Quando voltou a si, a noite já era velha. Flutuava à superfície negra do oceano, encharcado em luar. As asas eram enormes e esfarrapadas barras de chumbo, mas o fracasso pesava-lhe ainda mais nas costas. Desfalecido, desejou que o peso fosse bastante para o arrastar docemente até o fundo, e acabar com tudo.
Ao afundar-se na água, uma estranha voz cavernosa soou dentro dele. "Não há nada a fazer. Sou uma gaivota. A minha natureza limita-me. Se estivesse destinado a aprender tanto acerca do vôo, teria mapas em vez de miolos. Se estivesse destinado a voar a altas velocidade, teria asas curtas como o falcão e viveria de ratos em vez de peixes. O meu pai tem razão. Devo esquecer esta loucura. Devo regressar ao seio do bando e contentar-me com o que sou, uma pobre e limitada gaivota."
A voz sumiu-se e Fernão acordou. Uma gaivota passa a noite em terra... A partir desse momento, jurou tornar-se uma gaivota normal. Seriam todos felizes.
Morto de cansaço, arrancou-se da água densa e voou para terra, grato pelo que aprendera: a forma de poupar trabalho voando a baixa altitude.
"Mas não!", pensou. "O que eu era acabou-se; acabou-se tudo o que aprendi. Sou uma gaivota como outra qualquer e voarei como uma delas." Assim, subiu dolorosamente a trinta metros e bateu as asas com mais força, apressando-se a chegar a terra.
Sentiu-se melhor depois da decisão de ser apenas mais um dos do bando. Daí em diante não haveria mais laços a prendê-lo à força que o levara a aprender, não haveria mais desafios nem mais fracassos. E era bom deixar de pensar, e voar no escuro em direção às luzes da praia.
"ESCURO!" A voz irreal estalou em alarma. "AS GAIVOTAS NUNCA VOAM NO ESCURO!"
Mas Fernão não prestava atenção e não a ouvia. "É bom", pensava. "A Lua e as luzes brincando na água, atirando a pequenos lampejos, e tudo tão calmo, tão parado..."
"Desça! As gaivotas nunca voam no escuro! Se estivesse destinado a voar no escuro teria olhos de coruja! Teria mapas em vez de miolos! Teria as asas curtas do falcão!"
Envolto na noite, a trinta metros no ar, Fernão Capelo Gaivota... pestanejou. A dor e as resoluções desvaneceram-se.
Asas curtas. AS ASAS CURTAS DO FALCÃO!
"É isso! Como fui louco! Tudo o que preciso é de uma asinha curta, tudo o que preciso é fechar as asas o mais que puder e voar só com as pontas! ASAS CURTAS!"
Subiu a seiscentos metros acima do negro mar e, sem pensar um momento no fracasso ou na morte, apertou as asas de encontro ao corpo, deixou que apenas as pontas das asas cortassem o vento como lâminas de punhal e mergulhou na vertical.
O vento era rugido de um monstro na sua cabeça. Cem quilômetros por hora, cento e trinta, cento e oitenta, e ainda mais depressa. A tensão nas asas, agora que se deslocava à velocidade de duzentos quilômetros por hora, não chegava a ser tão forte como antes, a cento e trinta, e bastou-lhe mover só um bocadinho a ponta das asas para sair da queda sem dificuldade e disparar por cima das ondas como uma bala cinzenta de canhão apontada à lua.
Semicerrou os olhos para se proteger do vento e regozijou-se. Duzentos quilômetros por hora! E controlados! Se mergulhasse de mil e quinhentos metros, em vez de seiscentos, que velocidade...
As promessas de momentos antes estavam esquecidas, varridas por aquele enorme vento rápido. E, contudo, não sentia remorso por não cumprir as promessas que fizera a si próprio. "Essas promessas são só para as gaivotas que aceitam o vulgar. Quem conseguiu chegar à excelência da sua aprendizagem não tem necessidade desse tipo de promessa."
Quando o sol começou a romper, Fernão Gaivota treinava outra vez. Vistos de mil e quinhentos metros, os barcos de pesca eram pontinhos escuros no azul liso da água, e o Bando da Alimentação uma apagada nuvem de átomos de poeira, movendo-se em círculo.
Ele estava vivo, ligeiramente trêmulo de prazer, orgulhoso de que o seu medo estivesse dominado. Então, sem cerimônias, cingiu-se com as asas anteriores, estendeu as curtas, colocando as pontas em ângulo, e mergulhou diretamente em direção ao mar.
Quando passou os mil e duzentos metros, deslocava-se à velocidade máxima e o vento era um sólido muro de som contra o qual não podia mover-se mais depressa. Voava agora em pleno mergulho, à velocidade de trezentos e vinte quilômetros por hora. Engolia em seco, sabendo que se as asas se abrissem àquela velocidade ficaria reduzido a um milhão de pequenos fragmentos de gaivota. Mas a velocidade era poder, e era alegria e beleza pura.
Começou o desvio a trezentos metros. As pontas das asas vibravam e ressoavam contra o vento gigante. O barco e a multidão de gaivotas cresciam à velocidade de um meteoro e lançavam-se diretamente no seu caminho.
Não podia parar; e ainda nem sabia como iria virar àquela velocidade. A colisão seria morte instantânea. Era melhor fechar os olhos.
Aconteceu então nessa manhã, logo a seguir ao nascer do sol, que Fernão Gaivota atravessou o Bando da Alimentação como uma bala, riscando o céu a trezentos quilômetros por hora, de olhos fechados, num tremendo rugido de vento e penas. A Gaivota da Fortuna sorriu-lhe desta vez e ninguém foi ferido.
Na altura em que espetou o bico para o céu, ainda frechava o ar a duzentos e quarenta quilômetros por hora. Quando por fim diminuiu para trinta e voltou a abrir as asas, o barco era apenas uma migalha no mar, mil e duzentos metros abaixo.
Na sua mente latejava o triunfo. Velocidade máxima! Uma gaivota a TREZENTOS E VINTE QUILÔMETROS POR HORA! Era uma vitória, o maior momento da historia do bando; e, nesse mesmo momento, nasceu uma nova era na vida de Fernão Gaivota. Voando para a sua solitária zona de treino, encolhendo as asas para um mergulho de dois mil e quatrocentos metros, dispôs-se imediatamente a descobrir como virar.
O movimento de um centímetro numa única pena da ponta da asa produzira uma curva larga e suave, a tremenda velocidade, descobriu ele. Contudo, antes de descobrir isto, verificou que, se movesse mais de uma pena àquela velocidade, era disparado em movimento giratório como uma bala de espingarda... E Fernão fez as primeiras acrobacias aéreas de uma gaivota viva.
Nesse dia não perdeu tempo conversando com as outras gaivotas e voou até depois do pôr-do-sol. Descobriu o "loop" , o "slow roll", o "point roll", o "inverted spin", o "gull bunt", o "pinwheel".
Quando Fernão Gaivota se juntou ao bando na praia era já noite cerrada. Estava tonto e tremendamente cansado. Apesar disso, não resistiu ao prazer de voar num "loop" para a terra e de fazer um "snap roll" antes de aterrar. "Quando souberem do triunfo", pensava, "ficarão loucos de alegria. Como vale a pena agora viver! Em vez da monótona labuta de procurar peixe junto dos barcos de pesca, temos uma razão para estar vivos! Podemos subtrair-nos à ignorância, podemos encontrar-nos como criaturas excelentes, inteligentes e hábeis. Podemos ser livres! PODEMOS APRENDER A VOAR!"
Os anos vindouros brilhavam e trauteavam promessas.
As gaivotas estavam reunidas em conselho quando ele aterrou, e, segundo parecia, já estavam em reunião havia algum tempo. Na realidade, estavam à espera dele.
— Fernão Capelo Gaivota! É chamado ao centro! — As palavras do Mais Velho foram pronunciadas no tom mais solene. Ser chamado ao centro só podia significar grande vergonha ou grande honra. Ser chamado ao centro por honra era a maneira como eram designados os principais chefes das gaivotas. "Claro", pensou, "o Bando da Alimentação esta manhã viu o triunfo! Mas eu não quero honras. Não me interessa ser chefe. Só quero partilhar o que descobri, mostrar a todos esses horizontes que estão à nossa frente." Avançou um passo.
— Fernão Gaivota — disse o Mais Velho — é chamado ao centro por vergonha aos olhos das gaivotas suas semelhantes!
Foi como se lhe batessem com uma tábua. Os joelhos enfraqueceram-lhe, um enorme rugido ensurdeceu-o. "Ser chamado ao centro por vergonha? Impossível! O triunfo! Eles não podem compreender! Estão errados, estão errados!"
— ... pela sua desastrada irresponsabilidade — entoava a voz solene —, por violar a dignidade e a tradição da família das gaivotas...
Ser chamado ao centro por vergonha significava que seria banido da sociedade das gaivotas, desterrado para uma vida solitária nos Penhascos Longínquos.
— ... um dia Fernão Capelo Gaivota aprenderá que a irresponsabilidade não compensa. A vida é o desconhecido e o desconhecível, mas não podemos esquecer que estamos neste mundo para comer e para nos mantermos vivos tanto quanto pudermos.
Uma gaivota nunca contesta o conselho do bando, mas a voz de Fernão ergueu-se gritando:
— Irresponsabilidade? Meus irmãos! Quem é mais responsável do que uma gaivota que descobre e desenvolve um significado, um propósito mais elevado na vida? Passamos mil anos lutando por cabeças de peixe, mas agora temos uma razão para viver, para aprender, para descobrir, para sermos livres! Dêem-se uma oportunidade, deixem-me mostrar-lhes o que descobri...
O bando mostrou-se impenetrável como a pedra.
— Quebrou-se a irmandade — entoaram em conjunto todas as gaivotas, e, em perfeito acordo, taparam solenemente os ouvidos e viraram-lhe as costas.
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