidão
Dentro dele, dentro dele mora um anjo
Que roubou, que roubou meu coração!


Se eu roubei, se eu roubei teu coração
Tu roubaste, tu roubaste o meu também!
Se eu roubei, se eu roubei teu coração
É porque, é porque te quero bem!


Não lembro ao certo a minha idade, mas lembro exatamente do dia em que aprendi estas cantigas. Minha mãe chegou do trabalho e me chamou no seu quarto: «Vem, que tenho umas musiquinhas pra te ensinar».


Eu fui, feliz da vida! Sentada na cama dela, ouvia-a cantar um verso e repetia, enquanto ela trocava de roupa. Nunca mais esqueci nem das cantigas nem daquele momento mágico.


E agora será minha vez de ensinar cantigas. Tomara que eu tenha a mesma meiguice da minha mãe.

quinta-feira, 12 de julho de 2007

Filho Azul


Viver vida sem ter esperança
Viver morte sem morrer
Ver nuns olhos de criança
A vontade de crescer

Mas quem espera sempre alcança
E eu não posso entardecer
Sem ter visto uma criança
Não só de parto nascer

Há-de ser um filho azul
Das altas marés do mar
Filho tempo, vento sul
Temporal do verbo amar.


(Ary dos Santos / Guilherme Inês)

terça-feira, 26 de junho de 2007

E agora???

Preciso de ajuda,
Preciso de conselho…

Como é que eu faço
E o que é que eu faço?

Tanta coisa pra parar,
Tantas outras pra começar…

Cafeína, pastel, batata frita,
Corrida, noitada, nicotina…

Pára tudo!!!

Agora é…

Caminhada, sesta, fruta,
Vitamina, óleo de amêndoa, salada…

É muita responsa…

Será que dou conta???

domingo, 17 de junho de 2007

Sem título, com dor no coração

O domingo amanheceu estranho. Chuva através do sol e uma aura de presságio, de mau presságio.
Como sempre, estava tomando minha xícara de café na sala, fazendo planos para o dia. Os cães estavam deitados junto aos meus pés e aquela má impressão com que eu havia acordado parecia se dissipar à medida que recebia o carinho deles e o café esquentava meu corpo. Não estava frio, mas um vento gelado corria no jardim, sacudindo as árvores e fazendo bater as portas da casa. Foi quando ouvi os gritos.

Era o grito desesperado de um cão. Parecia machucado. Meus cães correram em direção ao portão, latindo e rosnando, desesperados. A princípio, fechei os olhos e pedi para que os gritos parassem, afinal, que podia eu fazer? Recolher o cão, chamar o veterinário, talvez. Mas isso aqui é complicado, os cães, mesmo os que parecem de rua, têm donos e estes donos são às vezes mais animais do que os próprios cães.

Mas os uivos e gritos não pararam e eu corri em direção à rua. Quando cheguei ao portão, os gritos haviam parado e eu fiquei procurando a origem do barulho. Havia muitas pessoas na rua, um grupo de crianças gritava alguma coisa que eu não entendia. Um caminhãozinho do Conselho Municipal (equivalente à prefeitura) estava parado na esquina e alguns homens executavam algum serviço que eu não podia distinguir.

Foi quando um dos homens veio para a frente da minha casa. Havia um casal de cães na rua, uma cadela já minha conhecida, da casa da frente e outro cão, um cãozinho preto, pequeno, peludo. Seu pêlo e estatura lembravam um Yorkshire. Lembro que pensei, naquele momento, nas madames que pintam seus cães e que, talvez, esse pudesse ser um dos cães de madame com henna no pêlo. Mas não, aqui isso não acontece. Era mesmo um cão de rua, um rafeiro, como dizem aqui.

De imediato, o homem do Conselho Municipal, alto, forte e decidido, agarrou o cãozinho indefeso por uma perna e levantou-o no ar. Eu imediatamente comecei a gritar para que parasse, pois estava machucando o cão. Outro homem limitou-se a responder-me que eu não me preocupasse, pois o cão assim não morderia. Como se eu estivesse preocupada com o homem… que ironia! Este gesto quebrou a perna do cão, que gritava mais desesperadamente ainda. Talvez seus gritos tenham sido abafados pelos meus que, histérica, com as mãos nas grades do portão, implorava para que parassem com aquela cena bizarra. Já imaginava como iria telefonar ao veterinário, como faria para cuidar daquele cão com a perna partida por um animal. Mas os homens ficaram surdos aos meus gritos e aos gritos do cão. Com o cão machucado, o monstro conseguiu pegá-lo pelas duas patas e ficou girando-o em volta de si, até que um outro veio com um tronco, com o qual subjugaram o cão (como se um cão daquela estatura e com a perna quebrada pudesse causar algum mal), enquanto o caminhãozinho chegava mais perto. Na carroceria, havia uma gaiola de madeira, cheia de outros cães. Era a carrocinha moçambicana. O cão, machucado, foi atirado para dentro da gaiola, junto com os outros cães que uivavam e choravam.

Foram embora e eu fiquei ali, grudada ao portão, sem conseguir sair do lugar. Chorava compulsivamente e as crianças, assustadas com minha reação, achegaram-se a mim. Eu perguntei por que faziam aquilo e as crianças responderam que não sabiam, mas que agora iam guarda seus cães para que não lhes acontecesse o mesmo.

Chorei muito, revoltei-me, tentando entender o que leva um ser humano (?) a tal atitude. O cãozinho teve a perna quebrada por aquele monstro e ele não demonstrou nenhuma pena, balançava o animalzinho como se fosse um pedaço de madeira, indiferente aos gritos (meus e do cão).

Realmente, há muitos cães na rua aqui na cidade. Realmente alguma coisa precisa ser feita. Mas isso??? Por que tanta maldade? Tentei me consolar pensando que aqueles cães iam morrer, que iam para o céu dos cães, como costumo dizer, iam parar de sofrer maus tratos nesta vida ingrata. Mas depois lembrei… como irão matá-los? A pauladas, certamente.

O pior é que não tenho a quem recorrer, não tenho a quem denunciar. Aqui, os animais são isso, são tratados assim, como nadas. Sei que não há dinheiro para canis públicos, para uma campanha de castração, mas nada justifica a violência.

Meu coração está despedaçado. Senti mais uma vez o tamanho da minha impotência frente a estes animais que se dizem humanos. Deveria ter saído do portão, deveria ter arrancado o cão à mão daquele monstro, mas, será que não teria tido o mesmo tratamento que o cão? Confesso, senti medo. E pior do que a impotência, é o medo, principalmente quando os ditos humanos transformam-se em monstros insensíveis e desalmados.

quinta-feira, 7 de junho de 2007

E-mails, judeus, palestinos & chimpanzés

Todos os dias recebo quase uma centena de e-mails. Alguns são automaticamente repassados e, quando vejo que é assim, nem leio, deleto logo. Outros trazem piadas velhas e batidas (chego a receber a mesma piada até três vezes por dia). Quando vejo o assunto, deleto.

Os que acho interessantes, leio, ou deixo para ler com mais atenção quando tiver mais tempo. Alguns são do meu grupo, os Poetas Independentes. Estes são prioritários, sempre leio primeiro.

Tenho uma grande amiga em Blumenau que sempre me repassa e-mails sobre as mazelas humanas, sobre as lutas do povo, sobre notícias de usurpação de direitos, tomadas revolucionárias… alguns são muito pertinentes e considero uma das melhores fontes de informação que tenho. Pessoa extremamente esclarecida, esta minha amiga tem uma compreensão do mundo que eu gostaria de ter. Ela consegue desvelar as máscaras, importa-se realmente.

Hoje recebi um e-mail com o seguinte título: «Não à ocupação israelense». Era datado de 16 de Maio deste ano e assinado pela Coordenação Internacional de Organizações pela Palestina. Começava assim: «Entre os dias 9 e 10 de Junho, pessoas ao redor do mundo se reunirão, em atos e manifestações, para dizer: Basta! O mundo diz não à ocupação israelense de Jerusalém Oriental, Cisjordânia, Faixa de Gaza e colinas do Golã…».

E eu pensei: o que eu tenho a ver com isso? Sou mesmo alienada, fico sempre dividida entre os judeus e os palestinos. Fico sempre desejosa de uma reconciliação cor-de-rosa entre eles, torcendo para que vivam finalmente em paz e em harmonia. Mas isso é impossível, pelo jeito. A história, que é mãe do tempo, já provou: eles não se acertam.

A experiência que tenho deste conflito é mínima, limita-se à convivência com judeus e com palestinos, aqui no Brasil. Sinceramente, nunca vi nada de diferente em nenhum deles, nunca achei que este ou aquele fosse «esquisito» ou que meus amigos palestinos fossem potenciais homens-bomba.

Vou começar com os palestinos. Convivi com muitos, lá em Uruguaiana, na fronteira do Brasil com a Argentina. Eles são comerciantes e ocupam a chamada «Baixa» da cidade. Frequentava sempre a loja do seu Maruf, pai do Marcelo e do Beto. Lá tomava aquele café maravilhoso e comia aqueles biscoitos que pareciam caídos do céu. Pessoas maravilhosas, todos eles. Amigos mesmo, queridos. Tive colegas na faculdade que eram palestinos. Gente!!! Eram pessoas normais, como devem ser todos os outros. Eram amigos, parceiros, prestativos. Como são as pessoas.

Em Blumenau, um dos meus grandes amigos é judeu. Neto de rabino. Pessoa fantástica, principalmente pelo seu senso de justeza (justeza mesmo). Um dia, falando sobre o holocausto (oh, um judeu falando sobre o holocausto! – devem ter rolado lágrimas, vocês estão pensando…), contou-me que, a idéia inicial do Hitler era justa. (Pasmaram???). Disse-me que os judeus-alemães, donos das fábricas, não queriam participar do esforço de guerra, que diziam que não eram alemães, e sim judeus e por isso não tinham obrigação patriótica nenhuma. O Hitler, justíssimo, então (pasmem mais ainda!), resolveu expulsá-los, afinal, não eram alemães… Só que, no caminho, o bigodinho enlouqueceu e resolveu matá-los todos. Vou lembrar… a história não é minha – é de um JUDEU!

Por isso, continuo em cima do muro: não acho que os judeus devam sair, nem acho que os palestinos devam sair. Queria colocá-los todos sentados no meu sofá e passar um daqueles sermões de professora… parecem crianças!

Pôxa!!! Antes de serem palestinos ou judeus, são humanos, pessoas, gente!!! Todos sofrem, todos sangram, todos choram. A dor não dói mais em um lado do que no outro. A humanidade é que está perdida, humanidade no sentido de sentir que o outro é igual a si, de reconhecer no outro parte de si mesmo.

Mas, bom… outro dia, li que alguns estudiosos filmaram um ataque de chimpanzés a outro chimpanzé, da mesma raça, só que de grupo diferente. Espancaram o chimpanzé invasor até à morte. E isso tudo só provou mais um elo entre humanos e chimpanzés: que a violência gratuita é da nossa natureza.

Que vergonha! Que vergonha pertencer a esta raça humana! Por isso que, quando vejo uma cobra morder alguém, ou um touro a jogar para o alto um toureiro, penso bem alto: bem feito! Porque os animais só atacam para se defender. Com exceção do chimpanzé, é claro, mas este tem um elo muito forte com os humanos…

sexta-feira, 1 de junho de 2007

01 de junho - Dia da Criança em Moçambique


Inocência escondida sob a poeira,
Brilho ensombrado pela vida,
Nasceu já obsidiante, conformado,
Candura alugada por trocados.

Persegue-me pela rua e repete:
«Tia, tou a pedir um mil»,
É para a barriga, para o irmão,
Inata necessidade tornada costume.

Hoje não te dou «um mil»,
Ofereço-te, sim, sonhos,
Carneirinhos de nuvem

Num céu cor-de-rosa,
Histórias de dormir,
Boa noite e um beijo.

quinta-feira, 31 de maio de 2007

O erro que deu certo - ao Clovinho

Pensei um poema
Que rimasse direito,
Que aliterasse a ideia,

Que tocasse o peito…

E foram sons combinados,
Pancadas com tês e dês
Correrias com erres e esses…
Mas algo deu errado!


Esqueci as letras,
Ignorei o escrito!
No lugar da palavra certa,
Saiu um risco perdido!


O poeta diz não ser pecado
Afinal, é convencionado.
Vale a comunicação
E o fluir da emoção!

quarta-feira, 30 de maio de 2007

Depressão

A depressão está na moda. É o mal do século, mas que já vem desde o século passado. Os balcões das farmácias estão abarrotados de anti-depressivos e as prateleiras das livrarias repletas de livros de auto-ajuda, para combater a baixa auto-estima, que causa a tal depressão.

Meu avô uma vez me disse que no tempo dele não havia essa coisa de depressão. As pessoas não tinham tempo para deprimir-se, tinham é muito trabalho. É certo que o trabalho a que ele se referia era o trabalho braçal, na lavoura, na lida com o gado, que não representa nenhum grande sacrifício mental. Pelo contrário, quando eu ia para a fazenda, minha maior terapia era acordar com o sol e soltar o gado no pasto.

Já tive amigas deprimidas, que não tinham coragem nem de sair da cama, ficavam lá, enfurnadas, com medo da vida. Eu não conseguia sentir pena, sentia somente uma revolta profunda pelo completo desinteresse delas com tudo o que acontecia em volta.

Eu mesma já pensei em entrar em depressão (acho esta expressão horrível – entrar em depressão!). Estava soterrada de trabalho, a faculdade exigindo mais e mais, sem tempo para nada. Um dia acordei e resolvi: vou me deprimir. Fiquei na cama. Esperei que o tempo passasse e as obrigações passassem junto. Pensei que uns dois meses de depressão seriam suficientes. Era Inverno e estava quentinho na cama, uma sensação maravilhosa.

Na escola, teriam pena de mim - coitada, mais uma professora deprimida. Na faculdade, os professores se apiedariam e talvez me deixassem fazer as provas mais tarde. Levaria um atestado médico, com a cópia da receita azul de remédio faixa preta. Ninguém me culparia, todos entenderiam minha ausência forçada da vida.


Olhei para o relógio, somente dez minutos de depressão e as cobertas começavam a pesar. Vontade de ir ao banheiro – será que a depressão inibe as necessidades fisiologias? Segurei o mais que pude. Não deu. No banheiro, olhando no espelho, tentei fazer cara de deprimida. Baixei os olhos, busquei uma expressão de nada. Mas que nada! Aquela cena pareceu-me tão impossível que caí na gargalhada, rindo sozinha no banheiro. Parecia uma louca. Ops! Mas era depressão e não loucura a minha meta. Respirei fundo e voltei para a cama.

Já era meia hora de depressão. Lembrei da gata que, enrolada nos meus pés olhava-me impacientemente. Tinha fome. Minha depressão não poderia impedir-me de alimentá-la, seria maldade demais. Levantei, fui à cozinha, servi ração. A cafeteira me olhava convidativa e não resisti. O café me acordou e o sentimento de culpa me invadiu.

Na escola, as crianças deveriam estar esperando por mim, todas trancadas dentro da sala-de-aula, correndo, gritando, naquele caos que sempre acontece quando um professor falta. Lembrei que naquele ano haviam muitos feriados e que o tempo para cumprir o currículo era apertado. Como iria recuperar tudo depois da depressão?

A faculdade! Meu Deus, a faculdade! Perderia o semestre, atrasaria minha formatura…
É… o caso é que depois da depressão, há que se recuperar o tempo perdido e isso dá muito trabalho.

Desisti da depressão. Vesti a primeira roupa que vi e saí correndo. Consegui chegar à escola no segundo período. Dei a desculpa do despertador estragado e segui a vida.

Sem depressão.

O tempo


Toc-toc, o tempo bate na porta

Punt-punt, pancadas no batente

Tarda o dia, atrasada vida


Corre rápido, sem celeuma

Que a hora urge

E o relógio...


Fogo!!! O relógio voooooaaaaaa!!!

sábado, 26 de maio de 2007

Amicíssima

Estou perdida, amicíssima.... tornei-me dependente das tecnologias e agora não há terapia de choque que me livre deste vício. O computador estragou, foi arrumar, roubei o do marido.
Estava pensando em projetos (ou projectos? - já não sei mais se escrevo em PE ou em PB, se bem que pelas últimas informações isso tudo vai ficar igual no final do ano - tomara!!!)... e lembrei daquele teu. Nunca mais falaste, nunca mais disseste nada. Desististe? O meu agora é o jardim, só que não tenho nem tempo nem bom jardineiro. O último queria botar argila nos vasos - será que ele não sabe que argila é para fazer e não para preencher??? Foi embora.
A empregada também foi embora. Consegui outro (sim, masculino, aqui é normalíssimo e dizem que eles trabalham melhor do que elas), que também foi embora, durou dois dias. Não sabia cozinhar. Consegui outra, vamos ver...
Meu proje(c)to agora é colocar na cachola toda a teoria literária possível. E êta que tá difícil... Vamos ver, também... dia 11 é o dia D, começa a loucura, a peregrinação das provas. E lá nossos amigos falando em lançar um livro. Bem queria garatujar no livro, mas não tenho a verve... ou será que tenho e está escondida em algum lugar? Eles dizem que sim. Mas não, não tenho tempo de procurá-la agora... antes de fazer literatura, tenho de («de» mesmo, de obrigação, porque «tenho que» não denota obrigação) aprender literatura.
Afinal, amicíssima, tu que és minha guru para assuntos teórico-literários, diga-me a verdade: Para que serve saber que a literatura é um conjunto aberto??? E por que (ih... em PE este «por que» é «porque» - será que isso também vai mudar? - e, se mudar, fica como no PE ou como no PB?) eu tenho DE explicar isso???
Amicíssima... vou estudar que a água já está batendo na bunda!!!
Saudades!!!!

sábado, 19 de maio de 2007

Senhas - Adriana Partimpim




Eu não gosto do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto

Eu aguento até rigores
Eu não tenho pena dos traídos
Eu hospedo infratores e banidos
Eu respeito conveniências
Eu não ligo pra conchavos
Eu suporto aparências
Eu não gosto de maus-tratos

Mas o que eu não gosto é do bom gosto

Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto
Eu aguento até os modernos
E seus segundos cadernos
Eu aguento até os caretas
E suas verdades perfeitas

Eu aguento até os estetas
Eu não julgo a competência
Eu não ligo para etiqueta
Eu aplaudo rebeldias
Eu respeito tiranias
Eu compreendo piedades
Eu não condeno mentiras
Eu não condeno vaidades

Eu gosto dos que têm fome
Dos que morrem de vontade
Dos que secam de desejo
Dos que ardem

quinta-feira, 17 de maio de 2007

Império, Mito e Miopia - Capítulo IÍ

II
Literatura e representação:
Fundamentos e aporias


Um factor constitutivo e definidor da literatura de ficção é que ela participa da composição de mundos possíveis e convoca, para cada um destes mundos, uma ideia de realidade que acaba por se articular, por semelhança ou por contiguidade, com o mundo empírico no qual nos movemos. Segundo Lubomir Dolezel (1988: 83), a acessibilidade ao mundo ficcional efectiva-se a partir do mundo real que concorre, de forma marcada, para a formação do mundo da ficção. Aquele proporciona os modelos da estrutura deste, ancorando, muitas vezes, o relato ficcional num acontecimento histórico e transmitindo factos em bruto ou realemas culturais.

Esta é uma ideia que vai de encontro àquela que é avançada por Marie-Laure Ryan (1997: 181), que preconiza igualmente que um mundo torna-se possível desde que concebido em função do mundo que ocupa o centro do sistema: o real. Apesar de Ryan considerar, por seu lado, que a relação entre o mundo possível da ficção e o mundo empírico é baseado na identidade das propriedades dos objectos comuns dos dois mundos, na uniformidade e na compatibilidade lógica, analítica ou linguística, a questão não nos parece ser tão líquida assim.


Na verdade, acreditamos que a relação entre aquilo que ela designa de «mundo real» (MR) e «mundo real textual» (MRT) não é, por exemplo, sempre e necessariamente lógica. Casos há em que a relação é estruturalmente ilógica, como a ficção científica e as narrativas fantásticas onde o princípio da não-contradição, por exemplo, é transgredido.

Por outro lado, tanto a uniformidade como a identidade entre esses dois mundos acaba por ser posta em causa pelo simples facto de que enquanto um, o mundo da ficção, é um mundo de referências, da linguagem, portanto, o mundo real é, por sua vez, o mundo dos fenómenos. Daí que estejamos perante mundos estrutural e semioticamente distintos.

Reflectindo também sobre a interacção entre estes dois mundos, Jonathan Culler (1997: 29) entende, por seu lado, que one reason why readers attend to literature differently is that its utterances have a special relation to the world – a relation we call «fictional». Exactamente porque, através do exercício interpretativo, se desenvolve um processo de reconhecimento, de identificação e de complementaridade entre as referências dos textos e os referentes do nosso universo.

Apesar de o teórico russo, V. Chklovski (1917: 83), defender que le but de l’art, c’est de donner une sensation de l’objet comme vision et non pas comme reconnaissance e, por conseguinte, salvaguardar a autonomia da obra literária – posição que não podemos deixar de compartilhar –, parece-nos, no entanto, sustentável, sem cair numa contradição irredutível, que essa mesma autonomia não fica em causa por fazermos interagir dois discursos: o do mundo criado e o do mundo do qual participamos enquanto sujeitos empíricos. Entra aí em jogo a relação dialógica tão cara a Bakhtine e que atenua a solidão estrutural e semiótica da obra literária.

Poesia – leia-se literatura, apesar de este ser um vocábulo tardio – é imitação. Com esta asserção, Aristóteles abriu uma das reflexões pioneiras e, também, não menos duradouras sobre as relações entre o mundo que a literatura cria e o mundo que nos situa historicamente. Por outro lado, inaugura com essa afirmação uma determinada forma de fazer e pensar a literatura como representação e que vale pelo mimetismo em relação a uma qualidade preexistente.

Assente na ideia de imitação, o conceito de representação assume, em Aristóteles, uma dimensão que vai muito além do plano a que muitas vezes tem sido reduzido. O classicismo e o neoclassicismo europeus serão os grandes culpados desse reducionismo devido à aplicação dogmática dos princípios aristotélicos da criação literária. Aliás, o filósofo grego evidenciou um rasgo inexcedível ao afirmar que a poesia (literatura) era mais filosófica que a história, precisamente por ver nela potencialidades representativas ilimitadas.

Reflectir, hoje, sobre a literatura como representação pressupõe a priori um exercício tautológico, redundante e, de certo modo, pouco produtivo. Mais a mais, se se considerar que esta é uma reflexão que acompanha o percurso da arte, em geral, e da literatura, em particular, provavelmente desde as suas origens, como o demonstra a milenar tradição da teorização literária de inspiração platónica e aristotélica.

Se é verdade que a revolução romântica, já nos finais do século XVIII, recolocou a questão da representação noutros patamares, de tal modo a ideia da representação como imitação foi substituída pela noção essencial da representação como criação, e se é verdade, também, que outras perspectivas epistemológicas (filosóficas, antropológicas, sociológicas, semiológicas, psicológicas, linguísticas, translinguísticas, políticas, etc.) – entre outros, pensamos nos contributos de Kant, Marx, Freud, Nietzsche, Saussure e Bakhtine – trouxeram novos e diversificados contributos teóricos, a questão em si não deixa aparentemente de manifestar sinais iniludíveis de consumição.

Porém, o facto de estarmos a lidar com a escrita romanesca, por um lado, e que – talvez por isso mesmo – interage decisivamente com o contexto epocal e geográfico em que ela surge, por outro, tornando-se essa mesma interacção um aspecto determinante da sua própria condição, leva-nos a retomar a questão da representação literária, não como um fim em si, mas como um dos eixos de reflexão potencialmente mais harmonizantes com a especificidade da literatura colonial.

No capítulo anterior, apresentámos as razões que fundamentaram a nossa opção pelo romance e que demonstram em que medida esta é uma arena privilegiada dos protocolos representativos não só no concernente à literatura colonial, mas também à literatura em geral. Devido à reconhecida plasticidade do romance, Emile Cioran (1956: 112) será, por isso, cáustico ao considerá-lo «a prostituta da literatura». Isto porque, no seu entender, sendo o romance um usurpador por excelência não hesitou em apoderar-se de meios próprios dos movimentos essencialmente proféticos. Além do mais, é, ainda segundo este filósofo romeno, «impuro» devido à sua própria «desenvoltura», vivendo da fraude e da pilhagem e tendo-se vendido a todas as causas.

Falar, portanto, da representação é reequacionar os diferentes conceitos que lhe são inerentes, ou seja, imitação, conhecimento, criação do mundo, imaginação, mediação, ou, mesmo, predição e que determinam a idiossincrasia do fenómeno artístico. Atento à incontornabilidade desta problemática, Jean Bessière (1995: 382) defende que, apesar de ser uma questão dos realismos e dos naturalismos literários constituídos a partir do século XVIII, a representação constitui, no entanto, um problema para a teoria literária contemporânea. Esgrimindo não só com o conceito de representação, mas também com o conceito de anti ou auto-representação, Bessière adianta que «está em causa aqui o estatuto e o poder do literário» (p. 394). Isto é,

estes termos permanecem presentemente inapagáveis e exactamente recíprocos, porque um deles – a anti ou auto-representação – sugere que o artificialismo do discurso recolhe o próprio infinito do sentido do dizível, e outro – a representação – retém um imperialismo do realismo – a palavra certa e o seu dizer sem resíduo.

Portanto, se a ideia de representação remete para um determinado mundo de coisas, a anti ou auto-representação inscreve-se na circularidade imagética da própria linguagem. Porém, a representação nunca é completa, apenas provisória, uma vez que nunca é mais do que alguma coisa que procede pontualmente segundo a autoridade da linguagem e a autoridade das coisas, e é, ao mesmo tempo, repetição e diferença. Subsiste, pois, uma situação de aparente insolubilidade da linguagem e das coisas.

Porém, definir a representação como criação, criação de mundos possíveis ou alternativos, tal como defendem, entre outros, autores como Lubomir Dolezel, Martínez Bonati, Thomas Pavel, Umberto Eco, M. L. Ryan, ou, simplesmente, como modo de fazer mundos (Goodman), é, tanto em termos teóricos como pragmáticos, a forma com que na contemporaneidade se superam as aporias que o conceito tradicional de representação suscita.

Orientando-nos concretamente pela literatura colonial, verificamos que esta potencia e explora, de maneira intensa, uma rede inextricável de identidades e alteridades (físicas, culturais, éticas e filosóficas) tornando-se, por conseguinte, inevitável tematizar e reflectir sobre a questão da representação que, per si, se impõe como determinação estrutural e semiótica dessa mesma literatura. Tanto enquanto figuração das coisas como da própria linguagem.

A literatura colonial, enquanto modo particular de gerar (e gerir) mundos, acaba por consagrar esteticamente a expressão O mundo que o português criou, uma das mais emblemáticas expressões de Gilberto Freyre e título de uma das suas obras mais representativas. Trata-se, aliás, de uma das crenças que mais alimentam e povoam, mesmo que de forma subterrânea, o imaginário dos portugueses. E a literatura colonial não só se limita a criar mundos, mundos possíveis ou alternativos, como torna seriamente indissolúvel a compatibilidade entre esses mundos e o mundo real, isto é, o seu devir. Daí a sua importância e actualidade.



1. Da irrepresentabilidade ou a resistência à representação

Uma das motivações maiores (e porque não mérito, mesmo tendo em conta o cabedal de distorções e preconceitos?) subjacentes à literatura colonial é o de ela assumir-se, implícita ou explicitamente, como uma forma mais ou menos elaborada de revelação de uma realidade mal conhecida ou simplesmente ignorada.

Até que ponto a representação literária cumpre, pois, este desígnio se nos ativermos, por exemplo, às constatações cépticas de Philippe Hamon (1973: 134) que questiona: como «é possível reproduzir, através de uma mediação semiológica (com signos) uma imediatidade não semiológica?». Ou de Roland Barthes (1978: 22) para quem o real não é representável, daí que a literatura traduz uma «impossibilité topologique» por não poder fazer coincidir uma ordem pluridimensional (o real) com uma ordem unidimensional (a linguagem)?

Em contrapartida, para Roman Ingarden (1965: 301), com o processo de representação, trata-se apenas de reter aspectos de uma realidade em permanente devir ou, numa perspectiva de raiz freudiana e actualizada pelo mesmo Barthes (1973: 121), a representação seria uma figuração embaraçada, estorvada por outros sentidos que não o do desejo: um espaço de álibis (realidade, moral, verosimilhança, legibilidade, verdade, etc.).

Ultrapassada a ideia de assumir a representação como imitação, ideia tributária das reflexões platónico-aristotélicas e que se firmaria como norma[1] até princípios do século XVIII, apesar de amiúde objecto de contestação e de transgressão, colamo-nos agora a um sentido muito mais elástico, muito mais realista, mas nem por isso menos problemático, da representação que, de forma concisa, é definida por aquilo que ela não deve ser, como explica Helena C. Buescu (1990: 266):

Ora, a partir do momento em que se concebe a linguagem como convenção e consenso, a noção de imitação tem de ser liminarmente eliminada, e a representação justamente entendida como a impossibilidade de imitar. Representar não é apenas «não imitar»; é sobretudo o indício de uma actividade apenas possível a partir do momento em que se reconhece que o homem representa justamente na medida em que não pode copiar. Representar não só não é imitar, como sobretudo é não imitar.

Portanto, esta formulação traduz o cruzamento dos subsídios trazidos quer por uma triunfante prática literária inaugurada pelo romantismo, quer por um exercício teórico que se verifica tanto dentro desse mesmo movimento – estamos a pensar, por exemplo, nos irmãos Schlegel –, como também por todo um percurso filosófico e científico que, de forma aguda, e durante o século XIX, deixou a nu a precariedade da própria realidade enquanto valor objectivo, estável e uno.

Para isso, contribuíram quer as transformações teóricas (a dialéctica hegeliana; Marx, com o primado da matéria e da necessidade económica sobre a consciência; Nietzsche, com a apologia do instinto e com a sua negatividade radical em relação ao cristianismo, à filosofia socrático-platónica e à ciência; Freud, com as suas teorias sobre o inconsciente), quer as transformações políticas (a Revolução Francesa, a emancipação política dos povos ditos «primitivos»), quer, ainda, as transformações sociais e tecnológicas, que irão, por sua vez, desencadear a multiplicação de visões do mundo: étnicas, religiosas, culturais, socioeconómicas, estéticas e sexuais.

Segundo o filósofo italiano Gianni Vattimo (1989: 15), dá-se, com todas estas transformações, a erosão do próprio «princípio da realidade». Isto é, o mundo torna-se fábula, interpretação. Esta é, aliás, uma ideia com incontornável sabor nietzschiano, em que os factos, a realidade, o mundo existem apenas como interpretação, isto é, como um texto misterioso em devir e em processo de decifração sempre inconcluso.

Além do mais, disto tudo resultou, entre outras coisas, a exposição da fragilidade da condição humana, que se apresenta de forma fragmentária, solitária, contraditória e dificilmente fixável. De maneira categórica, ficou também patenteada, através da linguística e da semiótica, a importância e a complexidade da linguagem enquanto elemento municiador de sentidos, múltiplos e voláteis, na relação entre o homem e a realidade que o envolve.

Por outro lado, o movimento simbolista redimensionou o conceito de representação, com sentido crítico, ao assentar a sua produção literária fundamentalmente no auto-investimento da linguagem. De acordo com Foucault (1966: 313), a linguagem torna-se um processo alargado de auto-representação de tal modo que, a partir de Mallarmé, la littérature se distingue de plus en plus de discours d’idées, et s’enferme dans une intransivité radicale.

Podemos, pois, concluir que, por um lado, a representação se institui como uma busca incessante, uma impossibilidade, enfim, se tivermos como horizonte a conformação (mimetismo) com uma realidade estável, global e preexistente, a qual ela procura adequar-se. Por outro lado, a representação pode ser um fim em si, cumprindo-se, sobretudo enquanto criação, adquirindo daí uma grandeza imanente, própria. E o que faz com que a representação se torne acessível, compatível, inteligível, verosímil, é que ela se institui, como antes fizemos referência, em função dos códigos (linguísticos, culturais, filosóficos, éticos, estéticos, etc.) do mundo real, isto é, do nosso mundo.



2. O efeito do verosímil

Le concept de vraisemblable n’est plus à la mode (Todorov 1971: 93). Com esta afirmação, concludente e plena de convicção, Todorov retira-nos, à partida, qualquer veleidade de avançarmos numa reflexão em que o conceito de verosimilhança seja equacionado. Na verdade, é muito pouco estimulante sustentar um discurso dito, de modo tão peremptório como démodé há mais de trinta anos.

Em todo o caso, por imperativos de ordem metodológica e teorética e pela necessidade intorneável que temos em manter o nosso estudo perseguindo um determinado alinhamento, decidimo-nos por correr o risco e revisitarmos um dos mais vetustos conceitos dos estudos literários mas, mesmo assim, dotado de particular vitalidade.

Aliás, é o próprio Todorov quem nos abalança nesta direcção quando, a dado passo, concede que existem vários sentidos para o termo: primeiro, quando acções e atitudes conforme a realidade; segundo, enquanto relação com o que a maioria das pessoas julga ser o real; terceiro, enquanto adequação do texto às regras particulares do género que adopta; e, finalmente, já numa acepção mais precisa, enquanto máscara com que se dissimulam as leis do texto, e que nos daria a impressão de uma relação (referencial) com a realidade. Isto é, o texto faz-nos acreditar que se submete ao real e não às suas próprias leis.

Por conseguinte, e de acordo com esta reflexão, falar em verosimilhança implica necessariamente ter em conta a aceitabilidade do mundo representado e a conformidade entre esse mundo e o universo expectacional do leitor. Afinal, e como concede Antonio Risco (1982: 10),

sólo es posible distinguir el fenómeno literario al nivel de la situación comunicativa, situación que establece un pacto particular, una complicidad – específica, sí, en teste caso – entre el autor y el lector.

Segundo este teórico espanhol, este «pacto particular» que se estabelece entre autor e leitor, consiste

en la simulación, en ele ejercicio del como si – la mimesis aristotélica, pero que ha de extenderse a muy diferentes niveles del texto literario – por medio de un conjunto de técnicas y recursos figurativos que tienden a elaborar una suerte de experiencias imaginarias, o sea de vida paralela.

Daí que a literatura seja, antes de tudo, «figuración» e que passa pela simulação de um facto vital. Apesar de discordarmos da ideia de que a figuração literária tende para o concreto, para o acumular de referencias de orden sensorial, há um dado conceptual importante que ele avança e que se refere a um campo imaginativo comum, património de uma unidade cultural num determinado momento no qual cada indivíduo possui a sua parcela: o «hipercódigo».

Trata-se de um campo imaginativo que se actualiza na obra e reúne os universos do leitor e do autor e é uma espécie de «virtual código cultural». Será, pois, o hipercódigo que irá determinar, em grande medida, o grau de verosimilhança da obra literária. Naturalmente que este hipercódigo será tão funcional quanto mais devedor for de uma cultura literária que se instituirá como plataforma identitária entre o universo do autor e do leitor e que acaba por ter uma dimensão histórica.

A este propósito, a já citada M.-L. Ryan reforça o facto de a ficcionalidade, que se ancora na ideia de verosimilhança com a qual muitas vezes se confunde, não se decidir nem pelas propriedades semânticas do universo textual, nem pelas propriedades estilísticas do texto, estabelecendo-se apenas e a priori como parte das nossas expectativas gerais (Ryan 1997: 205). Para esta autora, é, por conseguinte, ao leitor que cabe a função de determinar a ficcionalidade: Consideramos un texto como ficción cuando conocemos su género, y sabemos que el género está governado por las reglas del juego ficcional.

Entretanto, não deixamos ainda de ter em conta outras reservas colocadas em relação a esta arcaica questão da verosimilhança. É o caso de Julia Kristeva, que em Le Texte du Roman. Approche sémiologique d’une structure discoursive transformationnele (1970), defende que a verosimilhança adequa-se mais a sistemas monomorfos como a filosofia ou o discurso científico, onde a preocupação de provar e de verificar é acutilante. Por conseguinte, por a questão da prova e da verificabilidade não se impor em matéria literária, la productivité textuelle releve d’un domaine autre que le vraisemblable(1970: 76). No entender, ainda, desta autora,

La «vérité», ou la pertinence, de la pratique scripturale est d’un autre ordre; elle est indécidable (improuvable, invérifiable) et consiste dans l’accomplissement du geste productif, c’est-à-dire du trajet scriptural se faisant et se détruisant lui-même dans le processus d’une mise en RAPPORT de termes opposés ou contradictoires.

No essencial, Kristeva põe em causa o conceito de verosimilhança, a partir do momento em que lê implicar uma necessidade de provar ou de verificar a realidade textual em confronto com a realidade empírica, extraliterária.

Sem deixarmos de estar de acordo com esta posição por recusar a necessidade de prova e de verificação enquanto caução de verdade, o que é legítimo em termos literários, não anulamos, no entanto, a ideia que avançamos antes em relação ao conceito de representação. Isto é, que a verosimilhança se concretiza quer no horizonte expectacional do leitor, quer em conformidade com as regras impostas pelo próprio género, mesmo quando o texto se institui como factor de transgressão, ou quando se impõe a tal máscara que dissimula as leis da escrita levando-nos a assumir o texto como submisso às regras e contingências da realidade.

Além do mais, não conseguimos colocar a verosimilhança no plano em que Kristeva a coloca (de verificabilidade e de prova), mas simplesmente no da possibilidade. Portanto, o texto mantém-se, no fundo, como o principal municiador dessa mesma verosimilhança, mas sempre enquadrado num movimento interactivo e incessante com o leitor. Isto significa que, e no âmbito do acordo tácito que aí se estabelece, enquanto que a obra finge que o mundo que cria é verdadeiro, o leitor, por seu lado, finge completamente que assume como verdadeiro o mundo que a obra lhe proporciona.

Em convergência com a nossa posição e com a defendida, de certa forma por Todorov, Antonio Risco e Ryan, Gérard Genette (1969: 76) explica que a verosimilhança, que pode variar em parte ou no seu todo, se institui com base em relações de implicação entre, por exemplo, a conduta das personagens e máximas gerais, normativas, implícitas e cristalizadas cultural, moral e socialmente. Isto é:

Le récit vraisemblable est donc un récit dont les actions répondent, comme autant d’applications ou de cas particuliers, à un corps de maximes reçues comme vraies par le public auquel il s’adresse : mais ces maximes, du fait même qu’elles sont admises, restent le plus souvent implicites.

Temos, uma vez mais, a ideia de um «contrato tácito entre a obra e o seu público», de tal modo que uma conduta torna-se incompreensível ou extravagante, inaceitável, portanto, quando não vai de encontro ao horizonte expectacional dos leitores apoiados num determinado conjunto de normas e de princípios. Incluem-se, obviamente, as próprias convenções do género que funcionam como um sistema de forças e de resistências naturais às quais a narrativa obedece sem sempre dar a entender que as percebe e sem as ter que nomear.

Obviamente que nem todas as obras literárias se mantêm reféns da opinião plebiscitária dos leitores. E aqui, o que temos é uma escrita comprometida com uma ordem particular ou uma imaginação ilimitada. Desta feita, L’originalité radicale, l’indépendance d’un tel parti le situe bien, idéologiquement, aux antipodes de la servilité du vraisemblable (Genette, 1969 : 77).

Porém, como a verosimilhança implica a legibilidade da obra, sempre que o autor se apercebe que introduz elementos novos e que escapam ao domínio dos seus destinatários, ou que transgridem o quadro normativo em que se integram, adopta uma atitude pedagogia, didáctica, produzindo, a partir daí, um «verosímil artificial».

E, é, pois, uma espécie de «demónio explicativo», segundo Genette, que vai caracterizar muitos dos segmentos discursivos do romance colonial onde as explanações do narrador, jogando quer com motivações extraliterárias, quer com as leis da própria narrativa, ne sont pás là pour le seul plaisir de théoriser, elles sont d’abord au service du récit: elles lui servent à chaque instant de caution, de justification, de captatio benevolentiae, elles bouchent toutes fissures, elles balisent tous ses carrefours (p. 81).

Em relação, portanto, à literatura colonial, podemos identificar, a partir dos próprios textos, a prevalência de determinadas normas ou princípios de ordem estética, moral, cultural, civilizacional que regem as mundividências e condutas particulares das personagens (e do próprio narrador). Todos esses aspectos traduzem-se, por exemplo, em ideias que têm a ver com a acção civilizadora do homem branco, a inferioridade do negro, a hegemonia da cultura ocidental, etc., e que acabam por constituir pontos de referência em termos de aceitação do que essa literatura veicula, isto é, em termos de verosimilhança. Verosímil que, na vertente mais marcadamente ideológica da literatura colonial, traduz um pretenso ecumenismo que se liga, para todos os efeitos, às expectativas do leitor pretendido.

Há, pois, uma espécie de convencionalidade que determina que um texto seja lido não só como literário, mas também como verosímil. Trata-se de um hyper-protected cooperative principle (Culler 1997: 24), que assegura a comunicação literária. Segundo a esclarecedora perspectiva de Jonathan Culler, o leitor corresponde aos dispositivos do texto, lendo-o e construindo o(s) sentido(s) em função do que lhe é proposto, resultando a eficácia da comunicação da cooperação que se estabelece entre a entidade autoral e o leitor através do próprio texto. Fazendo a interpretação um elemento determinante, tal como Wolfgang Iser, Culler (p. 29) considera que

the literary work is a linguistic event which projects a fictional world that includes speaker, actors, events, and an implied audience (an audience that takes shape through the work’s decisions about what must be explained and what the audience is presumed to know).

Da mesma forma, o «princípio cooperativo hiperprotegido», afinal na mesma linha do «hipercódigo» referido por Antonio Risco, e tendo em conta que estamos perante entidades históricas (autor-obra-leitor), concede, também, ao verosímil uma dimensão histórica. Isto é, aquilo que é verosímil numa determinada época, num determinado contexto, pode deixar de sê-lo, noutros.

Quer dizer, da mesma forma que o realismo de Flaubert, Balzac, Stendhal, Dostoiewski ou Dickens vai, de certa forma, alterar ou alargar o conceito de verosímil – dominado, tradicionalmente, pela representação dos comportamentos exemplares das personagens ligadas às classes hegemónicas –, através da transferência do protagonismo para personagens vulgares como camponeses, criados, comerciantes, operários, o realismo colonial, por seu lado, vai também alargar esse mesmo conceito de verosímil. Isto é, ao permitir que personagens de indivíduos não brancos, mesmo que condicionadas no seu comportamento e na sua atitude mental pela perspectiva manipuladora e etnocêntrica do narrador, mesmo que em confronto com a personagem do colono, joguem papéis determinantes na história narrada como são os casos dos romances Omar Ali, A Neta de Jazira, Fogo III, Raízes do Ódio ou Ku Femba.

Atendendo a que a literatura colonial é direccionada para um público determinado, para um destinatário específico, localizado espacial e temporalmente, interpretar essa mesma literatura torna-se, hoje, um exercício hermenêutico desafiador que requer reenquadramentos históricos e culturais. Isso, tratando-se de um leitor deslocado, ou desconhecedor, em absoluto, do contexto espácio-temporal em que essas obras foram produzidas e profusamente lidas. Trata-se, portanto, de um distanciamento que, apesar da carga informacional reunida nos textos, pode condicionar a recepção das obras.

Isto é, se é verdade que o autor, no extremo do processo comunicacional que desencadeia, é condicionado pelos códigos histórico-culturais que lhe são coevos, o leitor de hoje irá, como é óbvio, na interpretação do texto, aplicar os códigos que fazem parte do seu universo cultural. Apesar da inevitável reconstituição a que será com certeza submetida e partindo do pressuposto que ela assegura a plena legibilidade dos textos, a ideia de verosimilhança irá apresentar contornos mais complexos e fugidios, mas sempre como caução da própria ideia de representação.



3. O múltiplo e o diverso

Excerto 1

Gritam, galos do mato, empoleirados nos braços musculosos dos imbondeiros. Afloramentos de granito, como répteis gigantescos, aquecem o dorso negro ao flamejar do soalheiro. Assustadas, refugiam-se codornizes, em voo estrepitoso, no mais denso das moitas de espinheiras. Esbracejam, em atitudes desengonçadas de esqueleto, os galhos rugosos de mitiáti, pobremente enfolhados.

!Paisagem monótona, despida de pompas, assoalhada mas triste, a perder-se por léguas!

Luta renhida pela existência! O folhedo a pedir angustiado à calidez do céu uma gota benéfica de orvalho; raízes contorcidas, espalmadas rés-vés com o solo, serpeando ou enroscando-se como jibóias; garrunchos grosseiros e disformes, gretados e negros; troncos encarquilhados como velhos mendigos, curvados em gibosas nodosidades; raízes aéreas, grossas como cordas, em fartas madeixas pendentes dos braços gretados das escassas frondes, outros tantos dedos inertes, caídos em atitude de desalento, a pedir inutilmente ao espaço a esmola que a terra implacável lhes não quer dar.

E sempre assim, léguas e léguas andadas pelo mesmo brejo agreste, calcorreando por entre herbagens como fios de arame, duras e praganosas, furtando o corpo às garras dilacerantes de espinheiras arbustivas, revoltadas contra a sua morte malfazeja.
(In Eduardo Correia de Matos, Sinfonia Bárbara, pp. 87-88)


Excerto 2

Passou Dezembro, ardente, dos dias longos. Janeiro correu célere. Fevereiro apareceu mais quente. O chão do Muende era enorme ventre inchado, onde germinavam as sementes, que o branco da cantina oferecera aos negros. Viam-se-lhe as protuberâncias, quando a semente, feita planta, empurrara a terra, para vir espreitar o Sol – e crescer, cheia de mornidões revigorantes, criadoras de seivas fortes. E as hastes delicadas das plantas se tornaram vergônteas rijas, gingando ao sabor da brisa. Às noites, receberiam a frescura dos cacimbos, que as tomavam de cima a baixo.

Os milharais tinham as espigas maduras. No topo das hastes fortes, as barbas do milho tinham mudado de cor: haviam passado do loiro dourado ao castanho escuro.
(In Rodrigues Júnior, Muende, p. 175)


Excerto 3

A indumentária de Catuane, essa é que era realmente assombrosa. Fazia a inveja e a cobiça de quantos a admiravam. Botas de cano largo, até meio da perna, de solas ferradas; calções à Chantily, às riscas azuis e brancas, chapeadas de cabedal em figuras geométricas; espessas meias vermelhas de lã que chegavam aos joelhos, saindo dos canos das botas; uma blusa feita de retraços de pergamóide de diversas cores, unindo ao meio por um fecho éclair; além dum casacão enorme, tão felpudo que era inteiramente aceitável ter pertencido ao espólio de algum alpinista. Na cabeça, um grande chapéu à cow-boy, de alta copa e de aba larga revirada, com duas penas de galo espetadas no alto. Óculos preto e uma sombrinha de senhora completavam a carnavalesca indumentária. A atravessar o lóbulo de uma das orelhas uma caneta de tinta permanente.
(In Eduardo Correia de Matos, Terra Conquistada, pp. 176,177)


Excerto 4

Cafere e as irmãs trouxeram, para a esteira, a panela de farinha, a carne de cabrito – e o tacho de ferro, com o molho de amendoim. O dono da casa iniciou o banquete, enfiando na panela maior a mão vazia, para a tirar cheia de farinha de milho cozida. Meteu, depois, no molho de amendoim, a bola que fizera dela – e foi comendo, devagar, enquanto a outra mão segurava um pedaço de carne assada, que ofereceu a Pedro da Maia. Pedro da Maia imitou Bambo, fazendo com a mão nua, uma bola de farinha cozida, que mergulhou no molho gorduroso […]

Quando nada ficou nas panelas, encostou à parede as costas largas, estendeu mais as pernas – e arrotou. Pedro da Maia fez um esforço – e arrotou, também, num acto de delicada cortesia, que Bambo agradeceu com um sorriso tão largo, que lhe deixou os dentes à mostra.
(In Rodrigues Júnior, Muende, pp. 73, 74)


Excerto 5

- … Não trazemos bandeirinhas como quando somos empurrados até Porto Amélia, e que uma vez levámos a Nampula para ver pessoa grande de Lisboa. Alguns gostaram ir. Era passeio de graça mesmo, com outra alimentação. Negro com cabeça maior nunca pode gostar destes passeios porque dinheiro gasto em bandeirinhas morreu assim mesmo, quando podia empatar-se para termos água perto das palhotas…
[…]
- Só falar não é nada, senhor governador. Fartos aguentar má vida! Vê esta gente ainda molhada? Choveu toda a manhã. Aguentamos porque desejamos ficar sem brancos nos macondes. [Itálicos nossos]
(In Agostinho Caramelo, Fogo III, pp. 225, 226)


Excerto 6

Fomos sempre mais um povo de aventureiros, nada ambiciosos, com pouco nos contentamos. Ligados, direi antes, amarrados a um atavismo das épocas recuadas em que as caravelas despejavam no reino carregamentos de especiarias vindas da costa do Malabar, continuamos até à presente época com o mesmo sistema, olhos fechados à realidade ultramarina. […] Tivemos sempre nos povos que civilizámos amigos fiéis que nada nos pediram, que defenderam as nossas fronteiras, que trabalharam resignadamente sem um queixume, sem um reparo. Somos um povo multirracial, vivemos sempre em paz e concórdia, tivemos essa felicidade, não a deixemos hoje fugir com posições de intransigência, de incompreensão.
(In Eduardo Paixão, Cacimbo, p. 249)


Atentando nestes seis excertos, consideramos que são vários os elementos que garantem a sua aceitabilidade e que, portanto, os tornam verosímeis aos olhos de múltiplos e diferentes leitores. Isto sem descurar o desfasamento referencial entre a realidade representada, o contexto onde se inserem muitos desses leitores e o seu horizonte de expectativas.

Vamos, pois, sem deixar de equacionar como se processa essa representação – que oscila entre a narração, o diálogo e a descrição – identificar o que é aí representado. Com esta identificação, procuramos por um lado, interligar o conceito de verosimilhança, enquanto dimensão representacional fundamental, com uma produção literária determinada e, por outro, deixar em aberto a abordagem das categorias, dos elementos e das modelizações que participam dessa mundividência específica.

Assim, no primeiro excerto, construção com fortes marcas impressionistas, deparamo-nos com uma representação dominada pelo espaço. Espaço que, apesar de humanizado pelo olhar da entidade que o recria, é essencialmente de desolação e de solidão.

Veremos, adiante, como o espaço é uma categoria determinante não só dos movimentos narrativos particulares, mas também da representação da colonialidade literária[2], em geral, subordinada a percepções e vivências em que os lugares, sejam eles privados ou colectivos, sejam eles reais ou imaginários, interiores ou exteriores, surgindo como referências dolorosas e insuportáveis, por um lado, ou com uma dimensão sortílega e compensatória, por outro, acabam por se instituir, todos eles, como verdadeiramente estruturantes.

No segundo excerto, temos o tempo como um dos centros do processo representativo. E o tempo, melhor, a sua fluência aparece-nos aqui tanto no seu movimento objectivo, homogéneo e cronológico (Dezembro, Janeiro, Fevereiro), como nos surge fundamentalmente enquanto efeito estético, de tal modo que é através dos motivos e dos elementos da natureza que nos damos conta do tempo que efectivamente evolui: «viam-se-lhe as protuberâncias, quando a semente, feita planta, empurrara a terra, para vir espreitar o Sol – e crescer…».

E é muito na relação com o espaço e os seres que é marcada a representação do tempo no romance colonial (daí a ideia bakhtiniana de o romance ser, no essencial, um cronótopo[3]) em que a tangibilidade realista é dominante. Casos há, como iremos verificar, em que o tempo mais do que uma dimensão categorial da narrativa apresenta-se como o grande protagonista. Seja o tempo como «mobilidade imóvel», segundo Bergson – quase sempre tempo de inacção e de despojamento –, seja o tempo no seu movimento incessante: vertiginoso ou lento, edificante ou desestruturante.

Reflectindo uma tensão metonímica, a descrição da indumentária da personagem conduz-nos, no terceiro excerto, à representação do ser na sua condição física e psicológica. Nesta representação, com inequívocos contornos caricaturais, interagem duas visões do mundo; por um lado, a do narrador (de quem vê) que polvilha a sua descrição com doses calculadas de juízos de valor (realmente assombrosa, inteiramente aceitável ter pertencido ao espólio de algum alpinista, à cow-boy, carnavalesca indumentária).

Por outro lado, temos a visão do mundo de Catuane, aquele que é visto, e que não sentindo o ridículo experienciado pelo narrador vive, no seu próprio envaidecimento, a importância e a sobrevalorização da sua pessoa, pois: «Fazia a inveja e a cobiça de quantos o admiravam».

A partir desta dicotomia entre o olhar do narrador e o ser objectalizado, o Outro, neste caso, institui-se numa rede interpretativa, uma espécie de «intriga ética», ou «uma não-relação», segundo Lévinas, e que representa uma das imagens de marca de toda a literatura colonial. Tal é a carga preconceituosa que domina toda essa interpretação – vista nos dois sentidos, isto é, do observador para o observado e vice-versa – que nos parece incontornável a ideia de que na interpretação do Outro, a subjectividade do observador sobrepõe-se de modo irredutível.

No quarto excerto, confrontamo-nos com a dimensão cinética da narrativa e que nos é veiculada através da representação do conjunto de acções das personagens. Todo esse movimento apresenta-se dominantemente com virtualidades diacrónicas. Trata-se de uma ordem não só cronológica, mas essencialmente lógica. Desde o momento que precede o repasto, em que Cafere e as irmãs trazem a panela de farinha, a carne de cabrito e o molho de amendoim, até o momento em que os comensais arrotam, temos uma representação sugestiva em termos de cadencia cinematográfica, em que os detalhes mostrados acabam por adquirir valor próprio. E esta é uma das características maiores da narrativa colonial que, no desvelamento de uma realidade alienígena, explora no pormenor o fardo antropológico e histórico de uma civilização. Mesmo com as distorções e as leituras enviesadas que se reconhecem.

Com a figuração da linguagem, que encontramos no quinto excerto, vem à superfície o conceito de auto-representação. Isto é, à linguagem que fala a linguagem. Gesto que é aqui desenvolvido através de uma tipicidade discursiva que, neste caso, é uma desfiguração sintáctica do português-padrão: alguns gostaram ir. Desfiguração que pode também ser a nível semântico: Negro com cabeça maior, isto é, negro inteligente.

Esta transfiguração linguística insere-se no contexto mais vasto do afã realista da literatura colonial que procura representar todo um universo em que a exploração da diferença se institui como um fenómeno verdadeiramente marcante em termos de anulação do Outro. A diferença que é referida no nosso estudo tem a ver não só com o Outro, que é encontrado num espaço outro, mas também com aquele que o encontra, com as construções que aos dois se referem e, finalmente, com quem evidencia essa mesma diferença. Os que vêm de fora (os europeus) assumem-se, assim, como diferentes em relação ao espaço de chegada do mesmo modo que se irão tornar gradualmente diferentes (embora não essencialmente outros) em relação ao lugar de origem (Europa).

Voluntária ou não, a vertente auto-representativa da linguagem acaba por ser uma credencial, mesmo que obedecendo a desígnios extraliterários no sentido da depreciação e da inferiorização cultural, que permite reconhecer alguma modernidade nesta literatura. E a modernidade institui-se, de modo particular, quando a linguagem se coloca no centro da criação literária, espaço de produção estética.

E o romance de Agostinho Caramelo, todo ele em ritmo dialogado, intercruzando falas distintas, com níveis de língua também distintos, é um exemplo destacado dessa vertente emancipatória do romance.

Como o último excerto, extraído de Cacimbo de Eduardo Paixão, confrontamo-nos com um dos aspectos mais carregados de intencionalidade da literatura colonial e esteticamente mais problemáticos: a representação ideológica.

Segundo Mukarowski (1975: 303-304), a «concepção do mundo pode significar quer a atitude que o homem de uma época qualquer adopta em relação à realidade, ou então, designa um determinado conteúdo ideológico». Se há uma Weltanschauung presente, explícita ou implicitamente, numa produção artística, essa parece ser, a todos os títulos, uma evidência no romance colonial, em geral, e neste texto, em particular.

E tratando-se, neste caso, de um manifesto exercício autognóstico – o de um povo que se repensa através da consciência de uma personagem – reconhece-se aí uma das imagens de marca de qualquer ideologia: a de ela impor-se como um sistema de ideias dominante. Por conseguinte, apesar da projecção de um aspecto negativo, ao deixar a descoberta uma verdadeira «ferida narcísica», como diria Freud, com a afirmação de que «fomos sempre mais um povo de aventureiros, nada ambiciosos, com pouco nos contentamos», há, logo de seguida, na fala da mesma personagem, uma genuína vangloriação, uma hipervalorização cauterizante e sublimatória de todos as imperfeições: «Somos um povo multirracial, vivemos sempre em paz e concórdia, tivemos essa felicidade, não a deixemos hoje fugir com posições de intransigência, de incompreensão.».

A representação do ideológico que é recorrente na literatura colonial – e que muitas vezes se fica pelas entrelinhas – acaba por ser decisiva na concepção do mundo que aí prevalece. A ideologia constitui, afinal, e ainda segundo Mukarowski (1975: 311), «um dos elementos da obra de arte, mas um elemento que funciona como laço eficaz entre a arte e toda a ampla esfera da cultura humana e as suas diversas componentes como a ciência, a política, etc.».

Posição que, num outro contexto, é partilhada por Althusser (Jameson, 1981: 30) para quem a ideologia é uma estrutura representacional que permite ao sujeito imaginar a sua efectiva ligação com a estrutura social ou lógica da História.

Portanto, analisar a função ideológica inscrita no romance colonial pode ser determinante para entender as diferentes interacções estabelecidas pelo próprio texto. Facto de que nos dá conta Jenny Sharpe (1993: 8-9) quando afirma: I also [como Foucault] consider a theory of ideology to be crucial for addressing cultural constructions of race, class, and gender.

Considerando, na esteira de Althusser, a ideologia como uma «second-degree relation», a mesma estudiosa adianta que ideology is not «the imaginary» but the articulation of na ideal (Womanhood, Nation, Democracy) with the relations that make that ideal active (gender and sexuality, race and ethnicity, class and status).

Se eh verdade que a literatura, do ponto de vista estético, fica caucionada sempre que a motivação ideológica é evidente, por outro lado, não deixa de ser interessante perceber o texto literário coo um espaço dialógico, ou melhor, antagonistique dialogue of class voices em que acaba por se sobrepor a voice of a hegemonic class (Jameson, 1981: 79). Neste caso, a voz que determina que a literatura colonial seja exactamente o que ela é: colonial.

[1] A nota curiosa do preceito mimético na literatura ocidental é que já não se trata de imitar a realidade, mas os modelos que asseguram a aceitabilidade dessa imitação. Esta é uma ideia que atravessa diagonalmente as reflexões de Erich Auerbach (1946) e Michel Foucault (1966).
[2] Como antes já foi sistematizado, entendemos por colonialidade literária o conjunto de marcas específicas que no texto traduzem a hegemonização cultural e civilizacional do universo das personagens identificadas com o colono, através de formas discursivas, comportamentais ou psicológicas.
[3] Na definição avançada por esse teórico russo, chronotope, ce qui se traduit, littéralement, par «temp-espace»: la corrélation essentielle des rapports spatio-temporels, telle qu’elle a été assimilée par la littérature (Bakhtine, 1975 : 237). Sobre a origem do termo, esclarece-nos o autor que : Ce terme est propre aux mathématiques; il a été introduit et adapté sur la base de la théorie de la relativité d’Einstein.