sexta-feira, 4 de julho de 2008

Fernão Capelo Gaivota - continuação III



Fernão Gaivota passou o resto dos seus dias sozinho, mas voou muito além dos Penhascos Longínquos. A solidão não o entristecia. Entristecia-o que as outras gaivotas se tivessem recusado a acreditar na glória do vôo que as esperava. Recusaram-se a abrir os olhos e ver.

Aprendia cada vez mais. Aprendeu que um eficiente mergulho a grande velocidade lhe dava o peixe raro e saboroso que vivia três metros abaixo da superfície do mar. Já não precisava de barcos de pesca nem de pão duro para viver. Aprendeu a dormir no ar, estabelecendo um percurso noturno pelo vento do largo, cobrindo cento e cinqüenta quilômetros desde o ocaso até a aurora.

Utilizando o mesmo controle interior, voou através de nevoeiros cerrados e subiu acima deles para céus estonteantes de claridade... enquanto qualquer outra gaivota ficava em terra, conhecendo apenas neblina e chuva.

Aprendeu a dominar os altos ventos do continente e a jantar ali os delicados insetos.

O que outrora desejara para o bando tinha-o agora só para si. Aprendera a voar e não lamentava o preço que pagara por isso. Fernão Gaivota descobriu que o tédio, o medo e a ira são as razões por que a vida de uma gaivota é tão curta, e, sem isso a perturbar-lhe o pensamento, viveu de fato uma vida longa e feliz.

* * *

Vieram à noite, e encontraram Fernão deslizando tranqüilamente e sozinho pelo seu querido céu. As duas gaivotas que surgiram junto às suas asas eram puras como a luz das estrelas e o brilho que delas se desprendia era leve e afável no éter noturno. Mas o mais encantador era a perícia com que voavam, as pontas das asas movendo-se a um centímetro exato e constante das suas.

Sem uma palavra, Fernão submeteu-as ao teste, ao teste a que nenhuma gaivota fora ainda submetida. Torceu as asas, diminuiu a velocidade para um quilômetro e meio por hora e deslizou lentamente, quase parando no ar. Os dois pássaros, irradiantes, deslizaram com ele, suavemente, mantendo-se em posição. Sabiam voar devagar.

Dobrou as asas, e caiu num mergulho de duzentos e oitenta quilômetros por hora. Mergulharam com ele, riscando a noite em formação impecável.

Por fim, transformou diretamente essa velocidade numa longa rotação ascendente, lenta e vertical. Giraram com ele, sorrindo. Regressou ao vôo planado e esperou algum tempo, antes de falar.

— Muito bem. Quem são vocês?

— Nós somos do seu bando, Fernão. Somos suas irmãs. — As palavras eram fortes e calmas. — Viemos para levar você para mais alto, para levá-lo para casa.

— Eu não tenho casa. Nem tenho bando. Fui banido. E estamos agora sobrevoando o pico da Grande Montanha do Vento. Já não posso elevar este velho corpo além dumas centenas de metros.

— Você pode, sim, Fernão. Porque aprendeu. Acabou-se uma escola e chegou a hora de começar outra.

O entendimento raiou nesse momento para Fernão Gaivota, tal como o iluminara sempre em toda a sua vida. Tinham razão. Ele PODIA voar mais alto e ERA tempo de ir para casa.

Lançou um último longo olhar pelo céu, por aquela magnífica terra prateada onde aprendera tanto.

— Estou pronto — disse por fim.

E Fernão Capelo Gaivota elevou-se com as duas gaivotas brilhantes como estrelas para desaparecer num céu perfeitamente escuro.

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