quinta-feira, 17 de julho de 2008

Fernão Capelo Gaivota - continuação IV


Segunda Parte

"Então o paraíso é isto",


pensou, e teve de sorrir de si próprio. Não era muito respeitoso analisar o paraíso precisamente quando se estava voando para entrar nele.

Enquanto se afastava da terra e ultrapassava as nuvens, em formação com as duas gaivotas brilhantes, notou que o seu próprio corpo se tornava tão brilhante como os dela. Em realidade, era o mesmo Fernão Capelo Gaivota que sempre vivera por detrás dos olhos dourados. Só a forma exterior se modificara.

Era como o corpo de uma gaivota, mas voava muito melhor do que o antigo jamais voara. "É maravilhoso", pensava ele. "Com metade do esforço consigo o dobro da velocidade, o dobro da eficiência dos meus melhores dias na terra!"

As penas luziam agora num branco radiante e as asas eram lisas e perfeitas como folhas de prata polida. Deliciado, começou a aprender a conhecê-las, a incutir potência a essas novas asas.

A trezentos e setenta quilômetros por hora, sentiu que se aproximava da velocidade máxima que atingira antes em vôo planado. A quatrocentos e nove quilômetros pensou que voava tão depressa quanto podia voar e, apesar disso, sentiu-se ligeiramente desapontado. Havia um limite para tudo o que o novo corpo podia fazer, e, embora fosse muito mais rápido do que o seu antigo recorde em vôo planado, era ainda um limite. Para o vencer, iria ser necessário um grande esforço. "No paraíso", pensou, "não devia haver limites."As nuvens romperam-se, a escolta gritou-lhe "Feliz aterragem, Fernão", e evaporou-se no ar fino.

Voava sobre um mar em direção a uma linha áspera da costa. Muito poucas gaivotas treinavam os "updrafts" nos penhascos. Bastante desviado para o norte, na linha do horizonte, voava outro pequeno grupo. Novas paragens, novos pensamentos, novas perguntas. "Por que tão poucas gaivotas? O paraíso devia estar repleto de gaivotas! E por que é que, de repente, fiquei tão cansado? As gaivotas no paraíso nunca devem cansar-se, nem dormir."

Onde é que ouvira isso? A lembrança da sua vida na terra sumia-se. A terra fora um lugar onde aprendera muito, é certo, mas os pormenores estavam esmaecidos — qualquer coisa como lutar por comida e ser banido.

A dúzia de gaivotas que treinava junto à costa veio ao seu encontro, sem pronunciar uma palavra. Sentiu apenas que era bem-vindo e que esta era a sua casa. Tinha sido um grande dia para ele, um dia cuja aurora já não recordava.

Dispôs-se a aterrar na praia batendo as asas de modo a ficar suspenso a dois centímetros do chão e deixando-se cair levemente na areia. As outras gaivotas também aterraram, mas nenhuma delas moveu uma única pena. Esvoaçaram no vento com as asas brilhantes bem abertas e, modificando depois a curva das penas, pararam exatamente na mesma altura em que os pés tocaram no chão. Era um controle magnífico, mas, nesse momento, Fernão estava demasiado cansado para experimentar. Adormeceu ali mesmo na praia, sem que se tivesse pronunciado uma palavra.

Nos dias que se seguiram, Fernão verificou que neste lugar havia tanto para aprender acerca do vôo como houvera na vida que deixara para trás. Mas com uma diferença. Aqui havia gaivotas que pensavam como ele. Para cada uma delas o mais importante na vida era olhar em frente e alcançar a perfeição naquilo que mais gostavam de fazer: voar. Todas elas eram aves magníficas e passavam hora após hora praticando vôo, fazendo experimentos de aeronáutica avançada.

Durante muito tempo Fernão esqueceu-se do mundo de onde viera, daquele lugar onde o bando vivia com os olhos completamente cerrados à felicidade de voar, usando as asas apenas como um meio de encontrar alimento e lutar por ele. Mas, uma vez ou outra, só por um momento, lembrava-se.

Lembrou-se uma manhã, quando estava a sós com o instrutor, enquanto descansavam na praia depois de uma sessão de "snap rolls" de asa dobrada.

— Onde estão os outros, Henrique? — perguntou em silêncio, já familiarizado com a telepatia fácil, que estas gaivotas usavam em vez dos gritos e guinchos. — Por que somos tão poucos aqui? No lugar de onde eu vim havia...

— ... milhares e milhares de gaivotas. Eu sei. — Henrique abanou a cabeça. — A única resposta que encontro, Fernão, é que você é um daqueles pássaros que se encontram num milhão. Quase todos nós percorremos um longo caminho. Fomos de um mundo para outro, que era praticamente igual ao primeiro, esquecendo logo de onde viéramos, não nos preocupando para onde íamos, vivendo o momento presente. Tem alguma idéia de por quantas vidas tivemos de passar até chegarmos a ter a primeira intuição de que há na vida algo mais do que comer, ou lutar, ou ter uma posição importante dentro do bando? Mil vidas, Fernão, dez mil! E depois mais cem vidas até começarmos a aprender que há uma coisa chamada perfeição, e ainda outras cem para nos convencermos de que o nosso objetivo na vida é encontrar essa perfeição e levá-la ao extremo. A mesma regra mantém-se para os que aqui estão agora, é claro: escolheremos o nosso próximo mundo através daquilo que aprendermos neste. Não aprender nada significa que o próximo mundo será igual a este, com as mesmas limitações e pesos de chumbo a vencer.

Abriu as asas e, voltando-se de frente para o vento, continuou:

— Mas você, Fernão, aprendeu tanto de uma só vez que não teve de passar por mil vidas para chegar a esta.

Um instante depois estavam de novo no ar, treinando. A formação "point roll" era difícil, pois na posição invertida Fernão tinha de pensar de cabeça para baixo, virando a curva da asa ao contrário, mas virando-a em perfeita harmonia com a do seu instrutor.

— Vamos tentar outra vez — repetia Henrique, incansável. — Vamos tentar outra vez. — E, finalmente: — Está bom.

E começaram a praticar "loops" exteriores.

Uma noite, as gaivotas que não praticavam o vôo noturno juntaram-se na praia, para pensar. Fernão reuniu toda a sua coragem e dirigiu-se à gaivota mais velha, que, segundo diziam, devia passar em breve para outro mundo.

— Chiang... — começou ele, um pouco nervoso.

A velha gaivota olhou-o com bondade.

— Diga, meu filho.

Em vez de enfraquecer, a idade dera força ao Mais Velho. Em vôo batia qualquer gaivota do bando, e aprendera perícias de que os outros só muito lenta e gradualmente começavam agora a aperceber-se.

— Chiang, este mundo não é o paraíso, é?

O Mais Velho sorriu ao luar:

— Você está aprendendo outra vez, Fernão Gaivota.

— Bem, e o que é que acontece depois disso? Para onde vamos? Não há um lugar chamado paraíso?

— Não, Fernão, não há tal lugar. O paraíso não é um lugar nem um tempo. O paraíso é ser perfeito. — Ficou em silêncio durante um momento. — Você voa com muita velocidade, não voa?

— Eu... Eu gosto da velocidade — respondeu Fernão, surpreendido mas orgulhoso de que o Mais Velho o tivesse notado.

— Você começará a se aproximar do paraíso no momento em que alcançar a velocidade perfeita. E isso não é voar a mil e quinhentos quilômetros por hora, nem a um milhão e quinhentos mil, nem voar à velocidade da luz. Porque nenhum número é um limite, e a perfeição não tem limites. A velocidade perfeita, meu filho, é estar ali.

Sem avisar, Chiang evaporou-se e apareceu à borda da água, à distância de quinze metros, numa centelha de instante. Depois evaporou-se outra vez e surgiu ao lado de Fernão, no mesmo milésimo de segundo.

— É divertido — comentou.

Fernão ficou atordoado. Esqueceu-se de fazer perguntas acerca do paraíso.

— Como é que se faz isso? O que é que se sente? A que distância se pode ir?

— Desde que você o deseje, pode ir a qualquer lugar e a qualquer momento — disse-lhe o Mais Velho. — Que me lembre, já fui a todos os lugares e a todos os momentos. — Olhou o mar, pensativo. — É estranho... As gaivotas que desprezam a perfeição por amor ao movimento não chegam a parte alguma, devagar. As que ignoram o movimento por amor à perfeição chegam a toda parte, instantaneamente. Lembre-se, Fernão, o paraíso não é um lugar nem um tempo, porque lugar e tempo não significam nada. O paraíso é...

— Pode ensinar-me a voar assim?

Fernão Gaivota tremia de ansiedade por conquistar outro desconhecido.

— Claro, se você deseja aprender.

— Desejo, sim! Quando podemos começar?

— Se quiser, podemos começar já.

— Eu quero aprender a voar assim — disse Fernão, um brilho estranho a iluminar-lhe os olhos. — Diga-me o que devo fazer.

Chiang falou devagar, observando cuidadosamente a gaivota mais nova.

— Para voar à velocidade do pensamento, para onde quer que seja, você deve começar por saber que já chegou...

Segundo Chiang, o truque estava em Fernão deixar de se ver aprisionado dentro de um corpo limitado cujas asas abertas abrangiam a distância de um metro e cuja eficiência podia ser traçada num mapa.

O truque estava em saber que a sua verdadeira natureza vivia tão perfeita como um número não escrito, em toda parte e ao mesmo tempo, através do espaço e do tempo.

Fernão, empenhou-se em conseguir isso, dia após dia, desde antes da aurora até depois da meia-noite. Mas, por mais que se esforçasse, não conseguia afastar-se um milímetro do seu lugar.

— Esqueça a fé — dizia-lhe Chiang repetidamente. — Você não precisa de fé para voar; precisou, sim, compreender o que era voar. Isto é a mesma coisa. Tente outra vez...

Mas um dia em que Fernão estava na praia, de olhos fechados, concentrando-se, compreendeu num relâmpago o que Chiang tentava dizer-lhe.

— Mas é verdade! Eu SOU uma gaivota perfeita, ilimitada!

Sentiu um grande choque de alegria.

— Bom! — exclamou Chiang, com a voz vibrando de triunfo.

Fernão abriu os olhos. Estava sozinho com o Mais Velho numa praia completamente diferente — havia árvores até a beira da água, e dois sóis amarelos, girando sobre as cabeças de ambos.

— Por fim você conseguiu perceber a idéia — disse Chiang. — Mas ainda precisa trabalhar o seu controle...

Fernão estava atordoado.

— Onde estamos?

Obviamente não impressionado pelo estranho ambiente, o Mais Velho desprezou a pergunta.

— Estamos num planeta qualquer, evidentemente, com um céu verde e uma estrela dupla por sol.

Fernão soltou um grito de alegria, o primeiro som que emitia desde que deixara a terra.

— DEU CERTO!

— Mas claro que deu certo, Fernão — disse Chiang. — Dá certo sempre, quando se sabe o que se está fazendo. Agora, acerca do seu controle...

Um comentário:

  1. Li esse livro quando tinha uns 14 anos. Faz um tempo já. É muito bom.

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