sábado, 9 de agosto de 2008

Fernão Capelo Gaivota - Continuação V


Quando regressaram já estava escuro. As outras gaivotas olhavam Fernão com o assombro nos olhos dourados. Tinham-no visto desaparecer do lugar onde há tanto criara raízes. Suportou as felicitações por menos de um minuto.

— Eu sou o mais novo aqui! Estou apenas começando! Sou eu quem tem de aprender com vocês.

— Tenho as minhas dúvidas, Fernão — disse Henrique, ali próximo. — Você tem menos medo de aprender do que qualquer outra gaivota que conheci em dez mil anos.

O bando ficou em silêncio e Fernão moveu-se embaraçado.

— Se você quiser, podemos começar a trabalhar, com tempo — disse-lhe Chiang —, até você poder voar no passado e no futuro. E então estará preparado para começar o mais difícil, o mais poderoso e o mais divertido de tudo. Estará preparado para voar no além e conhecer o significado das palavras "bondade" e "amor".

Passou-se um mês, ou algo que se pareceu com um mês, e Fernão aprendeu num ritmo tremendo. Aprendera sempre depressa, com a experiência vulgar, e agora, como aluno especial do próprio Mais Velho, fixou novas idéias, como um aerodinâmico computador de penas.

Mas chegou o dia em que Chiang se evaporou. Falara calmamente a todos, exortando-os a nunca deixarem de aprender, de treinar e de lutar por compreenderem cada vez melhor o perfeito e invisível principio de toda a vida. Então, enquanto falava, suas penas foram-se tornando cada vez mais brilhantes, e acabaram por ficar tão brilhantes que nenhuma gaivota o conseguia olhar.

As suas últimas palavras foram para Fernão:
— Continue trabalhando no amor, Fernão.
Quando puderam olhar outra vez, Chiang havia desaparecido.
À medida que os dias se passavam, Fernão surpreendia-se pensando no tempo e na terra de onde viera. Se ele tivesse sabido que havia só um décimo, só um centésimo do que aprendera aqui, como a vida teria sido mais válida! Ficou na areia, pensando se haveria alguma gaivota lá atrás lutando por quebrar os seus limites, compreendendo o que realmente significava voar: não um simples meio de locomoção para arrancar uma migalha de pão a um barco a remos. Talvez até houvesse uma que tivesse sido banida por lançar a verdade à cara do bando. E quanto mais Fernão treinava os seus exercícios de bondade, quanto mais trabalhava para compreender a natureza do amor, mais desejava regressar à terra. Porque, apesar do seu passado solitário, Fernão Gaivota nascera para ser instrutor, e a sua maneira de demonstrar o amor era dar um pouco da verdade que ele próprio descobrira a uma gaivota que apenas pedisse uma oportunidade para vislumbrar essa verdade.
Henrique, agora adepto do vôo velocidade pensamento, ao mesmo tempo que ajudava os outros a aprender, tinha dúvidas.
— Fernão, você foi banido uma vez. O que é que o leva a pensar que alguma das gaivotas do seu tempo o ouviria agora? Você conhece o provérbio, que é bem verdade: "Vê mais longe a gaivota que voa mais alto". As gaivotas que você deixou estão no solo, gritando e lutando umas com as outras. Estão a mil e quinhentos quilômetros do paraíso, e você diz que lhes quer mostrar o paraíso, de onde estão! Fernão, elas nem vêem a própria ponta das asas! Fique aqui. Fique aqui ajudando as novas gaivotas, essas que estão suficientemente cultivadas para compreenderem o que você lhes tem a dizer. — Calou-se um momento, e depois disse: — Que teria acontecido se Chiang tivesse regressado aos velhos mundos dele? Onde estaria você hoje?
A última frase era significativa, e Henrique tinha razão. "Vê mais longe a gaivota que voa mais alto."
Fernão ficou trabalhando com os novos pássaros que chegaram e que se mostraram muito inteligentes e rápidos na aprendizagem das suas lições. Mas o velho sentimento voltou e ele não podia impedir-se de pensar que talvez houvesse uma ou duas gaivotas na terra que também pudessem aprender. Quanto mais não saberia ele agora se Chiang tivesse ido ao seu encontro no dia em que fora banido!
— Henrique, tenho de regressar! — acabou por dizer. — Os seus alunos vão bem. Podem ajudar você a ensinar os que chegarem.
Henrique suspirou, mas não discutiu.
— Acho que vou sentir a sua falta, Fernão — foi tudo o que disse.
— Henrique, que vergonha! — exclamou Fernão, reprovador. — Não seja tolo! Afinal, o que é que estamos treinando todos os dias? Se a nossa amizade depende de coisas como o espaço e o tempo, então, quando finalmente ultrapassarmos o espaço e o tempo, teremos destruído a nossa fraternidade! Mas, ultrapassado o espaço, tudo o que nos resta é Aqui. Ultrapassado o tempo, tudo o que nos resta é Agora. E entre Aqui e Agora você não crê que poderemos ver-nos uma ou duas vezes?
Henrique Gaivota riu sem vontade e disse-lhe brandamente:
— Você é um louco. Se alguém conseguir mostrar a um pássaro no chão como ver a mil e quinhentos quilômetros, esse alguém tem de ser Fernão Capelo Gaivota. — Olhou a areia. — Adeus, Fernão, meu amigo.
— Adeus, Henrique, voltaremos a encontrar-nos.
Dito isso, Fernão fixou no pensamento a imagem dos grandes bandos de gaivotas das costas doutros tempos e, com a facilidade do treino, soube que não era só ossos e penas, mas sim uma idéia perfeita de liberdade e vôo que nada conseguia limitar.

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