terça-feira, 22 de julho de 2008

Mais Eduardo White

Um texto fantástico, esclarecedor e que, apesar de falar de Moçambique, poderia muito bem estar falando do Brasil... É a globalização da vergonheira!!!
Um P.S.: coloquei umas notas de rodapé para esclarecer alguns termos tipicamente moçambicanos.

O silêncio tem dentro muito barulho, mas o País continua a falar mais ao telefone. Com quem fala, então, o País? Não é progresso isso? Quem duvida que na era da casca de árvore e da pedra ainda, em quase todo o significativo território nacional, em vez do poço de água que faz falta abrir seja levantada uma antena que faz o País dar um salto mortal continuado na lista dos mais pobres do mundo e ficar último na outra lista à frente?

Se falta o medicamento para a malária nos hospitais e não há crédito nos bancos de sangue não é bonito sermos em África o país com mais internautas? Não é desenvolvimento isso? Os bólides nas ruas não mostram a prosperidade da Nação ou é apenas um mero indicativo para o investidor ver as potencialidades?

E quem são esses que gritam que as estradas das nossas capitais andam cheias de buracos? Arre!! Estão contra quem afinal? Que interesses servem eles? Então esses mentecaptos da oposição mais esburacados que as próprias estradas não vêem que só as esburacadas vias justificam os luxuosos foure bai foures[1] das capitais?

Estavam então a pensar que os dirigentes, que os Latifes, que os Costas e os Cossas haveriam de passear no domingo de motorizada[2]? Isto não é Maringué não senhor, calma lá. Aqui não se perdem óculos em debandada na motorizada, aqui, nesta zona agora deslibertada da humanidade, motorizada e bicicleta é só para se ver por uns binóculos.

Passam a vida a dizer que o Povo vê o dirigente a engordar. Quem disse a esses trogloditas da oposição que dirigente engorda? Dirigente não engorda, não senhor, enche só. E sabem eles das dificuldades disso, ou são inveja essas infundamentadas visões? Não sabem esses da maioria que o Povo não precisa nem de motorizada nem de bicicleta? Que a enxada é que o Povo está mesmo a precisar?

Povo existe para trabalhar ou para passear? Digam lá então? Povo existe para trabalhar, e se a riqueza nacional não é mais é porque o Povo é preguiçoso. É ou não é verdade?

Esta coisa da população fugir do campo para a cidade é o quê? Não é isso mesmo? Se o Povo visse o exemplo do dirigente não voltava para o campo? Pensem lá vocês com o dentro das vossas cabeças. Dirigente não dá exemplo bom? Mas esses estupores da oposição vão vir dizer que o dirigente vai para o campo porque tem projectos, tem financiamento bancário, tem parceria e junta sinergias. O Povo se não tem isso tudo é porque não pensa. Mas Povo não existe para ter projecto como o dirigente, povo existe para ser projecto do dirigente. E o Povo mesmo sabe disso.

Anda por aí o boato de que a população não foi votar nas autárquicas porque o governo deu tolerância de ponto. Mas têm o quê contra a população essa gente?

Povo quando tem tolerância de ponto vai cumprir os seus deveres cívicos?
Não!

Povo quando tem tolerância de ponto faz o quê afinal?
Vai beber nos bares, faz festa de família com verduras e galinha a ouvir na rádio qual é o resultado desse jogo chamado eleições. Mas eu pergunto a esses agitadores, como é que o povo vai votar num dirigente que está sempre a rir enquanto ele está a chorar? Como? Digam lá então?

Mas eu disse que o silêncio tem dentro muito barulho. E não vale a pena dizerem que eu sou um xiconhoca porque o povo agora está cansado e quando não vota não é porque está a beber. Não, não é. Esses tais de candidatos são candidatos a quê? A iguais ou a parecidos? A dirigentes ou a dirigidos? Eles também não sabem.

(…)

Os originários não têm direito a apanhar os papéis principais. Ahhh, camarada poder, isto é abuso, palavra de honra. Nós perguntamos em meio a tanta corrupção: esses bais, esses mulungos[3] todos arranjam dinheiro aonde para tantas quintas, para tantas fábricas, tantas sociedades anónimas de responsabilidade ilimitada, tantas participações financeiras em projectos sustentáveis? Sozinho ou com conivência de alguém?

Não são os moçambicanos 100% que vão fumar charuto de Cuba no Sheik, ter Mercedes de último modelo com nome de amante na matrícula e quintas[4] com muros a esconder os telhados das casas? Quando? Quando vão ter corrente de ouro grossa na garganta?

Assim não vale, camarada poder, assim não vale. Porque ficam só os moçambicanos estafetas desse novo-riquismo desnacional? Um País assim pode desenvolver? Com tantos meios descendentes a roubar nas repartições públicas, nos projectos beneméritos e outros afins? Pode?

Mas nossos mais renomados analistas cêeniacos vieram dizer-nos que o Povo não foi votar por ver tudo isso. O Povo não foi votar porque o Ministério do Trabalho deu tolerância de ponto para ele bichar[5]. Quer dizer, o Povo desconsciente, ao invés de ir escolher seu candidato, foi candidatar a sua escolha nas urnas médias da 2M e da Laurentina[6]. Isso não é sabotagem para uns e fraude para os outros. Povo não tem consciência para ser objector de consciência. Povo não tem cabeça para pensar nessas coisas de política. A cabeça do Povo é só para votar no desejo de voto dos políticos.

O País está muito bom, não é o que toda a gente vê? Não é o que toda a gente sente? O País tem mais stands de carros, tem mais imobiliárias a vender moradias, o país tem muitas empresas de consultoria, não está bom o país assim? Isto não é sinónimo de desenvolvimento? Não há mais clínicas particulares? Não há mais lodjes para o turismo da banana? Não há mais pedidos de visto nos consulados para se passarem os fins-de-semana no exterior? E então as escolas públicas não estão a crescer? Não há mais população estudantil nos bancos das escolas?

E os professores e os enfermeiros não ganham muito melhor? Os doentes não são consolados com simpatia e carinho nos postos de socorro dos nossos hospitais? E não há mais carros de bombeiros e ambulâncias e autocarros[7] públicos? Nossos agentes de autoridade não são exemplo de entrega e abnegação à ordem pública?

Não há mais prostitutas nas ruas? Não aumentaram as conferências e os seminários para se discutir o indiscutível e o que já se sabe? Não tem mais estudantes a casar e habitar suas flats tipo 1[8]? Não é progresso isso? Os camaradas da oposição não vão mais felizes fazer discurso na assembleia com gordura na boca? Não usam balalaica agora? Não se mata mais agora nas nossas ruas e não tem mais bandidos a falar nos celulares? A cocaína e o haxixe não são agora mais extensivos aos consumidores? Não são impunes as suas pedradas? Dizer o contrário estamos a mentir?

O País está muito bom, tem a consciência desprendida, tem a irreverência desarrumada. As sirenes estão a tocar mais agora, há mais Kalachnikoves nas janelas dos automóveis e os tiros que não se falham descascam amendoim de manhã nos componentes do Estrela Vermelha[9]. Tem muito chingondo sem emprego a vender lenços de assoar, mas chingondo não sabe, coitadinho, chingondo não sabe que o país, ao contrário dele, deixou de chorar há maningue[10] tempo.

[1] 4 x 4 – carros «todo terreno». Calculo que 80% dos carros em Moçambique sejam deste tipo.
[2] motocicleta
[3] Mulungo: branco, senhor
[4] Quintas: sítios, chácaras.
[5] Bichar: fazer fila (de «bicha» = fila).
[6] 2M e Laurentina: cervejas fabricadas em Moçambique.
[7] Ônibus.
[8] Tipo 1: com 1 quarto (como tipo 2: com 2 quartos…)
[9] Time de futebol de Maputo.
[10] Maningue: muito.

6 comentários:

  1. Achei lindo o texto e achei lindo Moçambique ser isso aí.
    Qualquer semelhança com o Brasil de ontem não será mera coincidência...

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  2. O texto é bastante esclarecedor sobre o que acontece em Moçambique, Clóvis tem razão quanto à semelhança. Incrível é que o autor tem branco no nome, mas nasceu com alma negra: vai à luta em defesa de sua gente.
    Beijos,

    Conceição

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  3. Que texto rico, moça Aline!! E que blog bom o seu! Venho "made in" grupo Poetas Independentes. Descobri seu blog e estou garimpando tesouros, lendo seus textos! Muito bons!!=]

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  4. Adorei este blog,mtu interessante, e mtu bonito.
    Parabéns!!!

    bjO

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