quinta-feira, 17 de maio de 2007

Animais? Humanos?


Ontem à noite mais uma vez tentei ignorar os gritos de um cão atropelado. Não consegui. Não eram gemidos nem latidos, eram gritos de dor, de desespero, de abandono. Eu tirei as mãos do computador, arranquei os óculos da cara e fiquei rezando para que o cão morresse logo. Dormi com a imagem do pobre animalzinho encolhido em qualquer canto, sozinho, sofrendo, sentindo a solidão das suas feridas.


Em outro tempo, em outro lugar, teria saído correndo em busca do acidentado, teria chamado o veterinário, teria cuidado do seu sofrimento e tentado amenizar seu abandono. Mas aqui, não posso. Todos os dias são dezenas de cães atropelados, maltratados, abandonados e eu rezo para que todos eles morram logo, como se reza para que o sofrimento de um doente terminal acabe.


A impotência é o pior dos sentimentos. Dizer «não posso» é a pior das frases. Mas, realmente, não posso.


Enquanto tento dormir, crio imagens de um hospital canino destinado a tratar destas emergências. Um carro a vagar pela cidade dia e noite atrás de cães abandonados que os recolhe e os leva a um abrigo. Sonho em ganhar na loteria para comprar um sítio grande o suficiente para acolhê-los e cuidá-los e para ter dinheiro suficiente para dar-lhes todos os mimos que dou aos meus dois cães.


Meus dois cães não sabem como são afortunados. No fundo, não têm mais do que merecem. Têm água limpa, comida abundante, banhos, remédios e muito amor. Mas o que é isso perto de tudo o que eles me dão? Não, eu não lhes dou nada de graça, recebo em dobro a alimentação e os cuidados que lhes dou.

Voltando aos cães que não são meus… Eles são do mundo, das ruas, filhos da miséria humana. Miséria da alma humana que despreza, judia e mata sem remorso criaturas indefesas que só têm amor para dar.

Às vezes penso que seria mais humano matá-los a todos, colocá-los em uma grande câmara de gás e acabar com seu sofrimento. Mas não, diriam alguns – câmara de gás não é humano, é desumano.

Aí está um conceito que não consigo entender. Utiliza-se a expressão «humano» como sinónimo de bondade; utiliza-se «animal» como sinónimo de maldade. Está tudo trocado.

Ora os ditos humanos destroem, poluem, inventam guerras em nome da cobiça e endurecem cada vez mais seus corações. A morte é cada vez mais banalizada nos noticiários. Ferem e fazem sofrer por motivos mesquinhos e ainda têm a petulância de justificar que o fazem por humanidade. Exactamente! As guerras, as fomes, a desolação do planeta, tudo é feito por humanidade!

E os animais? Ah, sim, são perigosos. Cobras picam e matam; elefantes arrasam colheitas inteiras com seus pesados pés; leões atacam sem piedade; jacarés engolem pés e mãos e pessoas inteiras; ursos polares competem na pesca com esquimós; pássaros comem as sementes das lavouras… Animais! Terríveis criaturas que simplesmente defendem seu território de invasores ou vão em busca de comida porque sua comida foi destruída pela humanidade.

Outro dia, encontrei uma cobra mamba no meu quintal. Era filhote, da grossura do meu dedo e com uns 20 centímetros. Relutei em matá-la, afinal, muito antigamente, no lugar desta casa havia um mato espesso onde ela podia esconder-se e caçar à vontade. E era o que fazia no meu quintal, tentando engolir um sapinho gordo que não passava nas suas mandíbulas. Matei-a por medo, por precaução. O correcto seria abandonar o quintal e deixá-lo todo para ela. Mas minha humanidade me impede de respeitar seu espaço, ela que respeite o meu!

Então esta é a solução: matem todos os animais. Construam uma grande câmara de gás e coloquem todos lá dentro. Que durmam tranquilos e vão para o céu, de onde nunca deveriam ter saído, porque são todos anjos de bondade e inocência.

A humanidade não merece sua companhia. Somos humanos demais, mesquinhos demais. Vamos criar uma civilização de animais-robôs programados para fazerem todas as graças dos antigos animais de carne e osso, sem o instinto de picar, pisotear, caçar… cães e gatos de estimação que não fazem chichi nem cocô, que não roem os sapatos, que não precisam de banho e cuidados. Será fácil. Quando estivermos muito atarefados e não lhes pudermos ou quisermos dar atenção, desligaremos o botão. Receberemos amor quando quisermos, uma lambida com gosto de lata, um ronronar metálico entre nossas pernas.

E, enquanto tudo isso acontece aqui embaixo, os animais-anjos estarão rindo de nós lá no céu, felizes, pulando de nuvem em nuvem em liberdade e harmonia. Esta é a sociedade perfeita, o mundo perfeito, sem guerras, equilibrado, onde só se caça por fome e só se ataca por defesa. Infelizmente, a humanidade ainda não evoluiu suficientemente para chegar a este nível.

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