Ao verdadeiro Fernão Capelo Gaivota
que vive em todos nós.
Primeira Parte
Era de manhã
e o novo Sol cintilava nas rugas de um mar calmo.
A dois quilômetros da costa, um barco de pesca acariciava a água. Subitamente, os gritos do Bando da Alimentação relampejaram no ar e despertaram um bando de mil gaivotas, que se lançou precipitadamente na luta pelos pedacinhos de comida. Amanhecia um novo dia de trabalho.
Mas lá ao fundo, sozinho, longe do barco e da costa, Fernão Capelo Gaivota treinava. A trinta metros da superfície azul brilhante, baixou os seus pés com membranas, levantou o bico e tentou a todo custo manter suas asas numa dolorosa curva. A curva fazia com que voasse devagar, e então sua velocidade diminuiu até que o vento não fosse mais que um ligeiro sopro, e o oceano como que tivesse parado, abaixo dele. Cerrou os olhos para se concentrar melhor, susteve a respiração e forçou... só... mais... um... centímetro... de... curva... Mas as penas levantaram-se em turbilhão, atrapalhou-se e caiu.
Como se sabe, as gaivotas nunca se atrapalham, nunca caem. Atrapalhar-se no ar é para elas desgraça e desonra.
Mas Fernão Capelo Gaivota — sem se envergonhar, abrindo outra vez as asas naquela trêmula e difícil curva, parando, parando... e atrapalhando-se outra vez! — não era um pássaro vulgar.
A maior parte das gaivotas não se preocupa em aprender mais do que os simples fatos do vôo — como ir da costa à comida e voltar. Para a maioria, o importante não é voar, mas comer. Para esta gaivota, contudo, o importante não era comer, mas voar. Antes de tudo o mais, Fernão Capelo Gaivota adorava voar.
Esta maneira de pensar não o popularizava entre os outros pássaros, como veio a descobrir. Até os próprios pais se sentiam desanimados ao vê-lo passar dias inteiros fazendo centenas de vôos rasantes, sozinho.
Ele não sabia por que, por exemplo, quando voava sobre a água a uma altitude menor que a metade do comprimento das suas asas aberta, podia manter-se no ar mais tempo, com menos esforço. Esses vôos rasantes não terminavam com a habitual amaragem de pés hirtos que feriam a água. Ele amarava de mansinho, os pés apertados contra o corpo, deixando apenas um rasto borbulhante. Quando começou a treinar as aterragens deslizantes na praia, e a contar em passos o comprimento do rasto na areia, os pais começaram a ficar deveras desanimados.
— Por quê, Fernão, POR QUÊ? — perguntava-lhe a mãe. — Por que é que lhe custa tanto ser como o resto do bando? Por que você não deixa os vôos baixos para os pelicanos, para o albatroz? Por que não come? Filho, você está que é só pena e osso!
— Não me importo de estar só pena e osso, mãe. Eu só quero saber o que posso fazer no ar e o que não posso, é tudo. Só quero saber isso.
— Escute, Fernão — disse-lhe o pai com bondade. — O inverno não está longe. Haverá poucos barcos e o peixe da superfície irá para zonas mais profundas. Se você tem necessidade de estudar, então estude o alimento e como consegui-lo. Esta história dos vôos está muito certa, mas você tem de pensar que não pode comer um vôo rasante. Não esqueça que a razão por que você voa é comer.
Fernão baixou a cabeça, obediente. Nos dias seguintes tentou comportar-se como as outras gaivotas; tentou de fato, gritando e lutando como o resto do bando, em volta dos pontões e dos barcos de pesca, mergulhando sobre restos de peixe e de pão. Mas não conseguiu.
"Não faz sentido", pensava ele largando deliberadamente uma anchova suculenta, que lhe custara bastante a ganhar, aos pés de uma velha gaivota esfomeada que o acossava. "Não faz sentido... Eu podia ganhar todo este tempo aprendendo a voar. Há tanto que aprender!"
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