IMPÉRIO, MITO E MIOPIA
Moçambique como invenção literária
FRANCISCO NOA
Introdução
1. Problemática
Que motivações poderão estar por detrás de um estudo cujas temática e recepção se assumem como potencialmente problemáticas e incómodas? Com esta questão preliminar e cautelar se inicia este trabalho, facto que, por si só, é revelador da carga de susceptibilidade que o envolve.
Na verdade, a referência à literatura colonial, pelo peso semântico e histórico do termo «colonial» – o distanciamento temporal não é, ainda, suficiente para assegurar em muitos espíritos a indispensável serenidade para analisar um fenómeno do qual ou fizeram parte, directa ou indirectamente, ou são dele produto – remexe, de imediato, com sensibilidades, desperta crispações, dúvidas, fantasmas, sinais de desconforto e de inquietação.
Se, nalguns casos, essas reacções podem ser acompanhadas por alguma expectativa, mesmo que extremamente prudente, noutros acaba por se sobrepor uma atitude de rejeição e de resistência. Portanto, falar hoje em literatura colonial constituirá, com certeza, um empreendimento de certo modo espinhoso, com algo de temerário à mistura, mas que se impõe como exercício necessário e inadiável.
Sintomático de que a questão colonial de modo algum está ultrapassada é o facto de se observarem, na actualidade, por um lado, manifestações discursivas e comportamentais visceralmente identificadas com esse ideário e, por outro, tentativas de esbatimento ou de camuflagem dos factos relacionados com o fenómeno colonial.
Sobressai, neste último caso, alguma rebuscada filantropia arrumada em valores determinados. Trata-se, no essencial, de um dispositivo autoprotector em relação às sombras ameaçadoras de um passado recente, cujas representações devido a uma proximidade acutilante, se tornam absolutamente insuportáveis.
Como é natural, não deixamos de considerar a existência de muitas consciências para quem a palavra «colonial» é apenas uma vaga evocação de algo que tem um significado difuso, ou mesmo, nenhum significado. No que concerne a esta última situação, pensamos, em particular, nas gerações pós 25 de Abril, em Portugal, e pós-independências nacionais, nos ex-domínios coloniais, em África.
Pode, também, falar-se de uma crescente, perturbadora e generalizada demissão da memória. Este é, aliás, um dos malefícios mais acentuados do nosso tempo. Como diria o filósofo alemão, Karl Jaspers (1964:57), protagonizamos, na actualidade, uma existência dissolvente e que traduz a impotência do homem perante as suas próprias criações e o fluxo do tempo.
Se a memória funciona como o grande organizador das consciências (Langer 1953:263), o tempo, com o qual ela mantém uma ligação indissolúvel, adquire nos sistemas culturais uma importância fulcral por se instituir, na percepção sistematizadora de Edward Hall (1983:11), como uma linguagem, um princípio organizador, um factor de síntese e de integração, um meio de estabelecer prioridades, um mecanismo de controlo de acontecimentos, um padrão que permite avaliar competências e um sistema de mensagens particulares.
Reflectindo, igualmente, sobre a evanescência do tempo e da memória, o historiador Fernando rosas (1999: IV) observa que «o problema [da perda] da memória é uma questão central do nosso tempo (Entrevista in «Espectador», Expresso, 30/09/99, p. IV). Por ocasião da apresentação do programa «A Crónica do Século» pela RTP, o mesmo historiador diria, ainda, que esta era uma forma de ajudar a «salvar a memória da tentação do presente contínuo e da desidentificação», tão evidentes são os sinais de um apagamento gradual, mas rápido, da memória histórica. O que, como sabemos, é mais de meio caminho andado para que se repitam, ou se perpetuem, as aberrações do passado.
Além do mais, discutir o passado não é só para saber o que aí aconteceu nem simplesmente para saber como ele influencia o presente, mas sobretudo o que ele é, na verdade, se está concluído, ou continua sob diferentes formas. Como ensina Cícero, não conhecer o passado é permanecer sempre criança.
E a questão do alheamento generalizado, ou da tentativa de esquecimento do fenómeno colonial e das criações de espírito a ele vinculadas, parece decorrer, no tocante a segmentos assinaláveis da sociedade portuguesa, de um certo sentimento de frustração que foi acompanhando a perda da sua hegemonia na saga expansionista iniciada no século XV.
Esse facto é, aliás, reportado e analisado por Hernâni Cidade, na sua obra A Expansão Marítima e a Literatura Portuguesa (1944). Aí, o autor chama-nos a atenção para a enorme curiosidade que acompanhou o apogeu do movimento expansionista que colocava as pessoas, na Europa, e em particular em Portugal, a viver numa derradeira ansiedade no sentido de conhecer como é que eram, como viviam os outros povos, enfim, tudo que tivesse a ver com os seus aspectos geográficos, sociais, culturais, biológicos, etc.
Será, aliás, por essa altura, no século XVI, que a literatura portuguesa conhecerá um dos momentos mais pujantes da sua história com João de Barros, Luís de Camões, Damião de Góis, Fernão Mendes Pinto, que tinham como tema de eleição precisamente os contactos que se iam estabelecendo com outros povos e outras civilizações. Segundo Hernâni Cidade (1944:29), não há páginas mais cheias de frescura e de vida do que as inspiradas na vida ultramarina.
Toda esta actividade irá, entretanto, diminuir quando esta saga expansionista esmorece no século XVII, como assumir de protagonismo por parte de ingleses, franceses e holandeses. Daí o sentimento de desencanto que se irá verificar, agravado com a perda do Brasil no século XIX. Sentimento notório, aliás, em Antero de Quental no seu opúsculo Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, onde uma das causas apontadas é exactamente a aventura ultramarina que, segundo ele, tinha esgotado as forças do país e provocado costumes perniciosos.
Esta opinião, mais ou menos generalizada, prolongar-se-á pelo século XX acrescida, entretanto, de um gradual e manifesto desconhecimento da realidade africana, em especial, dando cada vez mais lugar à criação e consolidação de mitos e imagens preconceituosas.
São conhecidas, por exemplo, as ideias que tinham sobre África e sobre os negros figuras tão representativas da intelectualidade portuguesa do século XIX como Oliveira Martins, Ramalho Ortigão e Teófilo Braga. Quer pelo discurso apiedado, quer pela sua impenitência acerca da condição «primitiva» dos negros e dos africanos, é manifesta a crença destes intelectuais na superioridade racial, cultural e civilizacional do europeu.
Trata-se, aqui, de uma ramificação das correntes intelectuais do Ocidente que, desde o movimento iluminista, procuravam traduzir, segundo parâmetros pretensamente científicos, as diferenças raciais e culturais entre brancos e negros. Daí que, por exemplo, para Oliveira Martins (1880:254), existem, «decerto [motivos sobre o limite da capacidade intelectual dos negros], e abundam os documentos que nos mostram no Negro um tipo antropologicamente inferior, não raro próximo do antropóide e bem pouco digno do nome de homem».
Por sua vez, Ramalho Ortigão (1883:135), em paralelo com a sua visão cáustica e sarcástica da acção colonial portuguesa que fazia do catecismo o principal instrumento para «civilizar» os negros, tinha acerca destes uma opinião empedernida:
Debalde está dito e redito que, pelo estudo rudimentar da sua evolução cerebral, o selvagem carece absolutamente do poder de abstracção indispensável para fazer a menor ideia do que nós entendemos pelos dogmas e pelos mistérios do cristianismo. A sua própria língua, destinada unicamente a servir relações baseadas nas necessidades mais grosseiras da vida, se recusa a traduzir as fórmulas abstractas do que há de mais requintado no nosso espiritualismo. Qual é o idioma selvagem que possa exprimir a noção de consciência, de sanção moral, de causalidade, de finalidade, etc.?
Entretanto, a problemática colonial vai-se tornando cada vez mais uma questão de Estado, a partir desse mesmo século XIX, altura do relançamento da colonização europeia, e que vai tomar contornos mais decisivos e sistemáticos com a emergência do Estado Novo, em 1926. E se a colonização é uma preocupação em crescendo para os políticos portugueses, é-o também para a sua intelligentzia.
É, pois, neste contexto, que José Osório de Oliveira, num texto escrito em 1926, intitulado «Literatura Colonial» (1931:89), faz um apelo reivindicando a emergência desta vertente literária. Para este autor, era absolutamente inaceitável que tal ainda não tivesse ocorrido tendo em atenção o que faziam franceses e ingleses nesse capítulo:
As nossas colónias sofrem, sobretudo, da indiferença da opinião pública da metrópole. É absolutamente necessário criar entre nós uma mentalidade colonial. Essa mentalidade, só a literatura pode criar. É por isso que eu insisto sobre a necessidade de romances…
Por sua vez, exprimindo uma diferente percepção, mas uma inquietação comum, o já citado Hernâni Cidade (1944:22), tendo como horizonte referencial a literatura quinhentista, irá manifestar um profundo e nostálgico desapontamento por a temática ultramarina ter sido abandonada na literatura portuguesa:
É preciso dizer que se não propagaram muito estas tímidas insinuações do Ultramar nas páginas da literatura de imaginação. E nem da natureza a atenção do escritor se estendeu à vida, mesmo quando o romantismo [tal como o realismo] alargou os horizontes das preocupações literárias, e, suscitando novos e múltiplos interesses mentais, largamente enriqueceu o pecúlio dos temas.
Confrontamo-nos num e noutro caso com preocupações explícitas no sentido de ligar a produção estética à colonização e que encontrarão no movimento de 28 de Maio de 1926 a resposta devida. Como iremos verificar, do ponto de vista estético, uma das criações mais representativas da colonização moderna é exactamente a literatura colonial.
O que é, o que virá a ser, afinal, a literatura colonial? Qual a sua relevância, qual o seu enquadramento no contexto histórico e cultural em que ela surge e se desenvolve? Que significado e que relação tem esta literatura, atendendo à sua condição de pária, quer com a literatura portuguesa produzida na antiga metrópole quer com a literatura assumidamente moçambicana, que subsequente e paralelamente está emergindo, na então colónia?
Um dos factos mais notórios em relação a esta literatura é que ela irá conhecer uma trajectória muito particular tanto em Moçambique como em Portugal. Por outro lado, e como consequência dessa mesma singularidade grassa, hoje, um quase generalizado desconhecimento quer sobre os autores, quer sobre as obras que compõem este sistema literário. E mesmo em relação aos que aparentemente manifestam algum conhecimento sobre a literatura colonial, de imediato se verifica que é um conhecimento assente em bases precárias e que os levam erradamente a identificar essa literatura com toda a literatura que, por exemplo, se fazia nas antigas colónias.
Se, em relação aos moçambicanos, o desconhecimento pode ser explicado pelo facto de, no período em que mais se produziu e mais circulou esta literatura (1930-1974), a maior parte da população ser analfabeta[1], no que concerne aos portugueses, fossem eles ou não metropolitanos, afinal, o leitor pretendido[2], principal destinatário desta literatura, escrita por portugueses para portugueses, torna-se revelador tanto o desconhecimento como o processo de rejeição que persistem.
O número de edições e de reedições de obras de um autor como Eduardo Paixão, por exemplo, prova que, em particular na ex-colónia, nessa franja dos muito menos de 10% alfabetizados que incluía portugueses radicados e moçambicanos (poucos) assimilados e escolarizados, a literatura colonial, em especial o romance colonial, tinha enorme circulação.
Julgamos que essa é uma literatura que se enquadra no conceito de «contraliteratura», e que, pelo relativo alheamento da instituição literária metropolitana, acaba por ter que ver com as chamadas literaturas marginais. Partimos, pois, do princípio exposto por Bernard Mouralis (1975:37) de que é «susceptível de entrar no campo das contraliteraturas todo o texto que não é percebido nem transmitido – num dado momento da história – como sendo «literatura», isto é, grande literatura. No último capítulo deste trabalho, fazemos uma análise mais circunstanciada de alguns aspectos referentes à recepção da literatura colonial.
Poder-se-á, por outro lado, questionar até que ponto a literatura colonial se arreigou ao espaço onde ela mais se manifestou e desenvolveu. Provavelmente não o será tanto no sentido de ter tido aí uma vasta e assumida mancha de epígonos ou de se ter perpetuado. Porém, trata-se de uma literatura que recria um determinado imaginário e todo um discurso que acaba por traduzir, no essencial, a forma como o Ocidente (West) tem processado a sua relação cultural e civilizacional[3] com o Outro (Rest), neste caso, o Africano.
Teríamos, assim, como definição preliminar e, de certo modo, operatória, a literatura colonial como sendo toda a escrita que, produzida em situação de colonização, traduz a sobreposição de uma cultura e de uma civilização manifesta no relevo dado à representação das vozes, das visões e das personagens identificadas com um imaginário determinado. Isto é, trata-se de um sistema representacional hierarquizador caracterizado, de modo mais ou menos explícito, pelo predomínio, num espaço alienígena, de uma ordem ética, estética, ideológica e civilizacional, neste caso, vincadamente eurocêntrica.
Por outro lado, o que é veiculado por esta literatura acaba, também, por ter um certo enraizamento tanto pelos resquícios mentais e comportamentais que caracterizam os antigos colonizadores e colonizados, como por ter provocado, em determinado momento, uma escrita reactiva que se reconhece nas literaturas nacionais que surgiram nos países africanos. Literaturas que, no caso particular de Moçambique, se projectaram erigindo, até certo ponto, um discurso de insurgência contra uma portugalidade de matriz hegemónica. A propósito, Pires Laranjeira (1999:236) defende que a literatura colonial ligada à África sob administração portuguesa tem um sentido mais restritivo, mais ideológico, sendo a ideia de portugalidade subjacente a esta literatura.
Daí que este trabalho, ao debruçar-se, quase que de forma arqueológica, mas problematizadora, sobre uma escrita que está confinada aos recessos da memória (alguma), ou se encontra disseminada e abandonada nas prateleiras de algumas bibliotecas e arquivos públicos e privados, ou ainda nos prolongamentos discursivos e comportamentais do presente, mais não faz do que cumprir uma predestinação epistemológica[4], numa hermenêutica aberta, de contornos e alcance que o evoluir do próprio trabalho irá definir. Como, de forma lúcida, reconhece Jenny Sharpe (1993:19), none of us [nós que fatalmente somos produto da situação colonial e que participamos da esfera de reflexão nomológica[5]] escapes the legacy of a colonial past and its traces in our academic practice.
Entretanto, para que o nosso trabalho tenha a consistência teórica que ela exige – já que será ponto de partida para generalizações inevitáveis – utilizamos um corpus com relativa extensão (18 romances, ao todo), através do qual procuramos conseguir a devida ilustração para as hipóteses e conclusões que formos avançando. Mais adiante, daremos conta da selecção por nós realizada.
2. Motivações
Como sabemos, qualquer tipologia implica uma determinada visão do mundo ancorada num aglomeramento de experiências, crenças ou convicções. Assim, ao adjectivar uma literatura, por exemplo, há quase sempre uma delimitação conceptual intrínseca que, neste caso, tem implicações que transcendem, ou mesmo põem em causa a própria noção de literatura enquanto sistema semiótico particular. Aliás, na sua caracterização daquilo que designa por contraliteraturas, onde incluímos a literatura colonial, Mouralis (1975:11) defende que se trata des modalités multiples de la subversion du champ littéraire.
Em relação a esta literatura, portanto, trata-se de defini-la tendo em conta um processo histórico (a colonização) e um sistema (o colonialismo), ambos, no centro de uma contestação nem sempre inequívoca. Há quem defenda, a propósito, que os processos de colonização estão, até certo ponto, por detrás do salto qualitativo, cultural e civilizacional que a humanidade apresenta devido não só aos sincretismos que se produziram como também pelos avanços estruturais que se obtiveram.
Tal é o caso, por exemplo, de António Ferronha, historiador angolano, num depoimento no programa «Da África Colonial à África Contemporânea: Momentos e Figuras do Continente» da RDP – África, em 8/11/99, que considera que a colonização não foi completamente nefasta para a África. Contudo, não deixa de reconhecer que a Europa não conseguiu trazer a África para a modernidade. Isto é, houve uma abertura em termos gerais, mas, em contrapartida, deu-se, segundo ele, uma desestruturação cultural, social, económica, afectiva, etc., nas sociedades africanas, de tal modo que, com o fim da colonização, a África caiu numa verdadeira armadilha dada a quase absoluta dependência em relação ao Ocidente.
Por seu lado, e à luz do movimento expansionista iniciado pelos europeus no século XV, Amin Maalouf (1988:91-92), intelectual libanês radicado em França, reconhece uma profunda duplicidade nessa acção, pois, segundo ele:
O Ocidente lançou-se à conquista do mundo em todas as direcções e em todos os domínios, espalhando os benefícios da medicina, das novas técnicas e os ideais da liberdade, mas praticando ao mesmo tempo massacres, pilhagens e escravidões. E suscitando por todo o lado tanto rancor como fascínio.
Por outro lado, a festiva comemoração dos 500 anos dos Descobrimentos, em Portugal, é, apenas, mais uma expressão apologética, directa ou indirecta, da colonização. Há, no antigo colonizador, o apelo de um passado que, de forma indisfarçável, o engrandece e dignifica. A este propósito, a estudiosa brasileira Eneida Leal Cunha (2000:173-4), observa que as comemorações portuguesas dos descobrimentos se alimentam – resta avaliar em que medida de forma crítica ou apenas reiterativamente – do velho baú do imaginário da metrópole imperial. Isto é, essas comemorações poder-se-iam constituir como possibilidade de um resgate, atualizador e corretivo, da história portuguesa pretérita.
Em todo o caso, dificilmente se pode recusar a legitimidade dessas comemorações – quer dizer, do ponto de vista do antigo colonizador – apesar de serem visíveis os sinais, nem sempre conscientes, do culto do império, facto que, embora com laivos de algum anacronismo, representa a marca indelével de um imaginário determinado.
Num claro distanciamento em relação a estas efusões comemorativas, e mesmo profundamente crítico, Alfredo Margarido (2000:5), referindo-se à criação da Comissão Nacional dos Descobrimentos, reconhece que «subtil mas constantemente, sente-se perpassar na atmosfera política nacional um sopro gélido, muito necrófilo, que à força de exaltar o passado compromete o presente, e mais ainda o futuro». Trata-se, aqui, de acautelar a gestão de sensibilidades e suspeições que regem, ainda, grande parte das relações entre o ex-colonizador e as novas nações africanas.
Entretanto, como exemplo de absoluta rejeição a qualquer contemporização com a colonização, desatacamos o tunisino Albert Memmi, autor de obras teóricas importantes sobre o fenómeno cultural, como Retrato do Colonizado (1966) ou Racismo (1982), que questiona (1966:161):
Como se pode ousar comparar as vantagens e os inconvenientes da colonização? Que vantagens, ainda que fossem mil vezes mais importantes, poderiam fazer aceitar tantas catástrofes, interiores e exteriores?
Mário Pinto de Andrade é outro exemplo de quem recusa qualquer espécie de transigência e para quem a colonização é um «odioso empreendimento etnocidário» (Andrade 1978:5) e que não passa de «testa de ponte numa civilização da barbárie onde pode, em qualquer momento, desembocar a negação pura e simples da civilização» (p. 21).
Além dos discursos relativamente contemporizadores e aquém dos constestatários, mais ou menos irredutíveis, a literatura colonial, como iremos verificar ao longo da nossa análise, acaba por ser ou co-actuante ou simples consequência deste duplo fenómeno (colonização e colonialismo). Fenómenos que têm subjacente, por sua vez, motivações de ordem psicológica, social, cultural, ideológica, estética, ética, económica, religiosa e política.
Reside precisamente aí, nessa incontornável contaminação extraliterária, uma das grandes fontes de constrangimento, de desprazer e de retraimento que a alusão à literatura colonial provoca. Em especial, numa altura em que os ventos da história[6] parecem querer apagar alguns aspectos de um passado do qual nem os sujeitados nem os que sujeitam têm motivos para se vangloriar ou esquecer.
Nesta conformidade, e mesmo no sentido de melhor ordenarmos o nosso raciocínio, impõe-se fundamentar as motivações que estão por detrás deste trabalho. Já dissemos que se trata de um exercício interpretativo com o fim de melhor entender e explicar, problematizando, um fenómeno devidamente localizado no tempo e no espaço. Cremos, no entanto, que se trata de um trabalho, cujo processo evolutivo se irá instituir como uma sequência permanente de questionação e de redefinição não só do objecto em causa, mas também dos métodos e estratégias da própria análise. Apresentam-se, de seguida, as principais motivações do nosso trabalho.
a) motivações de ordem histórico-literária
Julgamos que, por si, estas seriam razões bastantes para justificar uma investigação sobre a literatura colonial. Acontece que tanto a interacção desta literatura com os correlativos extraliterários atrás referidos, como o facto de se alinharem vários posicionamentos de modo algum concordantes com o estatuto literário desta literatura – sobre isso debruçamo-nos no capítulo 2 –, obrigam-nos a que fundamentemos a nossa opção por este tema, que, como já se notou, tem a ver, no fundo, com um reavivar crítico e actualizador da memória e do tempo.
Partindo do pressuposto de que a emergência da literatura colonial acontece na esteira da literatura de viagens e de exploração[7], não há dúvida de que se trata de um fenómeno cuja efectiva e sistemática expressão se verifica, em especial no caso português, apenas a partir da segunda década do século XX.
Se é certo que desde finais do século XIX se pode falar da existência de uma literatura colonial, embora descontínua e atomizada, será com o advento do Estado Novo, em 1926, e com o apoio de instituições como a Agência-Geral das Colónias, primeiro, do Ultramar, depois, que essa mesma literatura conhece uma vitalidade assinalável. Este facto é corroborado por Ana Mafalda Leite (1992:83) que explica que as primeiras obras de literatura colonial surgem no fim do século XIX e inícios do século XX, tendo sido criada a Agência-Geral do Ultramar [das Colónias] em Setembro de 1924, e os primeiros concursos de «literatura ultramarina» promovidos em 1926.
Pires Laranjeira (1999:241) é outro autor que subscreve esta ideia ao defender que não existe todavia um sistema literário colonial antes do advento do Estado Novo. Este é um aspecto que, acreditamos, contaminou à partida e sobremaneira quer a produção, quer a recepção esta literatura. Portanto, independentemente da multiplicidade, diversidade e da qualidade estética de algumas das obras escritas adentro da lógica colonial, elas acabaram por transportar os sedimentos estigmatizantes desta alavanca institucional.
Para todos os efeitos, em conformidade com a própria evolução desta literatura e em consonância com as posições acima apontadas, marcamos, como limites temporais sobre os quais incide o nosso trabalho, os anos de 1926-30 e 1974. Trata-se, respectivamente, do termo a quo (1926, primeiro concurso da literatura colonial; 1930, definição através de uma legislação e de uma acção próprias com que o Estado Novo marca a colonização efectiva e sistemática de África, tornando-se, por isso mesmo, no grande movimento dinamizador da literatura colonial) e do termo ad quem (1974, fim da presença colonial portuguesa em África).
Em todo o caso, falar da literatura colonial, na generalidade, significa ter em atenção a forma como é feita a salvaguarda de um ideário, explícito ou implícito, identificado como um universo civilizacional e cultural específico que, sobrepondo-se a outros ideários (africano, americano e asiático), se institui como dominante.
Apesar deste pressuposto, de que iremos falar com mais pormenor na abordagem dos diferentes textos, há um aspecto que deverá ser sublinhado no sentido de serem ultrapassadas, de uma vez por todas, leituras niveladoras e simplistas. Referimo-nos ao facto de a literatura colonial, apesar do já referido impulso institucional, apesar do lastro ideológico que lhe está subjacente, apesar da imoralidade e da inautenticidade que lhe são imputadas (como veremos no capítulo 1), apesar das incontornáveis fragilidades estéticas de muitas das suas obras, ser um inestimável registo mundividencial, um documento de cultura, como diria Walter Banjamin, e, como tal, apresentar um curso evolutivo determinado. Estamos, portanto, perante representações que têm a ver com uma forma de estar no mundo. De modo mais preciso, no mundo dos outros.
Esta é, pois, uma literatura onde se encontram presentes os diferentes códigos (compositivo, semântico-pragmático, estilístico) que condicionam a sua literariedade e a sua polifuncionalidade, agregando um conjunto de estratégias textuais que permitem que recebamos e tratemos os textos como literários e concomitantemente, ou não, exploremos outras funções que se apresentam, além da função estética. Isto é, estabelece-se na relação com estes textos, a cooperação textual (Eco 1979:66) que implica a suspensão dos protocolos que regem a nossa relação com o mundo empírico assegurando, por conseguinte, a constituição da comunicação literária.
Por outro lado, atendendo à sua evolução, iremos verificar que a literatura colonial parte de um momento inicial, fase exótica, passando por uma fase intermédia, de cariz marcadamente doutrinário, até alcançar um estágio mais elaborado, que é a sua fase cosmopolita. Desenvolvemos, também no capítulo 1, uma análise desenvolvida destes aspectos.
Do ponto de vista da história literária, aprofundar o conhecimento desta literatura pode ajudar-nos a melhor ajuizar a delimitação estética e temática da literatura moçambicana, em relação à qual persiste, com legitimidade, a discussão sobre a sua especificidade[8]. A nossa orientação nesta reflexão assenta legitimamente em princípios teóricos e operativos que, acima de tudo, privilegiam o texto como literário. E faremos todo o possível para evitar cair no erro de julgar se nos servimos desses factos comme des documents défectueux, de deuxième ordre (Eikhenbaum 1925: 37-38).
Por estar ligada a um contexto histórico determinado, a literatura colonial interage com a história que a enquadra, fazendo-se ressoar, com maior ou menor impacto, em cada um dos seus textos. Sem perseguir uma linha historicista, o presente trabalho acaba por realizar uma releitura do passado através do espaço literário. Mesmo instituindo-se como um não-dito, a História que aí se insinua não só alimenta os sentidos do romance colonial, o género privilegiado na nossa análise, como também nos ajuda a orientar grande parte das nossas percepções do presente, no que toca, em particular, à verbalização do mundo, seja ela ou não literária.
Não se trata, portanto, aqui, de aplicar o método crítico do Novo Historicismo, uma expressão cunhada em 1982 por Stephen Greenblatt, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e que situa a obra de arte em seu contexto histórico, derrubando, ao mesmo tempo, as fronteiras entre a produção artística e outros tipos de produção social. Esta será, afinal, uma das tendências dominantes nos chamados estudos pós-coloniais de inspiração anglo-saxónica, bem como dos estudos culturais, em geral. Como explica Louis A. Montrose citado por Adam Begley (1993:62), o novo historicismo é uma preocupação recíproca com a historicidade dos textos e com a textualidade da história. No nosso caso, interagirão, as duas textualidades: a dos romances e a da História.
Também não se trata, neste trabalho, dado o carácter interdisciplinar e eclético que o caracteriza, de agir, como refere Boris Eikhenbaum (1925:37), à maneira do polícia que, incumbido de prender um criminoso, teria detido ao acaso todos aqueles que ia encontrando num compartimento determinado e mesmo os que passavam pela rua. Este arbitrário e aleatório procedimento equivale às práticas dispersas que caracterizam muitos trabalhos de interpretação e de análise em que a tolerância metodológica acaba por transformá-los numa «hermenêutica estéril» (Iser 1985:218).
Evitaremos, por conseguinte, recorrer à colecção de assunções e pressuposições mascaradas num instante como teoria e noutro como método, o que nos pode conduzir a um generalizado e insustentável estado de confusão. E o ecletismo interdisciplinar que, em diferentes momentos, se fará presente significará menos uma implícita confissão de indecisão face à multiplicidade de teorias e métodos e à necessidade de relacioná-los uns com os outros, do que a preocupação em explorar, o máximo possível, as potencialidades estruturais, semânticas, comunicativas e teóricas que os textos que iremos analisar nos oferecem.
Tal como explica Lubomir Dolezel (1988:85), enquanto ficção, isto é, enquanto mundo possível, o romance é um conjunto completo de domínios diversificados para poder acomodar o maior número possível de indivíduos, assim como estados de coisas, eventos, acções, etc. Este facto já antevisto por Tynianov (Eikhenbaum 1925:65) significa que cada obra de arte representa uma interacção complexa de inúmeros factores. Daí que, em consequência, o objectivo de estudo é definir o carácter específico de tal interacção.
Assim, para salvaguardar a autonomia das próprias obras, e a especificidade do nosso trabalho, evitaremos cair na tentação fácil de cotejar as referências literárias com os factos que a própria História nos fornece. A excepção será feita em relação aos casos extremos em que os aspectos contextuais se tornam imprescindíveis para a sistematização da nossa leitura. E, aí, não se trata de perseguir o determinismo histórico sobre a literatura, mas de analisar o diálogo fundamental que o texto literário estabelece com o contexto histórico.
b) motivações de ordem ético-pedagógica
Identificada, à partida, com um sistema que se caracterizou pela usurpação material, humana e espiritual de diferentes sociedades, a literatura colonial, no geral, surge-nos, se vista numa perspectiva onde o respeito pelo Outro é um valor dominante, como uma estética do imoral. Aqui, levanta-se de imediato a questão de saber até que ponto uma criação artística pode, ou não, ser imoral. Trata-se, na verdade, de planos distintos, mas que resolvemos aqui conjugar, pois, no fundo é em nome da sua imoralidade, identificada que está com os valores hegemónicos na sociedade colonial que, muitas vezes, esta literatura é definida e avaliada.
Esta é uma dualidade que, de certa forma, é recorrente ao longo da história da arte, em geral, e da literatura, em particular. Lembremo-nos, por exemplo, da atitude de suspeição manifestada por Platão[9] em relação à poesia (literatura) que, por esta basear-se na imitação, podia, do seu ponto de vista, exercer um efeito maléfico sobre a cidade. Ou do comprometimento de parte da arte barroca com o dogmativismo religioso e regenerador da Contra-Reforma. Ou, então, o século XIX francês, onde temos um Baudelaire «satânico» ou a plêiade de escritores como Flaubert, Gautier, Renard ou Maupassant que, defendendo a ideia de que c’est avec les bons sentiments qu’on fait la mauvaise littérature (Sartre, 1948:135), acabam por ser apodados de «malditos», colocados, por isso, à margem pelo moralismo policiador da usa própria sociedade. Facto que, aliás, se repetirá em relação à irreverência iconoclasta das manifestações modernistas nos inícios do século XX.
Neste século, o período entre as duas grandes guerras e o subsequente irão apresentar quadros exponenciais do sofrimento humano, tanto individual como colectivo, o que obrigará os fazedores da arte a confrontarem-se, de diferentes formas, com esses momentos marcantes da história contemporânea. A estética neo-realista, por exemplo, apresenta-se como uma literatura onde a dimensão ética acaba por ser marcada devido à motivação humanística e interventiva aí assumida.
Sensivelmente por essa altura, é publicada a obra Qu’est-ce que la Littérature?, de Jean-Paul Sartre (1948:69), onde, entre outras coisas, o autor discute as relações entre a ética e a literatura, afirmando, a dado passo, que, apesar de a literatura ser uma coisa e a moral outra, no fundo do imperativo estético, nós discernimos o imperativo moral. Tal é a sua convicção que chega a lançar o seguinte desafio: «Eu peço que alguém me cite um bom romance, por único que seja, em que o propósito expresso foi o de servir a opressão, ou de escrever contra os Judeus, os Negros, os operários ou os povos colonizados» (p. 73).
Pelos vistos, de um ponto de vista sartriano, não serão muitas as vezes em que encontraremos um bom romance colonial.
Uma percepção análoga atravessa a reflexão do nigeriano Chinua Achebe que interpreta a literatura colonial enquanto espaço onde reina o preconceito e a maldade, como uma escrita «duplamente ofensiva» (2000:41):
Mas subjugada ou meramente enfraquecida, a literatura é sempre mal servida quando o ponto de vista artístico dá lugar ao estereótipo e à malícia. E isto torna-se duplamente ofensivo quando tal obra é arrogantemente apresentada como a tua história.
Em que medida é, pois, moralmente legítimo não só desenterrar esta literatura através de um investimento descritivo e analítico desta natureza, como também propor uma hipotética integração num plano de estudos, seja na antiga metrópole, seja nas próprias ex-colónias, ou, então, apostar na sua circulação por esses mesmos espaços em nome da «liberdade intelectual»? Alguém que responde «sim» é Salvato Trigo (1987:147) que, com algum desassombro, postula:
Há, pois, que ler essa literatura não com um sentido permanente de destruição, de terrorismo leitual, que só denotam insegurança e intolerância do leitor/crítico, tão contrárias ao espírito científico, mas com um sentido de pesquisa e aprendizagem, buscando nela elementos e factores causativos e germinativos para a consciência literária nacional, para a independência intelectual, que, nas colónias, surge sempre muito antes da independência política.
Queremos aqui sublinhar que, longe de se remeter ao levantamento e escalonamento bipartido e maniqueísta das diferentes representações na literatura em causa, esgotando-se em considerações moralizantes, este trabalho procura acima de tudo analisar como essas representações são construídas e como interagem com um determinado contexto espacial e temporal, ao mesmo tempo que traduzem uma visão do mundo específica que vai evoluindo através de novas formas e novas imagens. Daí que, nesse sentido, nos pareça pertinente a posição de Salvato Trigo.
A propósito do aspecto polimorfo da sobreposição cultural e civilizacional, numa leitura do colonialismo moderno e dos diferentes aspectos que vai tomando ao longo do tempo, L. S. Stravrianos (1981:41-43) divide-o em quatro fases: a primeira, de 1400 a 1770, dominada pelo capitalismo mercantilista e pela exploração das Américas; a segunda, de 1770 a 1870, caracterizada pelo surgimento do capitalismo industrial e procura de mercados ultramarinos; a terceira, de 1870 a 1914, identificada com o monopólio capitalista e conquista global; e a quarta e última, a partir de 1914, em que se verifica a mudança do monopólio capitalista e da colonização para o sistema das corporações multinacionais e para o neocolonialismo.
Dada a complexidade e o polimorfismo do conceito de «colonial», decorrente da sua não-dependência exclusiva a uma determinada baliza cronológica, importa colocar redobradas atenções em relação ao que ele possa de imediato significar. É, pois, face a esta complexidade que Manuel Ferreira (1989:237), de modo penetrante, preconiza:
Note-se que o romance (ou outra forma artística) não é colonial pela simples razão de ter sido produzido por um europeu, com mais ou menos experiência africana, durante o período colonial. Inclusive o seu autor pode ser um africano. Nos nossos dias poderá ser escrito um romance colonial. (Itálicos nossos).
Tanto na leitura de Stravrianos como na de Manuel Ferreira desenha-se uma noção de colonialidade que vai além das balizas históricas do colonialismo e que irá, de certo modo, atravessar parte da nossa reflexão.
Mesmo tendo em conta a rigidez dos valores morais que norteiam a conduta individual e colectiva das sociedades em geral, julgamos que, no seu conjunto, esses valores traduzem possibilidades infindas da condição humana, o que acaba por dotar, de forma paradoxal ou não, cada gesto, cada acção, de uma variedade múltipla de comportamentos alternativos que põe em causa a cristalização de um determinado código de valores.
Assim, em função do relativismo histórico, o sentido ético dominante acaba por alargar-se, flexibilizar-se e enriquecer-se ao considerar outras possibilidades de consciência e de conduta, em que, por exemplo, a dicotomia do bem e do mal ganha novos particularismos. E, é assim que, cada uma dessas sociedades, dada a abertura que, de modo virtual ou efectivo, aí se desenvolve, consegue viver e enfrentar os processos traumáticos e moralmente condenáveis que ela própria desencadeou, protagonizou ou sofreu.
Por conseguinte, quer para os que colonizaram quer para os que foram colonizados, revisitar as criações de espírito que têm a ver não só com um determinado segmento da história que os ligou, como também com todo um imaginário que subsiste sob formas mais ou menos elaboradas, mais ou menos dissimuladas, torna-se um imperativo que tem tanto de moral como de pedagógico.
Há quem considere que incursões desta natureza, ou evocações afins, relativas a um passado construído sob o signo da sujeição soa uma ameaça para o presente. Outros defendem exactamente o contrário. Registamos aqui duas opiniões, retiradas do semanário português Expresso de 29/04/2000, por si só reveladoras do que a questão encerra de problemático. Assim, enquanto Henrique Monteiro, na sequência das crispações verbais entre portugueses e angolanos, num artigo intitulado «A Lógica da Humilhação» (p. 13), postula:
É triste, demasiadamente triste, para ser verdade, que o nosso país [Portugal] se vergue e se humilhe perante gente que passa a vida a cobrar-nos e a chantagear-nos com um passado já distante. Não foi esta a geração portuguesa responsável pelo colonialismo […]. Esta é uma geração de liberdade num país livre.
No Editorial, da mesma edição, com o título «Parentes Pobres e Ricos» (p. 24), lê-se:
Curiosamente, a questão do Império interessa hoje, na mesma medida, à direita e à esquerda. […] É preciso que todos percebam que a identidade de Portugal, aquilo que faz a sua diferença, e que lhe pode dar uma vantagem relativa no confronto com outras nações, é o facto de ter sido o centro de um grande império colonial. Portugal não é grande pelo território. Nem pela agricultura. Nem pela indústria. (Itálicos nossos).
O sentido pedagógico que procuramos realçar impõe-se, portanto, como um exercício intermutável de conhecimento desapaixonado de si próprio e do Outro, através de signos que, apesar de imputáveis ao passado, têm ganho um significado e uma importância particulares no presente. Pedagogia da alteridade precisamente por aquilo que essa alteridade não foi e que permitirá, hoje, retraçar redes desambiguizadas e fecundas de comunicação cultural e civilizacional. Em múltiplos sentidos.
De modo mais particular, a literatura colonial acaba por preencher um vazio real e sintomático no conjunto da criação literária do antigo colonizador e tem que ver com a representação do negro e de África. Num interessante estudo subordinado a esta questão, intitulado A Imagem da África Negra nas Literaturas Portuguesa e Francesa da Segunda Metade do Século XIX, da autoria de Maria Vitória Figueiredo, esta conclui, a determinado passo, que, contrariamente à França, «não são muitos textos [de autores portugueses] onde a África surge como um tema ou como motivo» (1992:103). E, quando o contrário acontece, é sempre um espaço por «civilizar» e o negro não escapa nem ao olhar apiedado do europeu, nem ultrapassa a sua condição de «objecto sexual, de lucro e de luxo» (p. 120). Isto deve-se, segundo a autora, à «cegueira estrutural do olhar ocidental» (p. 144).
Encontraremos, entretanto, a figuração do negro em obras como o Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende, Os Lusíadas, de Luís de Camões, e parte da obra dramática de Gil Vicente no século XVI, ou das já referidas visões quer apiedada, quer evocativa da inferioridade moral e intelectual dos negros em Eça de Queirós, Ramalho Ortigão e Fialho de Almeida no século XIX. Trata-se, no essencial, de uma representação do negro assente numa «perspectiva redutora e humilhante: ladrão, madraço, astuto, atrevido, imaturo, ambicioso, libidinoso» (Ferreira 1989:305).
Na literatura e na cultura portuguesas, a África e os negros são um verdadeiro tabu. Segundo Garcia Polido (1934:108), escritor e publicista, num artigo intitulado «Literatura Colonial» e publicado no Boletim Geral das Colónias:
Nesta larga quadra de trabalho artístico, a vida das colónias não constitui sequer um episódio. Na verdade, na obra de Camilo, de Júlio Deniz [sic], de Eça de Queirós e de Fialho de Almeida, como já acontecera com Herculano, Castilho e Garret, o vasto património ultramarino não tem história.
O mesmo autor observa, ainda, que:
Nas melhores páginas da literatura contemporânea o grande esforço de Portugal em favor da civilização e da revelação dos novos mundos é totalmente ignorada. Dir-se-ia que o País se limita, geográfica e historicamente, à estreiteza da faixa europeia.
E o ostracismo a que a literatura colonial está votada terá, entre outras razões, a ver com o facto de ter sido remetida à condição daquilo que ela ousou quebrar: a condição do que é interdito ou proscrito. Existe, porém, outra grande excepção que é a literatura evocativa da guerra colonial, onde a tematização de África e do negro (pelo menos da relação dos portugueses com ele) tem um espaço preponderante. Segundo Rui de Azevedo Teixeira (1988:110), na obra A Guerra Colonial e o Romance Português, esta literatura «produz um dialogismo textual que dá origem a um corpo literário – marcado por África como continente mental – que é profundamente distinto da literatura portuguesa contemporânea».
E o sentido ético reside, também, aí: com a exumação desta literatura estimula-se, alarga-se e enriquece-se a liberdade de pensamento e de acção, que, neste caso particular, implica um misto de ousada curiosidade e necessidade de reescrever com a objectividade possível a adormecida textualidade da mundividência colonial.
Estamos, pois, diante de um empreendimento que procurará, em cada passo, evitar uma atitude de parcial e hostil virulência para com a literatura em análise, por um lado, ou de qualquer forma de condescendência indiciadora de algum revivalismo, gratuito ou intencional, no sentido de pactuar com certos sedimentos culturais e ideológicos aí inscritos, por outro. Subscrevemos, a propósito e em grande medida, a posição de Edward Said (1994: XXII), quando, na sua análise do fenómeno colonial do ponto de vista literário, defende que o seu método é focar tanto quanto possível trabalhos individuais, de modo a lê-los primeiro como grandes produtos da imaginação criativa e interpretativa e, depois, apresentá-los então como fazendo parte da relação entre cultura e império.
Ao advogar, por exemplo, que a tragédia, ao suscitar o terror e a piedade, provoca a purificação da alma, Aristóteles parece mover-se sobretudo num plano estético e emocional, sem, no entanto, descartar desígnios éticos e age gnosiológicos. Desígnios que, julgamos, poderem ser associados, à la langue, ao romance colonial que, ao compulsar sentimentos de atracção ou de repulsa no leitor contemporâneo em relação ao que é narrado ou descrito, adquire uma função catártica, pedagógica e eventualmente moralizadora. O distanciamento histórico deve, em princípio, permiti-lo.
Na conceptualização poética aristotélica, a questão ética está presente não só do ponto de vista da recepção, mas também do ponto de vista composicional. Recordemo-nos de que na distinção por si feita entre, por exemplo, a tragédia e a comédia, Aristóteles define que a primeira imita homens como seres superiores (nobreza) e que a segunda imita homens como seres inferiores (baixeza)[10]. Isto, obviamente, sem pôr em causa a autotelicidade da obra literária. E, tal como Benedetto Croce, consideramos que a arte pode ser educadora enquanto arte, mas não enquanto «arte educadora», porque em tal caso não é nada, e o nada não pode educar.
Portanto, não é nosso objectivo com este trabalho estudar o colonialismo através da literatura, mas sim analisar e conhecer as interacções que esta forma particular de discurso estabeleceu, num determinado momento, com um dos sistemas de dominação mais marcantes dos últimos cinco séculos. E, porque tanto a história como a cultura dos povos envolvidos estão fortemente marcadas por esse sistema, facto que se fez sentir quase a nível planetário, a literatura colonial, enquanto espaço de contacto de imaginários, pode ser um veículo privilegiado para apreender os particularismos simbólicos e existenciais inerentes às sociedades contemporâneas, na sua forma de estar consigo mesmas e comos outros.
Enfim, acreditamos que, para além de todas as demais conclusões, com a nossa interpelação a uma escrita que teve como um dos seus principais efeitos a ampliação ou obscurecimento da luminosidade do Império, temos necessariamente de concordar com Robert Hampson, na sua interpretação de Heart of Darkness de Joseph Conrad, que, afinal, darkness is located at the heart of the civilizing mission (1995: XXXIV). E deste anátema não escapou grande parte do sistema representacional da literatura colonial. Muito pelo contrário.
[1] Segundo dados publicados, por exemplo, no Anuário Estatístico do Ultramar, de 1958, dos 5 738 911 habitantes existentes na colónia de Moçambique, 5 615 053 eram analfabetos, isto é, 97,82%.
[2] Segundo Wolfgang Iser (1980:34), o leitor pretendido é uma identidade projectada que apresenta as disposições históricas do público leitor visado pelo autor.
[3] Dada a recorrência destes dois termos ao longo do nosso trabalho, e dadas também a complexidade e ambiguidade conceptual que os caracteriza, iremos desde já avançar uma definição operatória de cada um deles, de modo a clarificar a utilização que fazemos desses vocábulos. Por conseguinte, aplicamos a palavra cultura enquanto conjunto de manifestações culturais, espirituais e artísticas, com um valor essencialmente simbólico e que traduzem uma determinada visão do mundo.
O conceito de civilização, por sua vez, tem a ver com o sistema de vida material de um povo, sociedade ou época e que exprime a condição alcançada em termos de organização. Em relação a este último termo, tanto em Émile Benveniste (1966:336-345), como em Raymond Williams (1983:57-60), que seguem o curso da palavra desde o seu surgimento no século XVIII, é notória, em ambos, a dificuldade de a deslocarem do significado dominante que a tem perseguido, nomeadamente no Ocidente, enquanto expressão de um refinamento da forma de vida e de elevação social, moral e cultural em relação à «barbárie». Daí o sentido maniqueísta e ideológico de que o termo civilização quase sempre enfrenta.
[4] Trata-se, simplesmente, da interpretação calibanesca do espólio deixado por Próspero. De forma desapaixonada e escalpelizadora. Salve-se a ironia.
[5] Do grego nomos (em oposição a physis), e que tem a ver com as ciências sociais e humanas.
[6] Temos a consciência de que do ponto de vista de muitos espíritos, corre-se o perigo, com esta pesquisa, de desenterrar questões que não são muito bem vindas pela incomodidade que provocam na actual conjuntura em que os discursos, oficiais ou não, são dominados pelo império terminológico da globalização, cooperação, solidariedade, parceria, intercambio, encontro de culturas, etc., que valem, na maior parte das vezes, mais pelo seu efeito demagógico do que como materialização de acções concretas.
[7] Sobre esta questão consultar Manuel Ferreira (1985); Salvato Trigo (1987); Ana Mafalda Leite (1992); Pires Laranjeira (1999).
[8] Sobre esta questão, consultar Carlos Alberto Lança (1962); Alfredo Margarido (1962); Joaquim Sabino (1964); Rui Knopfli (1974); Manuel Ferreira (1984, 1989); Russel Hamilton (1984); Fátima Mendonça (1984); Ana Mafalda Leite (1985); Lourenço do Rosário (1990); Francisco Noa (1997); Gilberto Matusse (1998).
[9] Cf. A República (377a., 378a., 380a.) ou Íon (1533d., 1534a., 1534b, 1534c., 1534d., 1534e.). Nesta última obra sobreleva, entretanto, a ideia de que a poesia não era nenhum arte, mas sim um produto de inspiração divina de que o poeta se tornava simplesmente processo.
[10] Julgamos que, neste aspecto, Aristóteles inaugura uma dimensão antropológica da teoria literária, perspectiva que acabará por estar fortemente presente no nosso trabalho.
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